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INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA PRESUMIDA: INCOMPATIBILIDADE SISTÊMICA DA NORMA.

Por Paula Jacques Goulart – Membro Efetivo do IASC.

Considerações iniciais

O presente artigo tem como finalidade o estudo da interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior. A análise da natureza jurídica dessa infração, se objetiva ou subjetiva, será indispensável para o estudo proposto, porquanto as consequências desencadeadas em cada modalidade serão distintas em relação à aplicação das penalidades. Em vista disso, questionar-se-á a possibilidade de se empregar prova indireta para fins de caracterização de ilícito que tem na composição de seu enunciado a presença de elemento subjetivo. Por fim, será demonstrado que a caracterização da interposição fraudulenta, por meio indireto de prova (presunção) – na forma disposta no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei nº 37/1966 –, mostra-se incompatível com o texto constitucional, uma vez que viola o princípio da legalidade e tipicidade, bem como o princípio da não autoincriminação, decorrente do princípio da ampla defesa.

 

Estrutura das normas sancionatórias

Inicialmente, cumpre destacar que as normas sancionatórias se encontram sintaticamente estruturadas de uma hipótese – também denominada de antecedente, descritor ou suporte fático – e um consequente – mandamento ou prescritor.

A estrutura lógica da norma padrão sancionatória (H → C) conterá, no suposto normativo, o critério material: conduta transgressora dos deveres jurídicos estatuídos em lei (infração); critério espacial: local onde ocorreu a transgressão; e critério temporal: momento em que se considera ocorrida a conduta infringente. Já no consequente, observa-se a presença de dois critérios: o pessoal (sujeito ativo e passivo) e o quantitativo (base de cálculo e alíquota ou valor fixo).

Dessa forma, as normas sancionatórias serão compostas, na sua hipótese, da descrição de um fato que representa o descumprimento de uma norma primária (norma de conduta). Em razão disso, a infração (ilícito) consiste no núcleo da materialidade do antecedente da norma sancionatória, que expressará uma ação ou omissão representada pelo descumprimento dos deveres jurídicos prescritos na legislação[1].

Em linhas gerais, as infrações podem ser subdividas em infrações objetivas e subjetivas:

 […] é imprescindível tomar consciência de que as infrações podem ser subdivididas segundo dois campos: (i) objetivo e (ii) subjetivo. O critério classificatório é a referência legal à participação subjetiva do agente na descrição hipotética do fato antecedente da norma penal tributária.[2]

Quando tratamos das infrações objetivas, a intenção do sujeito passivo é irrelevante para a aplicação sancionatória, bastando, para tanto, a comprovação do resultado descrito no antecedente normativo. Com isso, não há de se falar em comprovação de dolo ou culpa, pois a transgressão da norma é apurada unicamente com resultado da conduta. Por outro lado, as infrações subjetivas requerem a presença do elemento volitivo, dolo ou culpa, sem os quais não é possível imputar o resultado ao agente.

Nesse ponto, vale ressaltar os ensinamentos de Maria Ângela Paulino:

[…] a configuração da infração objetiva independe de culpa ou do dolo, sendo imputada quando comprovada a presença de três requisitos: a) conduta; b) resultado; e c) nexo de causalidade entre conduta e resultado.

[…] na infração subjetiva, o elemento volitivo consiste no critério classificatório, de modo que se configurará, subjetivamente, a infração quando verificados os seguintes pressupostos: a) conduta; b) resultado; c) nexo de causalidade entre conduta e resultado; e d) dolo (intenção de praticar o fato contrário à lei e de produzir o resultado) ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia).[3]

Dessa forma, a classificação das infrações em objetivas e subjetivas mostra-se relevante, porquanto a comprovação da materialidade da conduta, em cada modalidade, será distinta e, por consequência, a aplicação das penalidades.

 

Caracterização da interposição fraudulenta

A interposição fraudulenta encontra-se tipificada no inciso V do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, incluído pela Medida Provisória nº 66/2002, convertida na Lei nº 10.637/2002:

Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

[…]

V − estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

Extrai-se do dispositivo que a infração usualmente denominada de interposição fraudulenta consiste em uma operação de importação ou exportação intermediada com o intuito de ocultar, mediante artifício doloso (fraude ou simulação), o real responsável pela operação.

Referida infração é sancionada com aplicação de penalidade mais severa no âmbito administrativo. Isso porque está sujeita à pena de perdimento de bens, ou ainda, no caso de não serem encontrados, à multa substitutiva equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias.

A pena de perdimento dos bens, por seu turno, segundo informa José Eduardo Soares de Melo,

representa o ressarcimento da União pelo prejuízo causado por alguém, revestindo a natureza de uma pena, comportando a existência de um benefício ao particular, de um dano ao Poder Público, resultantes de atos particular.[4]

O bem jurídico tutelado na presente infração é o controle aduaneiro, e, com isso, a identificação das partes intervenientes nas operações de comércio exterior mostra-se essencial[5].

O núcleo da materialidade da infração, portanto, compreende (i) a ocultação do sujeito passivo (ii) mediante fraude ou simulação. A respeito da parte final do dispositivo – “inclusive a interposição fraudulenta de terceiros” –, aliamo-nos ao que defende Solon Sehn, que entende a expressão como desnecessária e redundante, porque:

Na simulação, as partes agem em conluio para emitir uma declaração de vontade enganosa no intuito de produzir efeitos jurídicos diversos dos ostensivamente indicados. A interposição de pessoas nada mais é do que uma simulação subjetiva, que é marcada pela presença de um testa-de-ferro– denominado presta-nome, homem de palha ou, em linguagem mais atual, laranja–, que adquire, extingue ou modifica direitos para um terceiro oculto. Logo, toda ocultação do real importador ou exportador mediante simulação será sempre uma simulação subjetiva. Essa, por sua vez, também pode ser denominada simulação por interposição de pessoas, interposição fictícias de pessoas ou, simplesmente, interposição fraudulenta de terceiros. Trata-se, assim, do mesmo vício, com designações alternativas e equivalentes.[6]

No entanto, a parte final do dispositivo vem sendo interpretada equivocadamente, porquanto tem sido utilizada para fins de afastar a imprescindibilidade da prova de que a ocultação ocorreu de forma dolosa. As decisões administrativas, inclusive, têm penalizado partes que aplicaram, equivocadamente, um dos regimes de importação, ou, ainda, aqueles que, ao registrarem a declaração de importação, incorrerem em algum equívoco formal.

Entendemos, portanto, que essa infração, para ser devidamente caracterizada, pressupõe a conduta de “ocultação do real comprador” qualificada pela presença da “fraude ou simulação”, o que, por consequência, atrai a participação do elemento volitivo, dolo ou culpa, sem os quais não é possível imputar o resultado ao agente.

A fraude, de acordo com De Plácido e Silva, entende-se “[…] como o engano malicioso ou a ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever”. E, ainda, traz consigo o sentido de engano,“[…] mas o engano oculto para furtar-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para logro de terceiros. É a intenção de causar prejuízo a terceiros”[7].

Cumpre destacar, ademais, que, em relação à fraude, conforme Solon Sehn[8], não há uma ocultação, visto que o negócio jurídico é verdadeiro e objetivado pelas partes que cumprem a literalidade da lei; no entanto, seu sentido é transgredido. Portanto, referido autor defende que o termo “fraude”, disposto no inciso V do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, deveria ser interpretado como simulação fraudulenta, já que pressupõe a ocultação de uma das partes, o que, por sua vez, torna o negócio jurídico não verdadeiro. Alinhamo-nos a esse entendimento, uma vez que, para interposição fraudulenta, deve compreender conduta consubstanciada na ocultação mediante simulação[9].

Ainda, em relação à fraude, vale destacar que poderíamos interpretá-la com base no conceito de fraude fiscal, a teor do preconizado no art. 72 da Lei nº 4.502/1964:

Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.

Porém, como já expusemos, o bem tutelado na presente infração é o controle aduaneiro, não se limitando, contudo, a tipificação da interposição fraudulenta a fatos lesivos com repercussão tributária. No entanto, pode ocorrer que a ocultação reflita na redução de tributos, a exemplo do que acontece na chamada quebra da cadeia do IPI. No entanto, o ilícito da interposição fraudulenta não se correlaciona, essencialmente, a ações tendentes a impedir, retardar ou reduzir o recolhimento de tributos, pois a ocultação pode não ensejar qualquer repercussão tributária. Logo, não se pode partir de um conceito restrito (fraude fiscal) para fins de conceituar um ilícito de maior abrangência (fraude aduaneira). Caso contrário, teríamos de limitar a aplicação do inciso V do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 aos fatos com reflexos tributários.

A simulação, por outro lado, consoante Washington de Barros Monteiro, constitui um defeito do negócio jurídico no qual as partes, em conluio, emitem declaração falsa de vontade objetivando produzir efeitos jurídicos diversos dos manifestamente indicados:

[…] a simulação traduz uma inverdade. Ela caracteriza-se pelo intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato realmente querido. Como diz Clovis, em forma lapidar, é a declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado.[10]

Destarte, como se vê, a materialidade da infração tipificada no art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976 pressupõe a ocultação mediante fraude e simulação[11], o que, por consequência, denota a essencialidade da presença do elemento subjetivo que integra o fato típico.

Com efeito, convém rememorar, a propósito, que a interposição fraudulenta é uma infração subjetiva, isto é, requer a presença do elemento volitivo, dolo ou culpa, sem os quais não é possível imputar o resultado ao agente.

Dessa forma, trata-se de infração que pressupõe a presença de elemento subjetivo para fins de que ocorra a subsunção do fato infracional à hipótese da norma sancionatória. Dito de outro modo, o elemento subjetivo é característica exigida pelo fato e, por consequência, deve participar na composição do critério material da hipótese da norma sancionatória, sob pena de obstaculizar a própria configuração da ilicitude.

Isto posto, podemos afirmar que o suposto normativo da norma sancionatória da regra disposta no art. art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/76, em relação ao critério material, pode ser assim representado:

Critério Material

Hipótese:

Ocultação                  +         mediante fraude ou simulação

Conduta transgressora        +        Elemento subjetivo

Essas reflexões iniciais mostram-se indispensáveis para a análise do objeto do presente artigo, qual seja, a inconstitucionalidade da regra disposta no § 2º do art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, na redação dada pela Lei nº 10.637/2002, que autoriza a caracterização de infrações subjetivas por meio de prova indireta (presunção).

 

A inconstitucionalidade da interposição fraudulenta presumida

 Como expusemos linhas acima, as infrações objetivas caracterizam-se independentemente da intenção do agente, bastando, para tanto, a comprovação do resultado descrito no enunciado hipotético, sem, contudo, ser necessária a comprovação do dolo ou culpa.

A ausência dos elementos volitivos – culpa e dolo – na materialidade do ilícito é justamente o atributo que qualifica a objetividade da infração. Logo, ocorrendo o evento – desde que vertido em linguagem jurídica com suporte nos elementos de provas exigidos –, irrompe a relação jurídica sancionatória.

Entretanto, diferentemente ocorre no domínio das infrações subjetivas, que, obrigatoriamente, prescindem da prova do elemento dolo e culpa. Ao Fisco, portanto, compete, com

toda gama instrumental dos seus expedientes administrativos, exibir os fundamentos concretos que revelam a presença do dolo ou da culpa, como nexo de participação do agente e o resultado material que dessa forma se produziu.[12]

Estamos certos, portanto, com suporte nas lições de Paulo de Barros Carvalho, de que as presunções não podem ser admitidas no campo das infrações subjetivas, porquanto não há como presumir o elemento volitivo da conduta, pois o“dolo e a culpa não se presumem, provam-se”[13].

E, ainda, continua o autor:

A despeito disso, predicando contornar obstáculos que adviriam à atividade de fiscalização dos tributos, caso tivesse ela de pautar-se dentro desses parâmetros estritamente legais, serve-se o legislador do apelo à presunção, que equipara, desatinadamente, as infrações subjetivas às objetivas. Tais preceitos brigam com a organização do nosso direito positivo, que não comporta equiparação dessa índole, agredindo a sólida estrutura de institutos jurídicos seculares e maculando por inteireza de direitos fundamentais consagrados no texto do Estatuto Supremo.[14]

Por outro lado, Florence Haret entende que a legislação poderá cominar ilegalidades tributárias subjetivas de forma presuntiva desde que não o faça quanto aos elementos dolo e culpa:

Nessa linha, é perfeitamente possível à lei cominar ilegalidade tributária subjetivas de forma presuntiva, desde que não o faça nos elementos dolo e culpa que compõe a infração. Dessa maneira, nem mesmo o legislador, no domínio das infrações subjetivas, poderá presumir o fato integralmente, limitando-se, por imposição do próprio sistema, àqueles critérios que conformam o antecedente da norma, mas que não toca justamente naquilo que confere subjetividade à infração.[15]

Destarte, para essa autora, ainda que seja possível a prova indiciária para fins de tipificação do ilícito subjetivo, o Fisco, além de provar a materialidade do fato indiciário, para fins de caracterização da infração, deve também fazer prova do elemento subjetivo que integra o fato típico[16].

Em vista disso, o emprego de presunções (prova indireta), para fins de caracterização de ilícitos que exijam o elemento subjetivo em relação à composição do fato jurídico, não encontra guarida no ordenamento jurídico.

Todavia, tal prática, contrária ao ordenamento jurídico, foi introduzida pelo § 2º do art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, a respeito da redação dada pela Lei nº 10.637/2002:

Art. 23. […]

Referido dispositivo autorizou a aplicação de norma sancionatória cuja materialidade pressupõe a presença de elementos subjetivos apenas com suporte em regra presuntiva, uma vez que a não comprovação da origem, disponibilidade ou transferência dos recursos empregados na operação de comércio exterior, por si só, caracteriza a interposição fraudulenta, dispensando-se, por consequência, a verificação do elemento subjetivo do tipo.

Trata-se, portanto, de dispositivo legal que admite a penalização, apenas, com amparo em meio indireto de prova, isto é, sem que seja necessária a comprovação do elemento subjetivo do tipo.

Essa exegese, como destacado, não se sustenta, porque atesta a suficiência da comprovação do fato presuntivo para a formação do fato presumido, que, no caso da interposição fraudulenta, possui natureza de infração subjetiva[17].

Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho destaca:

Na trilha dessa orientação, que prestigia soberanamente o ordenamento jurídico como sistema, em detrimento da letra fria e isolada dos escritos da lei, já existem importantes manifestações do Poder judiciário, emanadas, principalmente, do antigo Tribunal Federal de Recursos, repudiando peremptoriamente o emprego de interpretações presuntivas no plano de ilícitos que requerem os elementos subjetivos na integralidade de seus enunciados. De fato, o tema das presunções no direito tributário deve ser observado com mais cautela.[18]

Ainda que o §2ºdo art.94 do Decreto-Lei nº 37/1996 estabeleça que as infrações aduaneiras tenhamnatureza objetivanota-se que esse dispositivo contraria os princípios e garantias penais que também se aplicam ao direito administrativo sancionatório.[19]Ademais, a responsabilidade objetiva se mostra incompatível com a Convenção de Quioto Revisada (Anexo J 3.39),ao passo que esta afasta a cominação de penalidades excessivas em caso de erros que não sejam cometidos com intenção fraudulenta, isto é, aqueles erros cometidos de boa-fé:

3.39. Norma

As Administrações Aduaneiras não aplicarão penalidades excessivas em caso de erros, se ficar comprovado que tais erros foram cometidos de boa-fé, sem intenção fraudulenta nem negligência grosseira. Quando as Administrações Aduaneiras considerarem necessário desencorajar a repetição desses erros, poderão impor uma penalidade que não deverá, contudo, ser excessiva relativamente ao efeito pretendido.

Dessa forma, entende-se que a caracterização da infração de interposição fraudulenta apenas com amparo em uma presunção – sem comprovação do elemento subjetivo do tipo – viola o princípio da segurança e certeza jurídica – decorrente do princípio da legalidade e da tipicidade, bem como a Convenção de Quioto Revisada (Anexo J 3.39).

Por outro lado, afastando-se um pouco do fato de ser inconstitucional a instituição de regra presuntiva para fins de caracterização de infração subjetiva, extrai-se do § 2º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 o intento de inverter o ônus probatório de modo a compelir os importadores a colaborarem com a fiscalização, ainda que essa “colaboração” possa ser utilizada em seu desfavor na esfera penal.

Assim, questionamos: poderia o legislador imputar uma sanção – com pena mais gravosa no âmbito administrativo (pena de perdimento) – que tem como pressuposto o exercício do direito constitucional de permanecer calado (não autoincriminação)? A resposta é negativa[20].

Aos acusados de práticas delituosas é assegurado o direito ao silêncio como forma de defesa. A propósito, como destaca Hugo de Brito Machado, ao citar Nuno Sá Gomes:

[…] na medida em que o ilícito tributário é definido como crime, tem-se um conflito entre o dever de prestar informação ao Fisco e o direito de não se autoincriminar, constitucionalmente assegurado aos acusados de prática delituosas.[21]

Diante dessa constatação, Solon Sehn preceitua:

 Toda penalização, no Estado Democrático de Direito, somente é válida quando tem como pressuposto a prática de uma conduta valorada negativamente pela ordem jurídica. Por outro lado, não pode ser considerada ilícita a conduta.Toda penalização, no Estado Democrático de Direito, somente é válida quando tem como pressuposto a prática de uma conduta valorada negativamente pela ordem jurídica. Por outro lado, não pode ser considerada ilícita a conduta.[22]

 Como se sabe, o direito a permanecer calado decorre do princípio da ampla defesa. Destacam-se, nesse sentido, as lições de Pinto Ferreira:

O acusado ter o direito de não autoincriminar-se também é uma decorrência de plena ou ampla defesa.

[…]

O acusado tem o direito de não autoincriminar-se, pois o direito que tem de não dizer a verdade é um direito à ampla defesa natural (à la defense naturelle) já reconhecia Montesquieu […].[23]

Além disso, o direito ao silêncio está assegurado expressamente no art. 5º, LXIII, LIV e LV, da Constituição Federal, que, como dito, decorre do direito fundamental da ampla defesa.

Logo, do estudo proposto, verificam-se duas incompatibilidades intransponíveis do §2º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976. A primeira autoriza a caracterização de infração subjetiva, imputando-se as consequências da norma sancionatória, com amparo em regra presuntiva (prova indireta), o que viola os princípios da segurança e certeza jurídica – decorrentes do princípio da legalidade e da tipicidade. A segunda diz respeito à impossibilidade de aplicação de penalidade em decorrência do exercício de um direito fundamental, qual seja, o de permanecer em silêncio – não autoincriminação –, assegurado constitucionalmente.

Dessa forma, entende-se pela inconstitucionalidade do § 2º do art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, na redação dada pela Lei nº 10.637/2002, uma vez que viola os princípios da segurança e certeza jurídica – decorrentes do princípio da legalidade e da tipicidade, bem como o princípio da não autoincriminação, decorrente do art.5º, LXIII, LIV e LV, da Constituição Federal.

 

Considerações finais

Diante do estudo empreendido, pode-se concluir que o § 2º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 mostra-se inconstitucional. O referido dispositivo, que institui a interposição fraudulenta na forma presumida, incorre em duas inconsistências jurídicas intransponíveis que não podem ser admitidas no ordenamento jurídico.

A primeira delas consiste na caracterização da interposição fraudulenta, imputando-se as consequências da norma sancionatória, com amparo em técnica presuntiva (prova indireta), o que, como restou aclarado, é insuficiente para fins de comprovação do elemento volitivo do tipo (fraude e simulação). A segunda diz respeito à impossibilidade de aplicação de penalidade em decorrência do exercício de um direito fundamental, qual seja, o de permanecer em silêncio – não autoincriminação –, assegurado constitucionalmente.

Portanto, não há dúvidas de que as presunções não podem ser admitidas no campo das infrações subjetivas, como é o caso da interposição fraudulenta, porquanto não há como se presumir o elemento volitivo da conduta.

De igual modo, o sujeito passivo não pode ser penalizado por sua não colaboração com a autoridade aduaneira, uma vez que não é obrigado a fornecer elementos de prova que o prejudique (não autoincriminação) – direito este, inclusive, assegurado constitucionalmente.

Logo, a caracterização da interposição fraudulenta por meio indireto de prova (presunção) – disposta no §2º do art. 1º do Decreto-Lei nº 37/1966 – é incompatível com o texto constitucional, pois viola os princípios da segurança e certeza jurídica –, decorrentes do princípio da legalidade e da tipicidade – art. 5º, II, da Constituição Federal), bem como o princípio da não autoincriminação, decorrente do art.5º, LXIII, LIV e LV, da Constituição Federal.

 

Referências

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ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.

ATALIBA, Geraldo apud ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.

BARROS, Washington. Curso de direito civil: parte geral. 31. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1993.

BORGES, Souto Maior. Lançamento tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário – Linguagem e método. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2015.

______. Derivação e positivação no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011.

HARET, Florence. Teoria e prática das presunções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2010.

MACHADO, Hugo de Brito. Normas gerais de direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2018.

PADILHA, Maria Ângela Lopes Paulino. Sanções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2015.

SEHN, Solon. Comentários ao regulamento aduaneiro: infrações e penalidade. São Paulo: Aduaneiras, 2019.

______. Curso de direito aduaneiro. Forense. Edição do Kindle.

______. Curso de Direito Aduaneiro. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses. Edição Kindle.

MELO, José Eduardo Soares de. Sanções administrativas tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções administrativas tributárias. São Paulo: Dialética, 2004.

[1]A infração, para Luciano Amaro, “[…] é um comportamento qualquer, por ação ou omissão, contrário a uma norma jurídica. É uma conduta omissiva ou comissiva que infringe um comando legal” (AMARO, Luciano. Infrações tributárias. RDT, São Paulo, 67, p. 25, 1995).

[2] HARET, Florence. Teoria e prática das presunções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2010. p. 530.

[3]PADILHA, Maria Ângela Lopes Paulino. Sanções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2015. p. 41.

[4]MELO, José Eduardo Soares de. Sanções administrativas tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções administrativas tributárias. São Paulo: Dialética, 2004. p. 240.

[5] Cumpre destacar, conforme pontua Solon Sehn: “A adequada identificação das partes é uma das preocupações mais relevantes e atuais no plano da tributação internacional. De acordo com levantamento mais recente, estima-se que, em termos de valor, entre 60% e 70% das operações globais de importação e de exportação envolvem partes relacionadas. Essa particularidade, de um lado, dificulta a precificação das mercadorias, já que nem sempre há bases objetivas para alocação adequada das margens de geração ou agregação de valor entre unidades da mesma empresa. De outro lado, abre espaço para práticas abusivas de modulação do preço da importação e de exportação” (SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. Forense. Edição do Kindle, p. 966).

[6] SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. Forense. Edição do Kindle, p. 968.

[7] DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. II, 1978. p. 718.

[8] SEHN, Solon. Op. cit., p. 969.

[9] Ainda, destaca Solon Sehn que “a simulação também pode ser empregada como instrumento de fraude à lei. […] Nesses casos, ocorre uma espécie de ‘amálgama’ entre essas duas categorias e a simulação […]” (SEHN, Solon. Op. cit., p. 969).

[10] BARROS, Washington. Curso de direito civil: parte geral. 31. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1993. p. 207.

[11] Especificamente, seguimos o entendimento de Solon Sehn, que precisamente identifica a essencialidade de que a prática ocorra mediante o emprego de simulação subjetiva ou fraude à lei (SEHN, Solon. Op. cit., p. 970).

[12]CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 954.

[13]Ibid., p. 956.

[14]Ibid., p. 956.

[15] HARET, Florence. Op. cit., p. 535-536.

[16]Ibid., p.540.

[17] A subjetividade das infrações aduaneiras é destacada por Solon Sehn: “Todas as infrações aduaneiras devem ser interpretadas como infrações subjetivas. Afinal, como ressaltado pelo Ministro Luís Roberto Barroso no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 727.872/RS, em contexto distinto, mas aplicável à hipótese: ‘[…] não se está aqui a tratar de direito penal, mas de todo modo estamos no âmbito do direito sancionador. Genericamente, sempre que o antecedente de uma norma for um comportamento reprovável e o consequente uma punição, é absolutamente indispensável fazer uma análise do elemento subjetivo da conduta’. Portanto, a penalização dos agentes pressupõe a demonstração de que os sujeitos agiram com a vontade consciente de burlar o preceito legal proibitivo” (SEHN, Solon. Op. cit., p. 974-975).

[18] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 956.

[19]SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 477.  “ Nada justifica, entretanto, a inaplicabilidade dos princípios e garantias penais ao direito administrativo sancionatório. Ambos são manifestações do mesmo ius puniendi do Estado.”

[20] Para Geraldo Ataliba, sempre que exercido o direito de punir, este incide, automaticamente, sobre o regime jurídico punitivo: “Constitui exigência constitucional que toda vez que se configure situação em que o particular esteja diante do Estado no exercício de seu direito de punir (castigar), incide automática e imediatamente o chamado regime jurídico punitivo, assim designado o conjunto de preceitos constitucionais e legais que estabelecem limitesprocedimentais, processuais e substanciais à ação do Estado, nesta matéria (exercício do jus puniendi)” (ATALIBA, Geraldo apud ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 42).

[21] MACHADO, Hugo de Brito. Normas gerais de direito tributário.São Paulo: Malheiros, 2018. p. 352.

[22]SEHN, Solon. Op. cit., p. 980.

[23] GOMES, Nuno Sá apud MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 352.

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