Violência patrimonial contra a mulher
Por Paula Frello Nogara Naschenweng – Membro efetivo do IASC.
A Lei Maria da Penha propiciou uma maior proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar ao estabelecer uma releitura de tipos penais já existentes e uma disciplina diferenciada e protetiva da mulher na esfera processual penal[1].
As espécies de violência praticadas contra a mulher no âmbito familiar foram ampliadas pela referida lei que, dentre elas, prevê a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades[2].
Mais especificamente nos conflitos entre casais, quando a convivência e a coabitação tornam-se difíceis, o cônjuge ou o companheiro muitas vezes usa de artifícios no intuito de forçar a esposa ou a companheira a permanecer no relacionamento ou quando já rompida a vida em comum, a retomá-lo ou, ainda, com o propósito exclusivo de puni-la pelo fim da relação. Dentre esses subterfúgios, utiliza-se da violência patrimonial nas suas mais variadas feições.
Ocorre que grande parte das mulheres vítimas desse tipo de agressão, muitas vezes contaminadas pelo senso comum e por uma cultura que, infelizmente, em vários momentos ainda se revela machista, acredita que a violência sofrida não representa nada demais, pois o agressor está apenas exercendo seu direito de provedor da casa e de chefe da família. Assim, guarda seu sofrimento para si, junto dos sentimentos de tristeza, de vergonha, de incapacidade e de medo.
Embora muitas das espécies de violência patrimonial possam ser praticadas de forma sutil, revelando-se impassíveis de ensejar as devidas consequências jurídicas, várias delas se amoldam claramente ao tipo legalmente previsto, motivo pelo qual deveriam acarretar a sanção devida.
Como exemplos dessa forma de agressão podemos mencionar a destruição ou a retenção indevida de bens materiais, de objetos e de documentos pessoais da mulher, como notebooks, celulares, passaporte, carteira de motorista, dentre outros; a subtração ou o uso exclusivo dos bens comuns pelo homem; a utilização de procuração assinada em confiança, pela mulher, para realizar negociações financeiras que a prejudiquem; efetuar compras com o cartão de crédito daquela sem realizar o respectivo pagamento após o fim da vida comum.
Igualmente, configuram essa espécie de violência pressionar a mulher para que a partilha de bens seja feita o mais rápido possível e com advogado único, contratado pelo homem, ocasionando perda patrimonial e financeira àquela; reter indevidamente a verba alimentar devida à ex-cônjuge ou à ex-companheira; abandonar emprego formal ou ocultar vencimentos para abster-se de pagar alimentos à ex-esposa ou ex-companheira; atrasar injustificadamente a pensão alimentícia ou os alimentos compensatórios, pois uma mulher privada dos recursos necessários à sua subsistência resta ofendida emocional e fisicamente.
Embora as referidas condutas sejam comuns nas ações de família, o que por vezes acaba por banalizá-las, tornando-as imperceptíveis aos olhos do operador do direito não habituado com a atuação criminal, devem elas ser tratadas como os demais crimes contra o patrimônio tipificados no Código Penal por possuírem a mesma natureza daqueles.
Não obstante tais constatações, o advogado Mário Delgado alerta que os principais obstáculos à apuração criminal dos atos de violência doméstica que atingem o patrimônio da mulher encontram-se nas previsões legais dos artigos 181 e 182, do Código Penal e na interpretação jurisprudencial conservadora. Nesse sentido, o referido jurista alerta:
[…] as imunidades localizadas nos arts. 181 e 182 do CP, que isentam de pena quem comete crimes contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, admitindo-se, excepcionalmente, que se proceda mediante representação, se o cônjuge estiver judicialmente separado. Por óbvio a interpretação desses dispositivos deve permitir a sua atualização, e onde se lê “separação judicial”, deve-se incluir “separação de direito ou de fato”, enquanto que a palavra “cônjuge” é também compreensiva de “companheiro”.
Ou seja, enquanto não se consumar a separação de fato ou de direito, o divórcio ou a dissolução da união estável, praticamente nada poderia ser feito. Salvo se o crime for cometido com emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa, ou ainda quando a vítima for maior de 60 anos.
A interpretação jurisprudencial mais conservadora, e ainda vigente, não recepcionou a tese de que os artigos 181 e 182 do CP teriam sido derrogados pela Lei Maria da Penha, vale dizer, o entendimento é no sentido de serem inaplicáveis os artigos 181 e 182 do CP aos crimes de violência doméstica e familiar. O STJ vem decidindo que esses dispositivos não foram afastados pela Lei Maria da Penha[3].
Pelo exposto, constata-se que uma aplicação mais rígida e abrangente da Lei Maria da Penha, visando à proteção patrimonial da mulher, vem enfrentando resistências. Entretanto, esse cenário deve ser visto como um desafio a ser superado pelos militantes da área de família e, mais especificamente, do campo da violência doméstica e familiar.
Isso porque as modificações no âmbito da incidência normativa não decorrem apenas das alterações legislativas, mas também dos vários métodos de interpretação da norma abstratamente prevista, sobretudo porque o sistema jurídico mostra-se dinâmico e apto a adequar-se às novas demandas da sociedade.
Nesse viés, tais profissionais devem empenhar-se no sentido de disseminar o conhecimento sobre essa forma de violência contra a mulher, promovendo campanhas de conscientização ou mesmo mediante a divulgação do tema nos meios de comunicação, no intuito de promover uma mudança cultural para que seja reconhecida a gravidade existente nesses atos de agressão.
Concomitantemente, devem lançar mão dos inúmeros instrumentos processuais existentes com vistas a provocar a modificação da interpretação normativa e concretizar a defesa patrimonial da mulher por meio da efetiva punição do respectivo agressor.
[1] DELGADO, Mário Luiz. Violência doméstica contra o patrimônio da mulher. 2018. Acesso em 15 abr 2019. Disponível em:
[2] Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Acesso em 20 abr 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
[3] DELGADO, Mário Luiz. Violência doméstica contra o patrimônio da mulher. 2018. Acesso em 15 abr 2019. Disponível em:
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* Paula Frello Nogara Naschenweng – Advogada – Membro efetivo da Comissão de Combate à Violência Doméstica do IASC