Responsabilidade criminal das pessoas jurídicas e de seus representantes legais no Direito Ambiental: Uma breve análise à luz do caso Brumadinho/MG
Por Glauco Artur Ribeiro de Assunção – Membro Efetivo do IASC.
O acidente ambiental ocorrido no dia 25 de janeiro de 2019 na Barragem 1 da Mina do Feijão, operada pela empresa Vale, na cidade de Brumadinho/MG, reacendeu o alerta acerca da segurança dos complexos de exploração de minério existentes no Brasil, especialmente, em razão do último evento semelhante ter ocorrido apenas três anos antes na Barragem do Fundão, em Mariana/MG, também operada pela Vale.
Passados alguns meses da catástrofe, tomou-se conhecimento de que uma série de barragens em operação no país oferecia alto de risco de segurança, com casos, inclusive, de necessidade de evacuação de alguns municípios, o que levantou o questionamento acerca da qualidade dos licenciamentos que autorizam operação de complexos deste porte, bem como da identificação correta dos responsáveis pelos danos causados.
Em virtude da gravidade dos prejuízos causados, houve, nos meios de comunicação, incontáveis matérias e reportagens que reproduziram o que opinião pública exigia de maneira ávida: punição da Vale e de seus responsáveis pelo o que ocorreu em Brumadinho/MG.
Episódio emblemático, inclusive, ocorreu quando o Presidente em exercício da Vale, em um dos encontros na Câmara dos Deputados para prestar esclarecimentos sobre a tragédia, foi questionado e confrontado severamente por parlamentares a ponto de, em determinado momento durante a sessão, ter sido manifestado o desejo de sua prisão.
Porém, quais as responsabilidades e repercussões jurídicas que contornam um acidente ambiental desta natureza? Pode uma pessoa jurídica ser condenada criminalmente por dano ambiental? Pode o representante legal de uma destas companhias sofrer sanções?
Antes de se avançar no tema, é necessário entender que o § 3º do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 preconiza que as “condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Dessa forma, tem-se que os danos provenientes da exploração de minério, atividade que utiliza recursos naturais e, portanto, submetida à necessidade de licenciamento ambiental pelos Estados, na forma da Lei Complementar 140/2011, estão sujeitos, além da responsabilidade civil, à apuração de responsabilidades administrativa e criminal.
Fixada esta premissa, é importante, antes de tratar sobre a responsabilidade criminal para o caso em questão, tecer algumas considerações acerca das responsabilidades dentro do âmbito civil e administrativo.
A Lei n. 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, disciplinou que a responsabilidade civil para recuperação de danos ambientais é objetiva, ou seja, não depende da existência de dolo ou culpa para que o seu causador seja condenado à reparação do prejuízo ecológico, basta apenas a demonstração da existência do nexo de causalidade entre o dano e a prática da atividade lesiva.
Assim, considerando-se que os Tribunais Superiores firmaram entendimento em prol da teoria do risco integral, que é consubstanciada no princípio do poluidor-pagador, tem-se que a pessoa jurídica com atuação potencialmente poluidora deve reparar todos os danos ambientais causados por sua atividade, independentemente de culpa, tornando-se, descabida, inclusive, a invocação de qualquer excludente de ilicitude.
Outrossim, o representante legal da pessoa jurídica não pode ser responsabilizado civilmente pelos danos ambientais que a empresa causar, a não ser quando evidenciada a incapacidade financeira desta, oportunidade em que ocorrerá a desconsideração da personalidade jurídica em desfavor dos sócios para garantir a reparação dos prejuízos ao meio ambiente.
Na seara administrativa, a situação é semelhante. O representante legal será responsabilizado pelos danos cometidos pela empresa, apenas quando houver necessidade de desconsideração da personalidade jurídica para garantir o cumprimento da sanção aplicada.
Todavia, apesar da existência de divergências doutrinárias, o Superior Tribunal de Justiça tem reforçado o entendimento no sentido de que a responsabilidade administrativa ambiental é subjetiva (AgInt no AREsp 826046/SC, j. 27-2-2018), ou seja, para que seja configurada, deve haver, além do dano, a demonstração do nexo de causalidade e do dolo ou da culpa.
Quanto à responsabilidade criminal, o estudo exige atenção com relação a algumas peculiaridades inerentes ao direito penal, garantidas, inclusive, constitucionalmente.
A principal delas é a de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado (art. 5º, XLV, CRFB/1988), consolidada, portanto, no princípio da responsabilidade penal pessoal, que vigora no ordenamento jurídico brasileiro desde o período imperial, quando passou a ser previsto na Constituição de 1824.
Dessa feita, posicionamentos doutrinários tradicionais assentam o entendimento de que apenas a pessoa física é capaz de ser sujeito ativo de um crime, diante da impossibilidade da submissão da pessoa jurídica a um juízo de reprovação que requeira averiguação de dolo, culpa e consciência da conduta criminosa praticada, de modo que, a pessoa jurídica, um ente fictício, não seria provida de vontade, bem como não poderia ser afetada por nenhuma medida punitiva e reeducativa.
Da mesma maneira, na referida linha de raciocínio, punir uma pessoa jurídica significaria o mesmo que punir os seus sócios, algo que se trataria de uma contradição e de uma ofensa direta ao princípio da responsabilidade penal pessoal, pois a responsabilidade prática recairia sobre outro.
Em resumo, pelo entendimento jurídico tradicional, a responsabilidade penal está pautada pela culpabilidade, o que inviabiliza a condenação criminal de pessoas jurídicas, sendo passíveis de punição somente as pessoas naturais dos seus administradores e representantes legais.
Contudo, ao longo do aparecimento de grandes corporações e do cometimento de diversas condutas criminosas em prol do seu exclusivo interesse comercial, a exemplo de danos ecológicos, fraudes financeiras e etc., a doutrina moderna passou a adotar o entendimento de que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não pode ser analisada à luz da culpabilidade, mas sim, à luz da responsabilidade social, que busca averiguar a ação institucional da empresa, a qual deve ser reprovada quando contrária ao ordenamento jurídico.
Confere-se dos ensinamentos de Édis Milaré sobre o tema:
O juízo realizado na responsabilidade social cumpre uma função própria: é um mecanismo de controle normativo social, que se exerce através da coação estatal, ao mesmo tempo em que se resolve conflitos produzidos pela atividade de certas estruturas que entram em contradição com bens jurídicos fundamentais da comunidade. A punição atua como instrumento para corrigir disfuncionalidades do sistema.
Deve-se verificar inicialmente se o fato deve ser atribuído à pessoa jurídica. É o requisito da capacidade de atribuição. A questão de coloca porque há possibilidade de um mesmo sujeito atuar a título pessoal, ou representando o ente coletivo. Indaga-se, então, se determinada conduta por ele praticada pode ser – ou não – atribuída à pessoa jurídica.
Para identificar se a ação é institucional (isto é, se é da pessoa jurídica e não da pessoa física), o ponto crucial é o interesse econômico. Há casos em que o comportamento criminoso dos diretores, quase sempre à margem dos estatutos sociais, somente traz benefícios a eles próprios. Entretanto há casos nos quais a empresa aufere benefícios. O benefício para a empresa permite a atribuição da ação ao ente coletivo. Portanto o benefício é determinante para a imputação da conduta à pessoa jurídica[1].
Assim, a partir deste raciocínio, uma nova orientação doutrinária, jurisprudencial e legislativa passou a ser admitida para penalizar criminalmente as pessoas jurídicas, reconhecendo-se, portanto, que os referidos entes podem cometer crimes específicos e, consequentemente, podem ser punidos de maneira distintas das pessoas naturais.
Embora não exista na legislação penal geral brasileira a previsão de condenação criminal para pessoas jurídicas, a Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/1998) separou expressamente a responsabilidade penal da pessoa jurídica e da pessoa física, veja-se:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente (grifo nosso).
Denota-se que, mesmo tendo encontrado alguns focos de resistência, especialmente em razão da constante aplicação da teoria da dupla imputação, que exige a responsabilização também do dirigente da pessoa jurídica, a jurisprudência mais recente tem admitido a possibilidade de condenação criminal das pessoas jurídicas por danos ambientais, veja-se:
PENAL. CRIME AMBIENTAL. LEI 9.605/98. ARTIGO 54. MATERIALIDADE. AUTORIA. PESSOA JURÍDICA. INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.
- Comprovadas a materialidade e a autoria do delito ante a demonstração do nexo causal entre a conduta dos réus e a poluição ambiental em níveis potencialmente nocivos à saúde humana.
- As pessoas jurídicas são penalmente responsáveis nas hipóteses em que a infração for cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. […] (TRF4, ACR 2005.72.04.001427-0, Sétima Turma, Relator Luiz Carlos Canalli, D.E. 22/08/2013) (grifo nosso)
Inclusive, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal firmou o posicionamento de que, evidenciado que o crime cometido foi em benefício da sociedade empresária, é esta quem deve responder pelos delitos supostamente cometidos, tornando-se desnecessária a denúncia da pessoa física do administrador ou dos membros do seu órgão colegiado (teoria da dupla imputação), veja-se:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
- O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação.
- As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta.
- Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental.
- A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual.
- Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido. (RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014) (grifo nosso)
E, para demonstrar que Judiciário tem se alinhado a esse raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça, seguindo a orientação do Supremo Tribunal Federal, também firmou o mesmo entendimento:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL: DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO CONCOMITANTE À PESSOA FÍSICA E À PESSOA JURÍDICA.
- Conforme orientação da 1ª Turma do STF, “O art. 225, §3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação.”
(RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 6/8/2013, acórdão eletrônico DJe-213, divulg. 29/10/2014, public. 30/10/2014).
- Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte.
- A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução.
- Recurso ordinário a que se nega provimento. (REsp em Mandado de Segurança n. 39-173-BA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 6-8-2015) (grifo nosso)
Dessa maneira, não é forçoso concluir que uma pessoa jurídica pode ser sujeito ativo de um crime ambiental e, inclusive, tem permissão para ser condenada criminalmente independentemente da apuração de responsabilidade de seu representante.
Não se pode olvidar que, para que o representante legal seja também condenado criminalmente por dano ambiental cometido por sua empresa, é imprescindível que esteja demonstrada que, qualquer ação ou omissão de sua parte, tenha sido tomada em benefício ou interesse estranhos aos da sociedade.
Apesar do receio de impunidade expressado pelo clamor popular, deve-se destacar que a legislação ambiental é uma das mais complexas do ordenamento jurídico quando o tema é relacionado à reparação de danos.
No entanto, deve-se ter ciência que é comum que companhias do porte da Vale tenham sua gestão composta por inúmeros diretores que diluem as responsabilidades internas da empresa em vários cargos e setores, que, por sua vez, são submetidos a infinitas regras de governança corporativa nacionais e internacionais, o que praticamente impossibilita a concentração de poder nas tomadas de decisão e, consequentemente, a identificação da responsabilidade individual para o crime averiguado.
Portanto, nos casos em que for apurada responsabilidade criminal por danos ambientais cometidos por pessoa jurídica, especialmente na situação como a de Brumadinho/MG e da Vale, tem-se que o seu presidente e diretores somente deverão ser condenados criminalmente se, após conclusão da investigação e da instrução probatória em processo judicial, houver prova inequívoca, além da sua contribuição direta para as causas do acidente, do cometimento deliberado de atos que fugiam às suas atribuições dentro da companhia.
*Glauco Artur Ribeiro de Assunção, advogado atuante em Direito Público, especializado em jurisdição federal pela Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina. Presidente da Associação Catarinense de Relações Institucionais e Governamentais. Membro efetivo do IASC.
[1] MILARÉ, Édis, DA COSTA JR. Paulo José, DA COSTA, Fernando José. Direito Penal Ambiental, 2ªedição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 44 e 45, grifo nosso).