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Direito e Linguagem.

Por Carlos Alberto Antunes Maciel – Membro Efetivo do IASC.

Palestra ministrada ao Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil, em 27/04/2021.

    « Pauvres gens misérables, peuples insensés, nations opiniâtres à votre mal et aveugles à votre bien ! Vous vous laissez enlever sous vos yeux le plus beau et le plus clair de votre revenu, vous laissez piller vos champs, voler et dépouiller vos maisons des vieux meubles de vos ancêtres ! Vous vivez de telle sorte que rien n’est plus à vous. Il semble que vous regarderiez désormais comme un grand bonheur qu’on vous laissât seulement la moitié de vos biens, de vos familles, de vos vies. Et tous ces dégâts, ces malheurs, cette ruine, ne vous viennent pas des ennemis, mais certes bien de l’ennemi, de celui-là même que vous avez fait ce qu’il est, de celui pour qui vous allez courageusement à la guerre, et pour la grandeur duquel vous ne refusez pas de vous offrir vous-mêmes à la mort. Ce maître n’a pourtant que deux yeux, deux mains, un corps, et rien de plus que n’a le dernier des habitants du nombre infini de nos villes. Ce qu’il a de plus, ce sont les moyens que vous lui fournissez de vous détruire. » La Boétie – Discours de la servitude volontaire.

    « … depois de uma existência de administrador e de político já extensa, adquiri uma experiência que me faltava: a de saber que as palavras são realmente sementes e que elas fazem nascer flores e frutos quando as jogamos em terra propícia. » JK – Discurso – 1960.

    « … si la politique ne prétend plus changer la vie, elle n’y a plus sa place. » Chloé Morin – Le Populisme au secours de la démocratie ? – Gallimard, Paris, 2021, p. 14.

    «  On ne s’en indignera pas ici. Le propos de cet essai est une fois de plus d’accepter la réalité du moment, qui est le crime logique, et d’en examiner précisément les justifications : ceci est un effort pour comprendre mon temps. » Albert Camus, L’Homme Révolté, Gallimard, collection Folio, Paris, 1951, p. 15/16.

Boa noite. Começo por agradecer ao Presidente Gilberto  Lopes Teixeira, pelo convite que me fez e pela oportunidade que me dá de aqui esboçar alguns elementos relativos à relação – indispensável e fundadora – que tem o Direito com a linguagem. E cumprimentando o Presidente Gilberto  Lopes Teixeira, cumprimento todos os demais Presidentes dos Institutos dos Advogados dos diferentes Estados do Brasil, que neste ato compõem o Colégio de Presidentes, e todas as demais autoridades e amigos que hoje e aqui nos acompanham.

Falar de Direito e Linguagem supõe, como se verá, falar necessariamente da linguagem no direito e da linguagem do direito.

Façamos assim, para que bem se entenda este propósito inicial, primeiramente uma digressão pelo terreno da história.

Foi em 1882, em discurso proferido na Sorbonne, que Ernest Renan – uma das maiores referências intelectuais do seu tempo, autor por outro lado da muito célebre História das Origens do Cristianismo, em 7 volumes, e da não menos conhecida Vida de Jesus (primeiro volume da série), publicado em 1863 – discorreu sobre o importante tema da « nação ». No referido discurso, em tom interrogativo – Quest-ce qu’une nation ? – Renan, a partir de uma distinção entre raça e nação, indica-nos que uma nação tem, na sua base, a vontade que manifestam indivíduos que têm em comum um mesmo passado e que decidem assim, voluntariamente, partilhar um mesmo destino.

Renan posiciona-se desta forma contra a visão alemã da nação. Se a « nação » francesa, apresentada também como uma alma, um princípio espiritual, resulta da vontade dos indivíduos e reúne presente (vontade) e passado (história comum), a « nação » alemã funda a sua razão de ser na cultura, na língua, na religião. Resumindo : a nação francesa é contratual ou contratualista (v. Rousseau) e a nação alemã é essencialista.

E, cabe lembrar, 75 anos separam os discursos de Fichte, de 1807, sobre a nação alemã, do discurso de Renan. (v. Discours à la nation allemande – 1807 – de Johann Gottlieb Fichte).

Fichte, diga-se, falou da nação bem antes da unificação da Alemanha, que só ocorreu oficialmente a 18 de janeiro de 1871 ; o discurso de Renan faz-se 103 anos depois da Revolução e 10 anos depois da derrota francesa (guerra de 1870) , do fim do Segundo Império francês e de Napoleão III. Mas a questão da « nação » e do « estado-nação » não ficou no entanto definitivamente resolvida (como se pode constatar através dos estudos mais recentes sobre o tema, o que inclui , por exemplo, a vertente jurídica da problemática (Olivier Gohin, Qu’est-ce qu’une nation en droit français? in Qu’est-ce qu’une nation en Europe? Collectif, Sorbonne éd. déc.2018, p.97).

A Revolução Francesa, bem sabemos, representou uma revolução não só social. Ela alterou profundamente, e na sua própria essência, a ordem jurídica dominante. E as alterações dela resultantes fizeram com que, saindo de uma ordem jurídica dita vertical, viéssemos a adotar uma ordem jurídica horizontal que, ao privilegiar a nação e, com ela, o princípio da igualdade, anunciava o inevitável triunfo dos sistemas republicanos, no decorrer do século XIX e a seguir. Ao mesmo tempo, passamos da história moderna para a história contemporânea, e vimos afirmar-se o direito escrito – a Constituição francesa de 1789 abre a marcha ; depois disso, teremos, por exemplo, a constituição espanhola de 1812, a portuguesa de 1822 ou, ainda, a brasileira, de 1824. Todas estas constituições, que marcaram o fim das monarquias absolutas e contemplaram o sistema de monarquia constitucional, precedem com efeito os sistemas republicanos mais tarde adotados nestes diferentes países e em outros… (cabendo aqui mencionar a exceção espanhola, que, saindo da república, voltou nos últimos anos para o sistema de monarquia constitucional).

A Revolução Francesa foi também uma revolução linguística. Houve com efeito, a partir e com a Revolução Francesa, uma verdadeira explosão lexical : a língua veio socorrer o processo, fornecendo aos novos detentores do poder, e no âmbito do vasto debate público de então, os vocábulos ou, mais geralmente, as formas necessárias à materialização dos novos conceitos. Os conceitos se materializam , cabe que se diga, em formas que a língua com efeito fornece e exigem definição. A língua recicla formas existentes – liberdade, igualdade, fraternidade, por exemplo – , definindo-as ou adaptando-as às exigências e às realidades dos novos tempos, ou ainda, pela elevada frequência, dando-lhes especial destaque. Com a Revolução Francesa, o homem deixou de ser um « sujet », isto é, o súdito, o submisso, o subordinado, no seu sentido primeiro, e passou a ser um « cidadão », quer dizer, um homem que, pela sua própria natureza, tem direitos reconhecidos pela Lei (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789).

Dizemos, necessariamente generalizando, que o século XVIII foi o século das ideias (ou das luzes) e que o século XIX foi o século das realizações. O século XIX será também o século que dá as bases teóricas de muitos dos nossos « -ismos » e a algumas das nossas tantas utopias, tendências, práticas ou manifestações públicas que, como bem sabemos, tem ainda hoje uma forte presença no debate político (capitalismo, socialismo, fascismo, imperialismo, comunismo, populismo, sectarismo, marxismo, extremismo, fanatismo, ou ainda o europeísmo e o consumismo, por exemplo.).

A democracia, seja ela aqui vista como forma ou como conceito, não foi contemplada pela Revolução ; é só com efeito a partir de Tocqueville*, e aos poucos, que a palavra democracia vai, durante o século XIX, integrar o debate político e institucional. A ela se acrescentará no entanto o adjetivo « representativa », que lhe delimita os contornos. O século XIX, não esqueçamos, é o século do Romantismo e do cientismo e, em geral, o século durante o qual surgem e se afirmam alguns dos nossos grandes ideais de então – ideais e/ou utopias que integraram e integram o nosso debate público, que determinaram e determinam a ordem jurídico-administrativa em que vivemos, nos nossos dias, nos nossos diferentes estados, sem esquecer a ordem internacional. A emergência da nação e, com ela, do cidadão (e da cidadania), dentro de uma relação social agora horizontal, conduziu-nos no entanto, e cabe que aqui se diga, ao nacionalismo, ou, melhor dizendo, aos nacionalismos. Max Weber dizia-se nacionalista, mas o nacionalismo de Max Weber não se confundirá aqui com o nacionalismo de Wagner, o perigoso nacionalismo alemão denunciado por Nietzsche. O adjetivo « nacional » e o substantivo « nacionalismo » são com efeito os satélites formais naturais da nação ; e logo, o vocábulo nação passa a integrar, no dizer de Ralph Schor, o discurso dos regimes autoritários de direita na Europa que, na sua diversidade, têm, todos, em comum, o nacionalismo. A este, associam-se, através da então necessária exaltação de valores, os vocábulos tradição, Deus, pátria, família, autoridade, trabalho, propriedade… ** (Ralph Schor, Crises et Dictatures dans l’Europe de l’Entre-deux-guerres. 1919-1939, Nathan, Paris, 1993).***

No século XX, Habermas, autor particularmente de Direito e Democracia (1992 – e edição brasileira de 1997), considerado por muitos o « filósofo oficial » da União Europeia, e que muito inspirou a proposta de uma « constituição europeia », acrescenta à democracia o adjetivo « deliberativa » ou ainda « radical ». Trata-se, para Habermas, de mostrar que existe um vínculo conceitual entre o estado de direito e a democracia. E ainda de construir um « paradigma jurídico » capaz de integrar o direito civil formal e o direito e/ou princípios políticos do estado-providência. Habermas propõe, para que melhor se compreenda o seu propósito, aquilo a que dá o nome de « tournant linguistique », ou reviravolta linguística ; para ele, se os pensamentos dizem respeito aos fatos, também é certo que se comunicam através de expressões linguísticas que conservam um significado idêntico dentro de uma mesma « comunidade linguística ». Roberto Basilone Leite trata com maestria o tema da « democracia deliberativa » proposta por Habermas (Roberto Basilone Leite, O Papel do Juiz na Democracia – ativismo judicial político x ativismo judicial jurisdicional, LTr, São Paulo, 2014). **** (Ver também Frédéric Worms, que percebe, na democracia, um « erro simples e capital » : o de ter traduzido as aspirações democráticas em objetivos abstratos e, no seu absoluto, « realizáveis », e, até mesmo, « já realizados ». *****)

Chegamos aqui a um ponto crucial : o Direito absorve formas ou vocábulos que lhe são propostos pela língua, transformando-os em termos que, por vezes, também cria, sob a forma de lexias simples ou de lexias complexas e introduzindo a sua própria fraseologia. É a linguagem do Direito. É a terminologia jurídica. O Direito, pela sua força normativa, através da lei e da doutrina, exerce assim a sua prerrogativa de fixar os conteúdos das formas e/ou vocábulos que lhe são propostos pela língua – com a possibilidade que lhe é dada, e só a ele, de propor termos e conteúdos novos.

Se está claro que cabe ao Direito definir, dar conteúdo preciso às formas que a língua põe à sua disposição, está por outro lado igualmente claro que os conteúdos de que aqui se trata sofrem, na linha do tempo que passa, grandes alterações.

Observemos que Pascal Lamy, por exemplo, propõe, em 2004, a expressão « democracia-mundo » (La Démocratie-Monde. Pour une autre gouvernance globale. Seuil, Paris), e que Gérald Bronner, sociólogo, de forma bem mais sutil, fala-nos, em 2013, manifestando a sua preocupação com todas as « crenças » e com o malfadado « conspiracionismo » que atravessam as nossas sociedades, da « democracia dos crédulos » (La Démocratie des Crédules, PUF, Paris – Gérald Bronner é também autor de Apocalypse cognitive – la face obscure de notre cerveau, PUF, Paris, 2021).

A história, dizemos, não é a ciência do passado ; é a ciência do presente, pois a ela cabe fornecer os necessários instrumentos que nos permitem dar resposta às perguntas que o presente nos traz.

Na aurora das civilizações, lembra-nos Gustave Le Bon, na Psicologia das Multidões (1895), somente tínhamos aglomerados confusos, com heroísmos, fraquezas e também violência. Nada de estável. Era o tempo da barbárie. Surgiram depois a repetição dos cruzamentos e as necessidades resultantes da vida em comum. A aglomeração tornou-se aos poucos unida e formou uma raça, isto é, um agregado com características e sentimentos comuns. A multidão tornou-se povo e saiu então da barbárie.

Tudo no entanto só se fixa fortemente quando surge um ideal comum que, por vezes, se confunde com as nossas utopias.

Hoje, a nação, a república, a democracia, o povo, o cidadão e a cidadania, ou ainda a raça e a autoridade, com o autoritarismo, que é o seu satélite formal, sem esquecer o totalitarismo (este já tão bem estudado por Hannah Arendt), estão ainda em discussão (observe-se os novos conteúdos da forma « raça », por exemplo). Acrescente-se a isto o povo e o populismo, a liberdade e a igualdade, e teremos uma visão mais clara dos conceitos que alimentam os nossos debates e que, de forma permanente, pedem definição. Em pano de fundo, encontram-se a nossa relação com o passado, que fez de nós o que nós somos, na nossa condição de herdeiros, e, inevitavelmente, a já tradicional oposição esquerda e direita.

Em língua, sob o impulso do tempo que passa e das evoluções que a sociedade, mais ou menos de roldão, nos impõe, pelos usos, no debate público e/ou no debate político, sabemos que, num período de 20 anos, cerca de 10 por cento do léxico disponível ganha novos contornos semânticos, ou, dito mais simplesmente, « veste roupa nova ». E os conteúdos subjetivos são mais do que outros alvo destas evoluções.

E todos os vocábulos, formas ou termos que agora nos ocupam, bem sabemos, beneficiam de um enorme espaço no chamado debate público e respondem a este critério.

Considerando que a complexidade das relações humanas, pessoais ou ainda jurídicas, necessárias à organização, ao ordenamento e à manutenção do espaço comum (rua, bairro, cidade, estado, país) obrigam o Direito a uma permanente expansão, a dificuldade maior que se apresenta a nós, proponho eu aqui, reside em dois fatos, ou em duas constatações :

  1. a) vivemos uma época de enfraquecimento dos conceitos – isto é : temos mais complexidade e, paralelamente, conceitos que se esvazam, se empobrecem e pedem uma nova definição (em língua, como na sociedade, tudo o que se banaliza se corrompe) ;
  2. b) e, por outro lado, de um real empobrecimento da linguagem.

Quando há, historicamente, um enfraquecimento dos conceitos, os cidadãos (e os povos) deles se distanciam ; prevalecem então as pessoas. As nossas sociedades, reconhecidamente messiânicas (e, no caso brasileiro, mais propriamente também sebastianista), deixam de procurar então uma solução política racionalmente aceitável e passam a seguir aquele que se apresenta ou se aparenta com o guia, o mestre, o ser providencial, capaz supostamente de, por si só, responder aos anseios de segurança, de trabalho e/ou de prosperidade. O enfraquecimento do conceito fortalece a pessoa.

Ora, a república e a democracia, que, historicamente, não pagaram as suas promessas (v. Le crépuscule de la démocratie – Nicolas Grimaldi, Grasset, Paris, 2014), esquecendo particularmente a igualdade mais do que prometida, estão notoriamente em crise. E o mesmo acontece com o princípio de representação. Voltam assim simultaneamente aos usos – e às preocupações do momento, no âmbito do debate público – formas ou vocábulos tais como autoridade, autoritarismo, totalitarismo ou ainda populismo, autocracia e segurança (nacional).

Pierre-André Taguieff fala-nos da « ilusão populista » e das demagogias da era da democracia (L’Illusion populiste – Essai sur les démagogies de l’âge démocratique – Flammarion, Paris, 2002). Pascal Perrineau, em obra deste ano, vincula a questão do populismo, ou ainda do telepopulismo, ao declínio das ideologias tradicionais (enfraquecimento dos conceitos) – que resulta por outro lado de três fatores principais : a intensificação da globalização, o recuo da tradição, que servia de motor e cimento para as nossas sociedades e o advento daquilo a que dá o nome de ordem social pós-tradicional. A exigência do « aqui e agora » completa o quadro. (Le Populisme, Que Sais-je ?, Paris, 2021). ******

Mas há outras obras, recentes, atuais, que, também elas, expõem as preocupações do momento. Natacha Polony interroga-nos : será que ainda estamos em democracia ? (Sommes-nous en démocratie ? – L’Observatoire, Paris, fevereiro de 2021). Chloé Morin, de forma também interrogativa, associa, num mesmo título, em obra também de 2021, populismo e democracia : Le Populisme au Secours de la Démocratie ? (Gallimard, Paris, 2021). Outros, como Roger Sue, manifestando as mesmas preocupações com as evoluções que parecem caracterizar o nosso tempo, são mais contundentes. Afirmando que é preciso repensar a cidadania, Roger Sue vê no nosso presente um espectro totalitário (Le Spectre Totalitaire, LLL, 2020).

Roger Sue menciona o paradoxo (oximoro) da democracia representativa e a crise da representação nos nossos sistemas políticos e afirma que, nestes tempos de fake news, é preciso construir um novo « regime da verdade ». Por que tanto ódio ?, pergunta ele, e mencionando o que chama de fraqueza da esquerda e violência da direita, propõe o termo « liberal-autoritarismo » que de uma certa forma se aproxima daquilo que outros qualificam de « democracia iliberal », conceito que se encontra na vizinhança quase imediata da autocracia.

A díade esquerda-direita faz-se assim, em todos os casos, presente ; por trás de tudo isso, como bem explica Norberto Bobbio, sempre inevitavelmente encontramos as questões da igualdade e da liberdade, mas não só estas. (Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3a. Ed., Unesp, SP, 2011). Cabe aqui que se acrescente que Janine Mossuz-Lavau mostra-nos como a clivagem de que aqui se trata, que não é naturalmente estanque, nem na sua essência nem nos seus contornos, sofreu fortes variações a partir dos anos 90 (Le Clivage Droite-Gauche. Toute une Histoire. SciencesPo, Paris, 2020).

A complexidade de tais conceitos impõe ao Direito e exige ao mesmo tempo da linguagem uma sofisticada oferta de recursos.

Ora, quando James R. Flynn (1934-2020) propôs o teste chamado de QI, imaginou, como era com efeito possível imaginar, que o quociente ou coeficiente intelectual estava convocado a apresentar uma constante progressão. No entanto, foi já a partir dos anos 80 que os pesquisadores constataram uma queda no que se refere ao QI médio, que se vem desde então confirmando. Como as realidades são sempre multifacetadas, os pesquisadores da área até agora não definiram as razões de ser desta tendência negativa ; muitos são no entanto os que nela vêem uma relação direta com o empobrecimento da linguagem que, em todos os casos, no mínimo se acrescenta à queda constatada dos níveis de QI.

Christophe Clavé (professor de estratégia e gestão no INSEEC) observa, a partir daí que, por exemplo, « o desaparecimento » de um certo número de formas verbais, sejam elas simples ou compostas, dá origem a um pensamento que se exprime quase sempre no presente, « limitado ao momento » e « incapaz de projeções no tempo ». « A simplificação dos tutoriais » e o « desaparecimento das maiúsculas e da pontuação são exemplos de golpes mortais na precisão e na variedade da expressão ». E, indica ele ainda, « menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de (…) processar um pensamento ». E, « sem palavras para exprimir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível. » (v. Edgar Morin – Introduction à la Pensée Complexe. Points. Collection Essais. 2005). E pergunta : como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional ? ».Ou ainda : « como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e a sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser depois do que pode ter acontecido, do que realmente aconteceu ? ». E, concluindo, afirma : « estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas pública e privada decorre diretamente da incapacidade » de exprimir as emoções com palavras. As ditaduras de todos os tipos sempre tentaram, diz ele, citando George Orwell, fragilizar a língua para, assim fazendo, limitar a expressão e, com ela, o pensamento – aqui entendido, claro, particularmente como pensamento crítico.

Michel Onfray enfim, na sua Teoria da Ditadura (Théorie de la Dictature, J’ai Lu, 2019), também preocupado com as realidades do nosso tempo, tira, a partir da análise que faz da obra de George Orwell, A Fazenda dos Animais (ou A Revolução dos Bichos), 10 caminhos ou « mandamentos » que caracterizam e/ou conduzem à ditadura. O segundo mandamento tem por título « empobrecer a língua – reduzir o vocabulário é por si só uma finalidade » ; assim fazendo, teremos uma nova língua, capaz de « estreitar o campo do pensamento ». O sexto « mandamento », observe-se, diz respeito à « propagação do ódio » e à « criação do inimigo » (« o inimigo do momento representa o ódio absoluto » – e encontramos aqui, de certa forma, a célebre teoria do inimigo estruturante).

A língua está no Direito e o Direito se faz pela língua. E cabe, como vimos, ao Direito, pela sua função doutrinária e normativa, traduzir e definir, transformando-os em termos, graças às ferramentas que a língua lhe oferece, os conceitos que, na sua complexidade crescente, as realidades sociais submetem à sua apreciação. E esta incumbência só ao Direito pode ser dada.

Resumindo : a aglomeração fez-se povo e o povo fez-se nação, definindo os próprios critérios da sua formação (critérios contratualistas e/ou essencialistas). Os grupos assim constituídos, a que podemos dar o nome de civilizações, elaboraram e elaboram as seus próprios conceitos fundadores ; estes conceitos, que tem vida social e integram o campo das ciências sociais, são particularmente estudados pela sociologia, pela filosofia, pela ciência política, pela sociolinguística ou ainda pela socioterminologia ; fixados em formas que a língua propõe, são submetidos ao Direito que, com o seu poder doutrinário e normativo, os transforma em termos (é a terminologia jurídica – ou linguagem do Direito). Estes conceitos não são no entanto estanques ; submetidos ao rolo compressor do jogo social e da história, eles sofrem alterações e exigem redefinições, refundações. Assim ocorre agora com o termo nação, e também com a democracia, a liberdade, a igualdade, a república, o cidadão e a cidadania, sem esquecer o próprio pacto federativo e ainda tudo o que, sem um eventual amparo da lei, se encontra no pano de fundo da problemática : é o caso aqui de um certo número de -ismos e da própria oposição entre esquerda e direita… O pacto social fundador é de natureza jurídica, e pede para ser revisitado. Em época de crise, como esta que agora vivemos, em que os conceitos fundadores se enfraquecem, em que se fortalece a imagem do « homem providencial », e em que, nitidamente, há um real empobrecimento da linguagem, o populismo, as tentações autoritárias, e termos como totalitarismo e ditadura, apoiados muitas vezes pelos nacionalismos mais diversos, vêm novamente bater à nossa porta…

Além destes tropeços do momento, acima apontados, permito-me, para finalizar, e constatando a dificuldade que temos hoje, muitas vezes, para simplesmente conversar, ou trocar ideias, sem certezas (Nietzsche dizia que não é a dúvida que nos deixa loucos, o que nos enlouquece é a certeza) nem constrangimentos, numa espécie de triunfo do dogma no debate público, citar Norberto Bobbio. Trata-se, está claro, de dogmatismo, que é um dos fatores capazes de cercear a expressão e impor o silêncio. Diz-nos Norberto Bobbio (Política e Cultura – Editora Unesp, 2014, p. 94/95) :

« O dogmatismo contribui para diminuir a comunicação intelectual. Entre os impedimentos à circulação da cultura, o mais insidioso e, portanto, o mais temível, é o dogmatismo. (…) Se hoje a política dos políticos é dominada com demasiada frequência pela tentação de considerar o diálogo inútil, cabe aos homens de cultura afirmar a sua fecundidade. Se hoje a propaganda política (…) proclama a impossibilidade do entendimento mútuo, o homem de cultura passa a proclamar o dever de entender os outros ». Condorcet ******* (1781) (Réflexions sur l’esclavage des nègres – GF Flammarion, 2009), à sua maneira, já assim dizia : respeitar e não submeter, e respeitar o que é diferente e quem é diferente. Tudo está na construção das narrativas.

Muito obrigado a todos.

Carlos Alberto Antunes Maciel é Professor, Pesquisador, Advogado, Perito Judicial, Tradutor. Possui graduação em Letras-Português/Francês pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (1971), graduação em Direito pela UFSC (1972), mestrado (Maîtrise) em Lettres Modernes – Université de Strasbourg II (Sciences Humaines) (1973), doutorado em Linguistique Française – Univ. de Strasbourg II) (1975), doutorado (Doctorat dÉtat – Livre docência) em Études Latino-Américaines (Strasbourg), e doutorado em Etudes Ibériques Espagnol – Université de Nantes (1994). Atualmente é Professeur émérite – Université de Nantes, membro pesquisador – Centre National de la Recherche Scientifique (UMR 7320 – Nice). Foi Diretor do Departamento de Português das Universidades de Nice e de Nantes. Livros e artigos publicados, e conferências, no Brasil e no exterior. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: lexicologia, bases de dados textuais, estatística linguística, Portext e línguas (português, francês, espanhol), e no Direito. Especialização em Direito (Strasbourg). Trabalha também com história e antropologia cultural. Membro do IHG-SC, da ACALEJ e do IASC. Foi Visitante nas Universidades de Roma I (La Sapienza) e USP. Professor e Pesquisador Visitante na UFSC (NuPILL, Literatura brasileira, PGET). Presidente do Conselho Cienfífico da Fundação Polo Mercosul/Mercosur (Montevidéu). Medalha JK (Governo de MG). Cônsul Honorário do Brasil (Nice).

 

* Alexis de Tocqueville. Considerado um teórico da democracia. Autor de « De la démocratie en Amérique » (1835 – primeira parte, 1840 – segunda parte) e, também, de « L’Ancien Régime et la Révolution ». Nesta obra, publicada em 1856, diz, sobre a nação francesa: « Si l’on songe maintenant que cette même nation française, si étrangère à ses propres affaires et si dépourvue d’expérience, si gênée par ses institutions et si impuissante à les amender, était en même temps alors, de toutes les nations de la terre, la plus lettrée et la plus amoureuse du bel esprit, on comprendra sans peine comment les écrivains y devinrent une puissance politique et finirent par y être la première. » (Gallimard, Collection Folio / Histoire, Paris, 1967, p. 238).

** Discurso de Salazar, proferido em Braga, durante as comemorações do décimo aniversário do “28 de Maio”: “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória no trabalho e o seu dever”.

*** « Pourtant, pour incontestable qu’apparaisse la diversité des dictatures, on peut regrouper celles-ci en deux catégories, les régimes réactionnaires et les fascistes. Cette typologie permet ainsi de mettre en évidence d’importants facteurs d’unité. » (p. 97). « Le respect de la tradition entraîne l’exaltation des valeurs qui, de longue date, ont fait leurs preuves, Dieu, la patrie, l’autorité, la famille, le travail. » (p. 98)

**** Roberto Basilone Leite, partindo da concepção discursiva de Habermas, afirma : « a noção linguística de tensão entre facticidade e validade, ao ser transportada para o âmbito do direito, traduz-se como uma tensão entre legalidade e legitimidade. Pode-se extrair daí uma ilação importante : como a estrutura do direito moderno pressupõe dois fatores, a saber, a facticidade (da positividade-impositividade) e a validade (da pretensão de legitimidade), resulta disso que o direito moderno se caracteriza por uma típica ambivalência da validade, isto é, por um modo de validade ambivalente. » (p. 61/62).

« Nota-se, assim, que o totalitarismo assume uma postura revolucionária ou pseudo-revolucionária, ao passo que o autoritarismo tem caráter declaradamente conservador. O autoritarismo destrói as estruturas comunicativas geradoras do poder político ; pela disseminação do medo ou do terror, compele cada indivíduo a enclausurar-se dentro de si mesmo e eliminar o contato com os demais indivíduos e atores coletivos. Tenta silenciar toda oposição a todo discurso crítico antigovernamental e esterilizar as instituições representativas, porém preserva certa margem de liberdade de produção e manifestação criativas e de espaço emancipatório, correspondente àquelas áreas em que não se verifique choque entre a opinião e a vontade dos atores sociais e o projeto autoritário, que espelha a vontade particular da elite governante. » (p. 83)

Outra obra de Roberto Basilone Leite : A Chave da Teoria do Direito de Habermas – Direitos Humanos e Soberania Popular. Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2008.

***** «… avoir traduit les aspirations démocratiques en buts abstraits et absolus, réalisables absolument et, pour certains, pourquoi pas, qui seraient déjà absolument réalisés… » (In Les Maladies Chroniques de la Démocratie, Descléee de Brouwer, Paris, 2017, p. 50). Frédéric Worms discorre, na mesma obra, também sobre o totalitarismo :

« Deux conceptions de l’histoire :

« Il n’y a rien de plus tentant, encore une fois, que le ‘tout ou rien’.

« Le ‘totalitarisme’ (si l’on entend par là les doctrines qui postulent un sens ‘total’ qui justifierait tout) ou le nihilisme (qui soutient l’absence complète de sens), ces deux extrêmes, avec chacun leur danger et leur cynisme. »

****** Sobre o populismo, ver também Pierre Rosanvallon, Le Sècle du Populisme – Histoire, Théorie, Critique, Seuil, Paris, 2020. No segundo capítulo (História), a terceira parte é dedicada à América Latina.

******* Diz-nos Condorcet, « je ne suis ni un bel esprit Parisien, qui prétend à l’Académie française, ni un politique Anglais, qui fait des pamphlets, dans l’espérance d’être élu membre de la chambre des Communes, et de se faire acheter par la Cour, à la première révolution du ministère. Je ne suis qu’un bon homme, qui aime à dire franchement son avis à l’univers, et qui trouve fort bon que l’univers ne l’écoute pas. Je sais bien que je ne dis rien de neuf pour les gens éclairés, mais il n’en est pas moins vrai que, si les vérités qui se trouvent dans mon Ouvrage étaient si triviales pour le commun des Français ou des Anglais, etc., l’esclavage des nègres ne pourrait subsister. » (p. 59).

OUTRAS REFERÊNCIAS E CITAÇÕES :

Ainda sobre a nação, que compreende, além do que foi mencionado, dimensões geográficas, históricas, econômicas, psico-sociológicas ou ainda de ordem política e racionalista :

As alianças de família, as fratrias, os sacrifícios públicos, e todas as demais relações que fazem com que os indivíduos partilhem, uns com os outros e todos com todos, espaços de vida, o que inclui particularmente a amizade, justificam também a adesão ao projeto comum, à nação: esta visão é partilhada por Rousseau e John Stuart Mill, por exemplo.

Émile Durkheim põe a nação no topo da hierarquia das formas que fazem com que o indivíduo se sinta ligado a diferentes grupos e ao conjunto da sociedade. Dominique Schnapper, Durkheim et la nation, in Revue internationale de philosophie, 2017/2, p.201 à 221.

Jean Jaurès, que compreendeu a dimensão social e solidária da nação, afirma que  « la Nation est le seul bien des pauvres » / « a nação é o único bem que pertence aos pobres ».Jean Jaurès, L’armée nouvelle, Paris, J.Rouff, 1911.

Para Marcel Detienne, a identidade nacional é um enigma (Marcel Detienne, L’identité nationale, une énigme, Gallimard, 2010).

Obras e autores citados, em português (traduções) :

Alexis de Tocqueville (Da democracia na América)

La Boétie (Discurso da Servidão Voluntária)

Albert Camus (O Homem Revoltado)

Edgar Morin (Introdução ao Pensamento Complexo)

Gustave Le Bon (A Psicologia das Multidões)

Norberto Bobbio (Política e Cultura ;  Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política)

Condorcet (Reflexões sobre a escravatura dos negros)

George Orwell (A Fazenda dos Animais)

Democracia e América Latina:

« Mas o que torna particularmente dramática a conjuntura latino-americana é o fato de, ao contrário de outros povos mais distantes, sermos povos já inscritos, pela sua formação cultural, na comunidade dos povos democráticos, e que, no entanto, se vêm impossibilitados de alcançar níveis de vida compatíveis com a prática da democracia e o exercício efetivo da liberdade. » JK – Discurso – 1960.

 

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