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ASPECTOS JURÍDICOS DOS FUNDOS PATRIMONIAIS (ENDOWMENTS) no BRASIL

“Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens nada façam”.Edmund Burke

 André Luís Vieira[1] – Membro Efetivo do IASC

 

Considerações iniciais

 Os fundos patrimoniais filantrópicos, tratados internacionalmente por endowment funds, foram incorporados à realidade brasileira com o advento da Lei nº 13.800, de 4 de janeiro de 2019. Esta legislação inaugurou novo paradigma para o terceiro setor, fazendo-o ultrapassar antigos modelos assistencialistas, caracterizados pela clara dependência de recursos públicos e amplamente marcados pela baixa eficiência na consecução de projetos sociais.

A citada legislação possibilitará ao terceiro setor afirmar-se como parceiro fundamental da sociedade e do Estado em projetos fomentadores de desenvolvimento social, mediante a profissionalização da gestão dessas entidades, vez que estarão lastreadas por critérios de transparência, governança e sustentabilidade financeira. Discute-se, portanto, a tentativa de superação do atual modelo administrativo burocrático e centralizador, pelo modelo gerencial e descentralizado, visando à efetividade na concretização do resultado esperado em atividades de interesse público, estabelecida como objeto social ou estatutário de entidades do terceiro setor.

Apenas para efeito de demonstração quantitativa, segundo dados estatísticos referentes ao ano de 2016 e divulgados em 2019, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o terceiro setor no Brasil movimentou R$ 80,4 bilhões, por intermédio de 237 mil fundações privadas e associações, o que perfazia uma média remuneratória mensal para profissionais desse segmento, no valor de R$ 2.653,33 e gerando um parâmetro de 2,3 milhões empregos formais.

É neste contexto, portanto, que a referida Lei nº 13.800/2019 estabelece o regime jurídico aplicável aos endowments no Brasil, somando-se às demais leis e decretos atinentes ao terceiro setor, quando aplicáveis a esses fundos, de forma subsidiária.

É o caso da Lei nº 9.637/1998 (Lei das Organizações Sociais), a qual rege o regime jurídico-administrativo específico das fundações privadas e associações, nas quais se estruturam o modelo de constituição de fundos patrimoniais. Neste ponto, por exemplo, atenta-se, particularmente, para a Lei nº 13.151/2015, que trata das finalidades públicas das fundações, quanto ao prazo para manifestação do Ministério Público sobre suas alterações estatutárias e a remuneração dos seus dirigentes, e que serve de parâmetro lógico-jurídico, por analogia, para a remuneração das demais entidades sem fins lucrativos, assim como para a Lei nº 13.019/2014, que estabelece o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).

 

Alcance e escopo legal

A Lei nº 13.800/2019 estabeleceu que os fundos patrimoniais poderão apoiar instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos e seus órgãos vinculados, atuantes nas áreas da educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social, desporto, segurança pública, direitos humanos e demais finalidades de interesse público.

A disposição legal exige a criação de figura jurídica específica, nesse caso associação ou fundação privada, para a gestão dos recursos captados. Tal exigência transporta a responsabilidade pela instituição e administração desses recursos para organização gestora competente, nos termos do art. 6º da Lei nº 13.800, de 2019. Essa organização gestora ficará responsável por fazer o repasse dos rendimentos do fundo para as instituições apoiadas, que poderão ser tanto públicas, quanto privadas. A separação entre organização gestora e apoiada visa proteger o fundo de eventuais passivos das instituições recebedoras dos recursos financeiros.

Trata-se, portanto, de hipótese de destinação somente de recursos privados para apoiar instituições públicas ou privadas dedicadas à consecução de finalidades de interesse público. Para tanto, a lei também estabeleceu como cerne de seu escopo os critérios e as finalidades institucionais para a criação de organização gestora do fundo patrimonial e de sua governança, bem como hipóteses de receitas em doação e utilização de recursos, formalização de instrumentos de parceria e termos de execução de programas de projetos, aplicação de recursos dos fundos e execução de despesas.

A norma de regência, no entanto, não consagra mecanismos de isenção fiscal, por exemplo, o que certamente incentivariam as doações, estimulando a atração de recursos privados. Ou seja, a legislação traz a observância de critérios específicos para a formalização de parcerias e apoio à projetos envolvendo fundos patrimoniais, com a clara vantagem da segurança jurídica e a exigência da profissionalização de seus agentes, mas não privilegia estruturas de incentivo fiscal mais contundentes às hipóteses de doação de recursos.

Justamente por isso, um dos pontos mais debatidos, por ocasião da sanção da legislação em comento, foram as oposições à criação de incentivos fiscais, designadamente quanto a não incidência do imposto de transmissão causa mortis e doações (ITCMD), reconhecidamente um valiosíssimo instrumento de estímulo às doações de pessoas físicas e jurídicas. Trata-se de horizonte resistente às políticas de desoneração fiscal, característica de um Estado cuja a sana arrecadatória é crescente e imediatista, em detrimento de benefícios sociais de médio e longo prazo. Contudo, importa salientar que, na área da cultura, estabeleceu-se a possibilidade de utilização do incentivo previsto na Lei nº 8.313/1991 (Lei de Incentivo à Cultura).

Portanto, como dito, apesar da lei não ter contemplado incentivos fiscais específicos às doações para endowments ou regime tributário especial para entidades mantenedoras de fundos patrimoniais, a legislação dispõe de alguns mecanismos existentes: i) ensino e pesquisa; entidades civis sem fins lucrativos, adequadas à Lei nº 13.019/2014; ii) fundos dos direitos da criança e do adolescente; iii) projetos culturais e artísticos; iv) projetos audiovisuais; v) projetos de esporte; vi) fundos do idoso; vii) atenção oncológica; viii) pessoas com deficiência.

Na esteira dessa legislação de regência, foi publicada a Portaria nº 5.918/2019, de 29 de outubro, dispondo sobre o apoio institucional do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para as entidades privadas e sem fins lucrativos, que atuem como gestoras de fundos patrimoniais, desde que tais fundos estejam alinhados com os objetivos e diretrizes da Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação – ENCTI.

Para tanto, essas entidades gestoras de fundos patrimoniais devem ter como objetivo arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para instituições, públicas ou privadas, que desenvolvem atividades de ciência, tecnologia, pesquisa ou inovação. Dentre as exigências para receber o apoio institucional do MCTIC, na consecução de auxílio na captação de recursos, na articulação para a redução da burocracia e no ambiente para divulgação de Projetos; tais entidades devem cumprir as regras de governança de fundos determinada pela citada portaria, o que acarreta, necessariamente, a oportunidade de adequação de seus estatutos sociais ou atos constitutivos e regulamentos internos àquela normativa.

Dessa forma, fundos patrimoniais destinados ao apoio de atividades de CT&I poderão conceber fontes de recursos de longo prazo, visando ao fomento por meio da aquisição de bens, contratação de pessoal ou fornecimento de materiais, equipamentos ou serviços essenciais para a realização dessas atividades. No artigo 2º, da referida portaria, resta explicitado como se operacionalizará o amparo institucional a ser oferecido pelo MCTIC.

Cabe ressaltar que os fundos patrimoniais existentes anteriormente à Lei nº 13.800/2019 podem seguir outros modelos jurídicos, porém, quando estes apoiarem entidades públicas voltadas às atividades de CT&I, deverão observar, para efeito dessa portaria, além da referida legislação de regência, a Lei nº 8.958/1994.

Para efeito de exemplo, o MCTIC já firmou termos de apoio institucional com a Fundação Coppetec, Fundação de Apoio e Desenvolvimento ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Fadepe), Fundação Arthur Bernardes (Funarbe), Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), Fundação Uniselva e a Fundação de Desenvolvimento de Tecnópolis (Funtec).

 

Aspectos conceituais e legais

Para decorrências de nivelamento conceitual e estratificação de entendimentos, os fundos patrimoniais filantrópicos ou endowments, recebem o tratamento legal de fundos permanentes de recursos financeiros, que devem ser estruturados por meio de modelo de gestão transparente de investimentos de longo prazo e com governança apropriada.

O cerne da operação reside no equilíbrio da preservação do montante principal, almejando-se a sua perenidade na obtenção de recursos privados, mediante doação, enquanto se realiza o fomento aos vínculos de cooperação entre as entidades do terceiro setor e a sociedade, por intermédio da consecução de projetos sociais de interesse público. Reforça-se, portanto, que o aspecto primordial da missão finalística de fundos dessa natureza reside na utilização dos rendimentos auferidos em proveito de projetos sociais alinhados à estrutura estatutária assumida pela entidade privada sem fins lucrativos que os executam.

As ideias-força conferidoras de existência e validade à disciplina jurídica dos fundos patrimoniais asseguram que: i) o conjunto de ativos permanentes (recursos financeiros, títulos, imóveis, entre outros) deve estar resguardados em proveito de finalidades institucionais e estabelecido na criação ou adequação de uma organização (associação, fundação privada); ii) a preservação e, sempre que possível, o incremento do valor principal, por intermédio da aplicação dos recursos, de acordo com regras de governança e políticas de investimento predefinidas pelas entidades e seus gestores; iii) a utilização dos rendimentos, no todo ou em partes, do valor principal, por intermédio de repasses em favor da entidade apoiada, mediante prévio estabelecimento de regras de utilização, captação e resgate dos recursos; iv) a constituição de mecanismos de captação de recursos para garantir a sustentabilidade financeira e o planejamento de ações a longo prazo (perpetuidade); e, v) a organização social que se predisponha a instituir e gerir um endowment deve atentar para o alinhamento de sua estrutura estatutária com sua representatividade social, habilitação técnica e com as finalidades públicas consagradas em seu ato constitutivo, preservando para isso a não incidência de conflitos de interesse e mecanismos rígidos de governança e transparência.

Consoante aos primados conceituais da lei de regência, a estrutura desses fundos se alicerçam em dois pilares basilares, quais sejam: a estabilidade, como fonte permanente de captação e alocação de recursos e planejamento no longo prazo (perpetuidade), e a autonomia, enquanto meta de autogestão para a redução da dependência financeira, o que agregará longevidade, solidez e credibilidade.

Contudo, sem a observância específica das sobreditas finalidades institucionais dessa espécie de fundo, a atuação superavitária da operação pode ensejar desvio de finalidade, a depender do nível de risco a se submeter, mesmo a título de maximização dos recursos a serem empregados em projetos sociais. O alerta serve para não se deslegitimar como um todo o processo de formalização do endowment.

Para tanto, as organizações gestores, entidades subsumidas à lei em sentido estrito e não à mera concessão do título de utilidade pública por órgão legislativo, devem preservar sua credibilidade institucional, ponderando o interesse em realizar investimentos arrojados e de alto risco, uma vez que tal fato pode se considerar verdadeiro paradoxo, visto que uma entidade sem fins lucrativo não deveria se preocupar apenas com alta rentabilidade fundos, sob pena de que se correr o risco de dilapidar o montante principal.

O paradoxo, portanto, reside no fato de que uma instituição sem fins lucrativos não deveria focar na utilização de recursos de fundos patrimoniais que visa ao atendimento de projetos sociais em mercado especulativo de alto risco, o que poderia ensejar a deslegitimação de sua própria atuação como entidade sem finalidade lucrativa.

Consabido, o modelo brasileiro é inspirado nos endowments educacionais norte americanos, justamente por se constituírem em experiências bem-sucedidas, de reconhecimento internacional, notadamente quanto analisados como benchmarking em relação aos fundos ligados às universidades e centros de excelência em pesquisa e inovação.

Na realidade norte americana, tratam-se de entidades organizadas de maneira autônoma, com personalidade jurídica própria, mas que devem operar em estreita coordenação com instituições apoiadas e, para isso, podem receber doações diretamente e estão previstos na legislação tributária como charities públicas, qualificando-se para receber doações com o teto de dedutibilidade fiscal, de até 50% do valor exigível sobre o montante doado.

Neste particular, a escolha de tais fundos para doação e apoio envolve um processo criterioso e aprimorado, estabelecendo-se requisitos de elegibilidade para assegurar a transparência e a confiabilidade das instituições, obrigadas a publicar os critérios de doações, relatórios anuais, membros do conselho, dentre outras informações relevantes.

Já no caso brasileiro, a Lei nº 13.800/2019 sistematizou a operação de forma a ser criado um conjunto de organizações, a exemplo da organização gestora de fundo patrimonial, que deve figurar como associação ou fundação privada, instituída com o escopo de atuar, exclusivamente, na captação e na gestão das doações oriundas de pessoas físicas e jurídicas e do patrimônio constituído.

Porém, no caso das fundações de apoio credenciadas na forma da Lei nº 8.958/1994, estas equiparam-se às organizações gestoras definidas no inciso II do artigo 2º da Lei nº 13.800/2019, para efeitos de gestão dos fundos patrimoniais instituídos nestas entidades fundacionais, desde que as doações sejam geridas e destinadas em conformidade com a esta própria norma de regência (art. 2º, parágrafo único).

Da forma como restou estruturada pela legislação, a organização executora, pode figurar como instituição pública ou privada, desde que, por óbvio, não detenha finalidade lucrativa e se mantenha dedicada à consecução de finalidades de interesse público e beneficiários de programas, projetos ou atividades financiadas com recursos de fundo patrimonial.

Explicitando ainda mais o contido no inciso VII do artigo 2º, retro citado, a figura do instrumento de parceria se apresenta como espécie de acordo a ser firmado entre a organização gestora de fundo patrimonial e a instituição apoiada, no qual estabelecerá o teor do vínculo de cooperação entre as partes, assim como a instituição a ser apoiada e seus respectivos projetos contemplados. Neste pacto serão definidos, ainda, as condicionantes e demais regras para a destinação de recursos à programas, projetos ou atividades de interesse público.

O estabelecimento dos parâmetros de governança para os fundos, exige que as organizações gestoras deverão se estruturar, no mínimo, com conselho de administração ou curador, conselho fiscal e comitê de investimentos, sendo este último responsável por propor a política de investimento, de destinação e de resgate do fundo, sendo colegiado obrigatório para fundos cujo o patrimônio seja superior a R$ 5 milhões. Além de exigir estrutura de governança, traz ínsito uma série de compromissos de transparência que os fundos devem adotar, visando garantir que seus rendimentos sejam aplicados apenas em suas atividades finalísticas e que sejam geridos de forma a assegurar sua preservação e capitalização.

Para a suscitada estrutura mínima de governança da organização gestora, a composição desses conselhos se impõe da seguinte forma: i) Conselho de Administração deverá ser composto por, no máximo, 7 membros remunerados, sendo possível a admissão de outros membros sem remuneração; ii) o Comitê de Investimentos, por sua vez, deverá contar com 3 ou 5 membros, indicados pelo Conselho de Administração e escolhidos entre pessoas idôneas, com notório conhecimento e com formação na área, e ainda com experiência nos mercados financeiros ou de capitais e registrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM); iii) já o Conselho Fiscal deverá ser composto por 3 membros, indicados pelo Conselho de Administração, escolhidos entre pessoas idôneas e com formação nas áreas de administração, economia, atuária ou contabilidade.

Ainda nesse ponto, cabe relevante alerta trazido da observância das melhores práticas de mercado. Para verem privilegiados os aspectos de credibilidade do fundo, segurança jurídica e governança, lastreados por atributos de visão de longo prazo, segregação estrutural, utilização judiciosa dos recursos financeiros, confiabilidade na gestão, transparência e efetividade nas atividades apoiadas, o ideal seria a estruturação em três camadas organizacionais. No nível de deliberativo, criar-se-ia a Assembleia Geral. Na alçada consultiva, a atuação de Conselho Deliberativo, Comitês Temáticos, Conselho Fiscal e o Comitê de Investimentos. Por último, na estrutura operacional, ter-se-iam os órgãos de atribuição executiva, tais como Diretoria e demais gestores.

 

Aspectos operacionais e procedimentais

Nesse tópico, impera a necessidade de delimitar as hipóteses de doação de valores, admissíveis pela Lei nº 13.800/2019, em seu artigo 14. A começar pela doação permanente não restrita, caracterizada como recurso financeiro cujo principal é incorporado ao patrimônio permanente do endowment e não pode ser resgatado, podendo apenas seus rendimentos serem utilizados em benefício de programas e projetos sociais.

No caso da doação permanente restrita de propósito específico, caracterizada como recurso a ser incorporado ao patrimônio do fundo patrimonial e não passível de resgate, sendo apenas seus rendimentos utilizados em projetos relacionados ao propósito previamente definido no instrumento de doação.

Já no caso da doação de propósito específico, o recurso será atribuído a projeto previamente definido no instrumento de doação, sem ser imediatamente utilizado. Este deverá ser, inicialmente, incorporado ao patrimônio do fundo patrimonial para fins de investimento, podendo o principal pode ser resgatado pela organização gestora de fundo patrimonial, de acordo com os termos e as condições estabelecidos no instrumento de doação.

A legislação também impõe observância sobre a política de resgate dos recursos incorporados aos fundos patrimoniais. Como regra geral, a organização gestora do fundo patrimonial poderá destinar apenas os rendimentos do principal a projetos da instituição apoiada, descontada a inflação do período. Entretanto, em casos excepcionais, a organização gestora poderá resgatar até 5% (cinco por cento) do principal, a cada ano e calculado sobre o patrimônio líquido do fundo, desde que o somatório dessas autorizações não ultrapasse, em qualquer tempo, o total de 20% (vinte por cento) do principal na data do primeiro resgate, mediante decisão do Conselho de Administração, com parecer favorável do Comitê de Investimentos e apresentação de plano de recomposição do valor resgatado sobre o principal.

A particularidade resta configurada para o caso das doações de propósito específico, conforme o comando do artigo 15, onde poderá ser resgatado até 20% (vinte por cento) do valor da doação, durante o exercício em que ela ocorrer, se assim dispuser o termo de doação e, ainda, mediante deliberação favorável dos membros do Conselho de Administração.

Outra premissa operacional relevante para a governança e a transparência reside no afastamento das hipóteses de confusão patrimonial entre as personalidades jurídicas próprias ao funcionamento do fundo, consoante a previsão do artigo 4º. Desta forma, a lei não deixa margem de dúvida sobre a imperiosa necessidade de segregação do patrimônio do fundo com aquele por ventura afeto à organização gestora, executora ou apoiada.

Nessa medida, não será oportuno e conveniente avançar-se no intento de criação do fundo patrimonial, sem antes deter o completo entendimento conceitual e funcional do endowment a ser criado, definindo, como isso, se se promoverá a adequação da instituição existente ou se formalizará uma nova entidade específica que venha a figurar como organização gestora, para manter e administrar o fundo. Por conseguinte, há que se estabelecer, no ato constitutivo, as finalidades institucionais do fundo, realizando espécie de harmonização dessas finalidades com as missões estatutárias da entidade que servirá de organização gestora.

Assim, considerando o processo de tomada de decisão para a criação de fundo patrimonial, valendo-se de personalidade jurídica própria e vinculado à estrutura de entidade já existente, aponta-se para a hipótese de criação do fundo na estrutura da instituição existente, apresentam-se como vantagens óbvias o aproveitamento e a otimização dos recursos institucionais, além do tratamento tributário já praticado, porém com as desvantagens relativas ao eventual nível de endividamento, à carga de responsabilidade civil já assumida ou decorrente da operação, ou, ainda, aos encargos obrigacionais trabalhistas, tributárias e comerciais.

No tocante a hipótese de criação do fundo em organização externa à estrutura da entidade gestora, os argumentos favoráveis figuram na forma de proteção contra endividamento, obrigações trabalhistas, tributárias e comerciais, resultando em maior foco na gestão dos ativos próprios do endowment; entretanto, contrabalanceado pela possibilidade de mudanças nos rumos da nova instituição ou na causa para a qual fora criada, bem como pelo incremento de custos para a manutenção de estrutura própria.

Outra demanda fundamental ao correto funcionamento dos fundos patrimoniais se processa pela necessária transparência dos fundos em relação aos seus doadores, clientes, fornecedores e colaboradores. Para isso, ações como a divulgação das demonstrações financeiras e da judiciosa aplicação dos recursos deve ocorrer, no mínimo, anualmente, devidamente acompanhado pela divulgação de relatórios detalhados de execução dos instrumentos de parceria e termos de execução.

Também é requisito da lei que todos os recursos do fundo sejam utilizados na conformidade estrita com os instrumentos de parceria e termos de execução firmados, particularmente, no tocante às suas condicionantes, encargos e propósitos específicos. O tratamento legal para os casos em que, eventualmente, ocorram irregularidades administrativas na condução desses instrumentos ou termos, é a suspensão da execução dos cronogramas físico-financeiros até a cessação das causas que motivaram a irregularidade ou por até dois anos, bem como impossibilitando a pactuação de novos instrumentos e o bloqueio das movimentações financeiras atinentes a esses acordos.

Na hipótese de liquidação ou dissolução da organização gestora do endowment, o montante total de patrimônio deve ser destinado a outra organização gestora de fundo patrimonial, dotada de similar finalidade de interesse público ou de objetos sociais e estrutura estatutária, devendo, obrigatoriamente, que esta hipótese tenha previsão no estatuto social ou no ato que o constituiu.

Por último, vale o registro sobre a preocupação do legislador com a procedimentalidade empregada no corpo da norma, oferecendo alcance e efetividade aos controles de procedimentos e de resultado, na esteira do que se estabeleceu no âmbito das organizações da sociedade civil, pela Lei nº 13.019/2014, assim como em sentido subsidiário no alcance às organizações sociais, pela Lei nº 9.637/98.

 

Considerações finais

Assim, resta evidenciado que o ecossistema de fundos patrimoniais inaugurado pela Lei nº 13.800/19 criou regime jurídico específico e, até certo ponto complexo, a ser adotado pelas organizações privadas que pretendam estruturar fundos de tal natureza.

Em razão da liberdade de associação, protegida pela ordem constitucional, o endowment demonstra enorme potencial, enquanto mecanismo de manutenção sustentável da atividade administrativa e financeira de entidades do terceiro setor, vocacionadas ao desenvolvimento de finalidades públicas legais que avancem além do assistencialismo, proporcionando estabilidade e autonomia ao sistema, por meio de: i) base financeira sólida; ii) independência da captação de recursos (finalidades institucionais); iii) viabilidade de planejamento no longo prazo e de crescimento em bases sustentáveis; iv) perpetuidade da causa ou entidade; v) destinação específica dos recursos; vi) autonomia institucional para assumir o modelo e a estrutura de governança dos seus próprios fundos.

Isso posto, fato é que fundos dessa natureza tendem a seduzir mais o doador quando dotado de credibilidade, transparência, controle e governança judiciosa na aplicação dos recursos às finalidades exclusivamente estabelecidas.

Apesar dos vetos de natureza tributária, que ampliariam, em muito, o estímulo às doações de recursos, a lei em comento, ao menos, inovou o ordenamento jurídico brasileiro, alinhando-o à tendência internacionalmente consagrada de utilização de recursos privado em parcerias de cooperação do terceiro setor em benefício da sociedade, tão carente de soluções propositivas e urgentes para suas demandas.

[1] Advogado. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra.

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