Cazuza e o Direito Penal: quando a Poesia confronta o Sistema.
Por Thiago de Miranda Coutinho * – Membro Efetivo do IASC.
Reflexões Jurídicas sobre a Criminalização do Pensamento.
Durante a ditadura militar brasileira, jornalistas, advogados, músicos, poetas e intelectuais eram perseguidos. Imagine-se um jornalista vivendo naquele escabroso período de completa escuridão da decência humana, sendo obrigado a publicar uma receita de bolo no lugar de alguma reportagem censurada. Alternativa encontrada para, literalmente, preencher um espaço que ficaria vazio no impresso.
Ao menos essa era a versão “oficial” dada aos oficiais. Na verdade, era um ato de resistência daqueles que resistiam à infâmia; ao abuso; à truculência; àquela inteligência devidamente craseada de 1º de abril: mentirosa! Daquela cuja construção gramatical de um parágrafo não pode prescindir de uma releitura; literalmente ou não.
Mas como escreveu o combativo advogado criminalista, Antônio Carlos de Almeida Castro, o respeitado Kakay, “Os facistas são bárbaros que não tem capacidade de compreender a ironia e que detestam poesia.”
Afinal, como prega o Professor Doutor e Historiador gaúcho, Jorge Barcellos, “Escrever é um ato de resistência”.
Na mesma pauta, a música é uma expressão cultural que, muitas vezes, transcende o mero entretenimento, tornando-se um grito por liberdade, igualdade e justiça (aquela justa e perfeita). Há inúmeras canções emblemáticas com esse papel crítico e desafiador da arte; cantaremos mais adiante.
Além do dever cívico que carregam – pois insistem nas atemporais reflexões profundas sobre a liberdade de expressão e nos limites impostos à manifestação do pensamento –, a música também remonta a um passado recentíssimo do Brasil.
Durante o regime militar, o Brasil viveu um período de intensa repressão às liberdades individuais. Garantias constitucionais como o habeas corpus foram suspensas! Manifestar opiniões contrárias ao regime era considerado crime, frequentemente enquadrado na Lei de Segurança Nacional, o que resultava em perseguições, prisões, torturas, “desaparecimentos” e mortes.
Toda essa criminalização do pensamento não apenas violava a liberdade de expressão, mas também transformava o sistema penal em uma ferramenta de opressão. Ao punir ideias e ideais, o Estado deixava de lado os princípios fundamentais do Direito, como a legalidade, a proporcionalidade e a proteção de bens jurídicos concretos.
Mas “depois da tempestade vem a bonança”. Não é um ditado popular. É bíblico de Mateus 10,16-23. E continua atual.
Assim, com o fim da ditadura e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil iniciou um novo ciclo de democracia e respeito aos direitos fundamentais. O art. 5º, IV da Constituição consagrou a liberdade de expressão como direito inviolável: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”
Essa conquista representou um avanço significativo, mas trouxe consigo desafios para o equilíbrio entre a liberdade de expressão e outros direitos, como a honra, a dignidade e a privacidade. A transição para um Estado Democrático de Direito exigiu que o Direito Penal assumisse um papel mais moderado, focado em proteger bens jurídicos concretos e evitar a criminalização de condutas meramente simbólicas ou opinativas.
Notadamente, no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ser utilizado como última opção, ou seja, como a ferramenta final para lidar com conflitos sociais. E a criminalização do pensamento contraria esse princípio, ampliando o alcance do sistema penal de maneira desproporcional e contrária aos direitos fundamentais e, consequentemente, incompatível com os valores democráticos consagrados na Carta Mãe.
Com isso, o Direito carrega em si o desafio e a missão de equilibrar a proteção da liberdade de expressão com a tutela de outros direitos, garantindo que o passado de censura, repressão e perseguição jamais se repita. Sob todos os aspectos! Perseguição como a dos judeus que, na inquisição, foram perseguidos e julgados por serem quem são.
Eis portanto, um convite à reflexão proposta pela música “O Tempo Não Para”, imortalizada na voz de Cazuza, e que permanece atual porque aviva que a luta por liberdade e justiça é contínua.
“Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso.
Minha metralhadora cheia de mágoas; eu sou um cara.
Cansado de correr na direção contrária, sem pódio de chegada ou beijo de namorada; eu sou mais um cara.
Mas se você achar que eu to derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados. Porque o tempo, o tempo não para!
Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo sem um arranhão. Da caridade de quem me detesta.
A tua piscina tá cheia de ratos. Tuas ideias não correspondem aos fatos. O tempo não para!
Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para! Não para não, não para!
Eu não tenho data pra comemorar. Às vezes os meus dias são de par em par. Procurando agulha num palheiro.
Nas noites de frio é melhor nem nascer. Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer. E assim nos tornamos brasileiros.
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro.
A tua piscina tá cheia de ratos. Tuas ideias não correspondem aos fatos. O tempo não para!
Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para! Não para não, não para! ”
Mas o texto continua, pois o tempo não pode parar. Assim como não pode parar a resistência à mediocridade humana. Devamos pois, ter mais poesia no Direito, na Constituição, nas relações interpessoais, na vida e nos atos de resistir às mazelas diversas.
Poemas como “O Apanhador de Desperdícios”, de Manoel de Barros, cujas linhas dizem que “Só uso a palavra para compor meus silêncios”.
Poemas como os de Fernando Pessoa; vários deles! Mas aqui, com todas a vênias ao ilustre português, findo o artigo com um poema erroneamente atribuído a ele, que na verdade é de outro Fernando, o Teixeira de Andrade; dileto brasileiro Professor de Literatura falecido em 2008, que ensinou:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
*Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito, e pós-graduado em Inteligência Criminal. Escritor e coautor de livros, é articulista nos principais veículos jurídicos do país, integrante do corpo docente de Academia da Polícia Civil de SC (Acadepol), palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc). No ano de 2021, foi condecorado pela Associação Brasileira das Forças Internacionais de Paz pelos serviços prestados à comunidade de Inteligência. Em 2023, recebeu Moção de Aplauso da Alesc. Recentemente, ganhou destaque nacional por ser o autor da sugestão legislativa de propositura de Projeto de Lei (apoiada pelo Conselho Federal da OAB em 2022), que visa incluir no Código Penal, qualificadoras a crimes praticados contra Advogados no exercício da função (PL 212/2024). Instagram: @miranda.coutinho_
Referências:
ANDRADE, Fernando Teixeira de. O Medo: o maior gigante da alma. s/e, s/d.
BARCELLOS, Jorge. Plataforma Sler… Disponível em: https://sler.com.br/colunistas/jorge-barcellos/ . Acesso em 26 nov. 2024.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada. 2. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 2 dez. 2024.
BARROS, M. Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: Leya, 2013.
CAZUZA; BRANDÃO, Arnaldo. O tempo não para. Intérprete: Cazuza. In: CAZUZA. O tempo não para. Rio de Janeiro: Phillips Records, 1988.
KAKAY. Muito além do Direito: Reflexões sobre o direito, a justiça, a democracia, a poesia e a vida. São Paulo. Geração Editorial. 2021.