O CONCEITO DE PEQUENA PROPRIEDADE RURAL E A SUA IMPENHORABILIDADE, À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES.
Por Hélio Ricardo Diniz Krebs* – Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SC.
Há algumas décadas, o agronegócio tem se consolidado como um dos principais pilares da economia e do desenvolvimento do país, sendo responsável por aproximadamente 25% do PIB nacional e por colocar o Brasil entre os maiores produtores e exportadores de alimentos e fibras do mundo.
No entanto, trata-se de um setor bastante sujeito às intempéries climáticas, que incluem eventos como secas prolongadas, enchentes, granizos, geadas e tempestades, cujas consequências, não raras as vezes, é a perda total ou parcial da safra.
Tais circunstâncias acarretam enormes prejuízos ao agronegócio, atingindo desde grandes latifúndios a pequenos produtores rurais, que veem suas expectativas de lucro frustradas, ao mesmo tempo em que as dívidas e obrigações vão vencendo e se acumulando, em especial, os empréstimos bancários, quecomumente são contratados para custear o plantio ou culturas.
Como é muito comum, no agronegócio, ao tomar empréstimo junto à instituição financeira, o produtor rural oferece em garantia hipotecária o próprio imóvel em que exerce sua a atividade econômica (agricultura, aquicultura, pecuária, carcinicultura, entre outros), de modo que fica sujeito a perdê-lo para que a dívida seja satisfeita junto ao credor.
Ocorre que, tendo como principal norteador o princípio da dignidade da pessoa humana, o art. 833, VIII do Código de Processo Civil, o art. 4º, § 2º da Lei nº 8.009/90 e o art. 5, XXVI, da Constituição Federal, trataram de conferir especial proteção à pequena propriedade rural e ao bem de família rural, em face de penhoras para pagamento de dívidas. Porém, a interpretação desse conjunto normativo vinha há anos causando controvérsias, em especial, em torno do conceito de pequena propriedade rural,do alcance da impenhorabilidade e de sobre quem recai o ônus da prova de que a propriedade se destina à exploração familiar.
Em suma, é sobre tais questões que se ocupará este breve artigo.
2 – A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL E AS CONTROVÉRSIAS EM TORNO DE SUA IMPENHORABILIDADE
O art. 5º, XXVI da CF, dispõe que “Apequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.
Já o art. 833, VIII do CPC, estabelece que “São impenhoráveis: a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”.
Por fim, de acordo com o § 2º do art. 4, da Lei nº 8.009/90, “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”.
Pois bem. Conforme lembra Rita Vasconcelos, “Antes da Lei 11.382, de 06.12.2006, a propriedade rural atingida pela impenhorabilidade estava assim descrita no Código de Processo Civil de 1973 (art. 649, X): o imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário. A ressalva quanto à hipoteca para fins de financiamento agropecuário, bem como a circunstância de que a área excedente ao módulo – desde que o imóvel comportasse divisão – admitia a penhora, fizeram com que parte da doutrina entendesse a impenhorabilidade como relativa.
A reforma da Lei 11.382/2006 deu nova redação ao dispositivo, para considerar impenhorável a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família (CPC/1973, art. 649, VIII). O CPC/2015, no inc. VIII do art. 833, manteve essa nova redação. A pequena propriedade rural é considerada impenhorável na medida em que assegura a sobrevivência digna do agricultor e de sua família, e a condição legal para a impenhorabilidade é que seja trabalhada pela família.
A regra do Código de Processo Civil vem reforçar a proteção já constitucionalmente concedida, pois a pequena propriedade rural é impenhorável por força do art. 5°, XXVI, da CF”.
Cumpre ressaltar que, inicialmente, aproteção à pequena propriedade rural foi prevista no inciso X do art. 649 do CPC/73, inserido pela Lei n. 7.513/86, que determinava a impenhorabilidade “do imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário”. Como se pode perceber, a lei não exigia que o imóvel rural fosse objeto de exploração para a subsistência do proprietário devedor que nele residisse, sendo suficiente, para a caracterização da impenhorabilidade, que tivesse extensão de até um módulo e que não houvesse outros imóveis.
Já a nova redação do art. 649 do CPC/73, dada pela Lei nº 11.382/2006, tratava como “absolutamente” impenhorável “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”, bem como os demais bens previstos no rol daquele dispositivo.
Com efeito, o art. 833 do CPC/15 suprimiu o advérbio “absolutamente”, mantendo o restante do artigo muito semelhante ao do art. 649 do CPC/73.
Ao comentarem o inciso VIII do art. 833 do CPC, Teresa Arruda Alvim, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogério Licastro Torres de Melo, asseveram que “[…] o que a Constituição protegeu para fins de dívidas decorrentes da própria atividade produtiva, a lei processual ampliou, garantindo a impenhorabilidade sem qualquer restrição quanto à natureza da dívida.” (g.n.).
Por outro lado, há quem entenda que aimpenhorabilidade da pequena propriedade rural continuaria sendo relativa, pois, pelo quantodisposto na norma constitucional, a contrario sensu, deve se admitir a penhora por dívidas não decorrentes da atividade produtiva.
O STJ já foi instado a se manifestar sobre a suposta relatividade da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, tendo se manifestado no sentido de que “1. Tomando-se por base o fundamento que orienta a impenhorabilidade da pequena propriedade rural (assegurar o acesso aos meios geradores de renda mínima à subsistência do agricultor e de sua família), não se afigura exigível, segundo o regramento pertinente, que o débito exequendo seja oriundo da atividade produtiva, tampouco que o imóvel sirva de moradia ao executado e de sua família.
2. Considerada a relevância da pequena propriedade rural trabalhada pela entidade familiar, a propiciar a sua subsistência, bem como promover o almejado atendimento à função sócio econômica, afigurou-se indispensável conferir-lhe ampla proteção. 2.1 O art. 649, VIII, do CPC/1973 (com redação similar, o art. 833, CPC/2015), ao simplesmente reconhecer a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, sem especificar a natureza da dívida, acabou por explicitar a exata extensão do comando constitucional em comento, interpretado segundo o princípio hermenêutico da máxima efetividade.
2.2. Se o dispositivo constitucional não admite que se efetive a penhora da pequena propriedade rural para assegurar o pagamento de dívida oriunda da atividade agrícola, ainda que dada em garantia hipotecária (ut REsp 1.368.404/SP, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 13/10/2015, DJe 23/11/2015), com mais razão há que reconhecer a impossibilidade de débitos de outra natureza viabilizar a constrição judicial de bem do qual é extraída a subsistência do agricultor e de sua família.
3. O fundamento que orienta a impenhorabilidade do bem de família (rural) não se confunde com aquele que norteia a da pequena propriedade rural, ainda que ambos sejam corolários do princípio maior da dignidade da pessoa humana, sob a vertente da garantia do patrimônio mínimo. O primeiro, destina-se a garantir o direito fundamental à moradia; o segundo, visa assegurar o direito, também fundamental, de acesso aos meios geradores de renda, no caso, o imóvel rural, de onde a família do trabalhador rural, por meio do labor agrícola, obtém seu sustento.
3.1. As normas constitucional e infralegal já citadas estabelecem como requisitos únicos para obstar a constrição judicial sobre a pequena propriedade rural: i) que a dimensão da área seja qualificada como pequena, nos termos da lei de regência; e ii) que a propriedade seja trabalhada pelo agricultor e sua família. Assim, para o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, não se exige que o imóvel seja a moradia do executado, impõe-se, sim, que o bem seja o meio de sustento do executado e de sua família, que ali desenvolverá a atividade agrícola.
3.2. O tratamento legal dispensado à impenhorabilidade da pequena propriedade rural, objeto da presente controvérsia, afigura-se totalmente harmônico com aquele conferido à impenhorabilidade do bem de família (rural). O art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.008/1990, que disciplina a impenhorabilidade do bem de família, põe a salvo de eventual contrição judicial a sede da moradia, e, em se tratando de pequena propriedade rural, a área a ela referente”.
Outrossim, o STJ também já possui entendimento consolidado no sentido de que “A pequena propriedade rural trabalhada pela entidade familiar é impenhorável, mesmo quando oferecida em garantia hipotecária pelos respectivos proprietários”.
Assim, o entendimento do STJ tem se consolidado no sentido de que a impenhorabilidade conferida à pequena propriedade rural é ampla, protegendo-a contra a execução de quaisquer dívidas, desde que seja trabalhada e sirva de sustento para a família do proprietário devedor, mesmo que este não resida no imóvel.
Por outro lado, ainda subsistia divergência entre as 3ª e 4ª Turmas do STJ, sobre a quem incumbe o ônus de provar que a pequena propriedade rural se destina à exploração familiar. Com o intuito de dirimir referida divergência, a 3ª Turma afetou à Segunda Seção o REsp nº 1.913.234/SP, que foi julgado em 08/02/2023.
Ao julgar referido recurso, a Segunda Seção do STJ, por maioria, firmou o entendimento de que é “[…] ônus do executado comprovar não só que a propriedade se enquadra no conceito legal de pequena propriedade rural, como também que o imóvel penhorado é explorado pela família […]”.
Outrossim, ressalta-se haver uma lacuna legislativa no tocante ao conceito de “pequena propriedade rural”. Segundo Teresa Arruda Alvim, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogério Licastro Torres de Melo, “Há mais de uma lei (v.g., Lei 4.504/64, Lei 8009/90, Lei 11.326/06) que traz parâmetros para definir o conceito de pequena propriedade rural. Quanto o aspecto territorial, os Tribunais têm aplicado o conceito de módulo fiscal fundamentado nas Leis 8.629/93 e 11.326/06 e no novo Código Florestal para definir pequena propriedade rural como sendo aquela com área entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais. O módulo fiscal de cada Município, expresso em hectares, é fixado pelo Incra, através de Instrução Especial.
Dessa forma, deve ser entendida como pequena propriedade rural aquela com área entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais, comprovadamente trabalhada pela família e sendo a sua única fonte de sobrevivência”.
Contudo, dúvidas ainda existentes em relação ao conceito de pequena propriedade rural também foram dirimidas no acórdão do referido REsp nº 1.913.234/SP, ao consignar que “Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu artigo 4ª, II, alínea ‘a’, atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural ‘de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento’”.
Como visto, portanto, pequena propriedade rural é o imóvel rural de “área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento”, sendo que o tamanho de cada módulo fiscal é determinado pelo INCRA e varia de acordo com a microrregião em que se encontra, podendo variar de 5 a 110 hectares.
Por fim, consigna-se que o STF, ao julgar o ARExt nº 1.038.507/PR (Tema 961), fixou a seguinte tese: “É impenhorável a pequena propriedade rural familiar constituída de mais de 01 (um) terreno, desde que contínuos e com área total inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município de localização”.
3 – CONCLUSÕES
A impenhorabilidade da pequena propriedade rural é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana e, diferentemente da impenhorabilidade do bem de família, não necessariamente está atrelada à proteção do direito à moradia, mas sim à necessidade de assegurar um patrimônio mínimo à subsistência da entidade familiar.
Considera-se pequena propriedade rural o imóvel rural de “área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento”, sendo que o tamanho de cada módulo fiscal é determinado pelo INCRA e pode variar de 5 a 110 hectares, a depender da localização.
De acordo com o entendimento do STJ, a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que explorada para a subsistência da entidade familiar, é assegurada independentemente de constituir a moradia do proprietário devedor e da origem da dívida, subsistindo mesmo que o imóvel tenha sido dado em garantia hipotecária da dívida executada.
Além disso, de acordo com a tese firmada pelo STF ao tratar do Tema 961, fica também assegurada a impenhorabilidade da pequena propriedade rural constituída de mais de 1 terreno, desde que contínuos e com área total inferior a 4 módulos fiscais do município de localização.
*Hélio Ricardo Diniz Krebs é advogado,fundador do Diniz Krebs Advocacia e Consultoria, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SC.
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