O overruling praticado pelo STJ e a insegurança jurídica em torno da (i)legalidade do CDI nos contratos bancários.
Por Hélio Ricardo Diniz Krebs –Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SC.
1 – BREVE INTRODUÇÃO.A Súmula 176/STJ, editada em 26/10/1996, dispõe que “É nula a cláusula contratual que sujeita o devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID/CETIP)”.
Com base no enunciado dessa súmula, os tribunais pátrios, em sua grande maioria, inclusive o próprio STJ, vinham há anosreconhecendo a ilegalidade da incidência do CDI nos contratos bancários, seja como índice de correção monetária ou como componente dos encargos remuneratórios, uma vez que referida taxa é divulgada pela CETIP.
Ocorre que, ao julgar o REsp nº 1.781.959/SC, em 11/02/2020, a 3ª Turma do STJ, sob a relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, decidiu, em suma, que “Não é potestativa a cláusula que estipula os encargos financeiros de contrato de abertura de crédito em percentual sobre a taxa média aplicável aos Certificados de Depósitos Interbancários (CDIs), visto que tal indexador é definido pelo mercado, a partir das oscilações econômico-financeiras, não se sujeitando a manipulações que possam atender aos interesses das instituições financeiras”.
A partir desse julgamento, os tribunais pátrios deram início à modificação do entendimento até então predominante em torno da matéria, porém, sem a necessária preocupação com aqueles jurisdicionados que, com a legítima expectativa de êxito, decorrente da estabilidade da jurisprudência em seu favor, já haviam ajuizado ações com vistas a afastar a incidência do CDI dos seus contratos.
Conforme será demonstrado ao longo deste artigo, essa reviravolta no entendimento jurisprudencial, além de ter desprezadoimportantes princípios da teoria dos precedentes, também partiu de premissas equivocadas, causando efeitos nefastos aos jurisdicionados, principalmente, por não ter havido a modulação dos efeitos do novo entendimento e, consequentemente, violando a tão almejada segurança jurídica (uniformidade, estabilidade, previsibilidade e isonomia).
Assim, este artigo tem como objetivo tratar da (i)legalidade do CDI nos contratos bancários, a partir da legislação infraconstitucional, das normas do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil a respeito da matéria, bem como sob a ótica da jurisprudência do STJ e seus reflexos sobre os demais tribunais pátrios, em especial, o TJSC, local de atuação predominante deste articulista, e o TJSP, que é o maior Tribunal de Justiça do país.
2 – DO OVERRULING PRATICADO PELO STJ E SEUS REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA.
Em 11/11/2022, o TJSC publicou a Súmula 65, com o seguinte teor: “A cláusula que estipula o Certificado de Depósito Interbancário – CDI como encargo financeiro não é potestativa, por não sujeitar o devedor ao arbítrio do credor, visto que esse indexador é definido pelo mercado, a partir de oscilações econômico-financeiras, o que afasta a incidência da Súmula 176 do STJ”.
Contudo, a edição e publicação da referida Súmula parece ter ocorrido de forma precipitada, além de ter sido embasada em julgados do STJ orientados pelo acórdão do REsp nº 1.781.959/SC que, como já adiantado, partiu de premissas equivocadas ao realizar o overruling do entendimento jurisprudencial sobre a matéria. Diz-se isso, fundamentalmente, porque:
2.1.) Tendo em vista que se trata de matéria que há muitos anos se repete em múltiplos processos – cujo entendimento do TJSChá pelo menos 26 anos vinha sendo no sentido contrário ao da Súmula 65/TJSC –, a mudança do entendimento jurisprudencial deveria ser precedida de amplo contraditório, com a participação de entidades representantes dos consumidores, empresários e instituições financeiras, tudo mediante a instauração do devido Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (art. 976 e ss do CPC).
Com efeito, ao menos desde 04/11/1997 (data do primeiro acórdão que aparece na pesquisa jurisprudencial do site do TJSC, qual seja, o da apelação nº 1997.008857-4) até a publicação da referida Súmula, com exceção, s.m.j., de apenas três recentes julgados – que foram embasados no precedente do REsp nº 1.781.959/SC (que realizou o overruling do entendimento jurisprudencial sobre a matéria), a ser melhor analisado adiante –, todos os acórdãos do TJSC eram no sentido de vedar a incidência do CDI nos contratos bancários, comfulcro no CDC e/ou na Súmula 176/STJ.
Tanto é assim que, os únicos 3 precedentes citados como base para a edição da Súmula 65/TJSC são todos da 3ª Turma do STJ(REsp n. 1.978.445/RS, AgInt no AREsp n. 2.021.243/SP e AgInt no AREsp n. 1.645.706/RS), o que, por si só, data maxima venia, impediria a edição da referida Súmula, por contrariedade ao art. 335 do Regimento Interno do TJSC, in verbis: “A jurisprudência assentada pelo Tribunal de Justiça poderá ser compendiada em súmula” (g.n.).
Ademais, procedimento semelhante também deveria ter sido adotado pelo STJ, com a afetação de Recurso Especial Representativo da Controvérsia (art. 1.036 e ss do CPC), uma vez que, até o julgamento do REsp nº 1.781.959/SC, em 11/02/2020, também vigorava naquela Corte Superior o entendimento de que a incidência do CDI nos contratos bancários era vedada, nos termos da Súmula 176/STJ.
Nesse sentido era o entendimento da 4ª Turma e da 3ª Turma, sendo que nesta, até então, o entendimento se dava tão somente por meio de Decisões Monocráticas de seus membros, muito provavelmente pelo receio das instituições financeiras em interpor agravo interno e sofrerem a multa do art. 1.021, § 4º do CPC, uma vez que a vedação do CDI se dava com base em Súmula do próprio STJ. Aliás, até mesmo depois de julgado e publicado o acórdão do REsp 1.781.959/SC (que realizou o overruling), a 3ª Turma, por unanimidade, reconheceu a ilegalidade do CDI como índice de remuneração do contrato bancário, nos termos da Súmula 176/STJ.
No entanto, por entender que ainda não existe um entendimento consolidado sobre a matéria naquela Corte Superior, a Exma. Minª. Nancy Andrighi recentemente rejeitou pedido de afetação de Recurso Especial, nos termos do art. 1.036 e ss. do CPC, o que apenas corrobora o quanto aqui se argumenta, sobre a Súmula 65/TJSC ter sido editada precipitadamente.
De todo modo, independentemente de ter sido instaurado pelo STJ o incidente previsto no art. 1.063 e ss. do CPC (ou mesmo o Incidente de Assunção de Competência, tendo em vista a suposta ausência de sedimentação da jurisprudência em torno do tema, tal como consignado pela Minª. Nancy Andrighi, no REsp n. 1.954.194), observa-se que a Súmula 176/STJ, o acórdão da 4ª Turma (AgInt no AREsp 1407662/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 05/09/2019) e as Decisões Monocráticas (mencionadas acima) anteriores ao acórdão do REsp 1.781.959/SC, não deixam dúvidas de que este julgado, de fato, realizou o overruling do entendimento jurisprudencial em torno da matéria.
Diante desse cenário, mostra-se possível sustentar que o acórdão do REsp 1.781.959/SCcarece de legitimação democrática, especialmente porque sua fundamentação éembasada quase que exclusivamente em argumentos trazidos em parecer produzido e apresentado pela FEBRABAN naqueles autos, após solicitar sua participação como amicus curiae.
Com todo o respeito, embora fosse um caso já trivial de aplicação da Súmula 176/STJ, a partir do momento que se admitiu a manifestação de entidade voltada a proteger os interesses das instituições financeiras e, vislumbrada a possibilidade de modificação de entendimento reiterado naquela Corte Superior, mostrava-se justo e razoável que – mesmo falhando em não afetar o recurso à sistemática dos recursos repetitivos – fossem oficiadasentidades com interesses contrapostos à FEBRABAN, a fim de possibilitar um amplo debate sobre a matéria, o que, como se verámais adiante, poderia ter levado aquele julgamento a resultado diverso. Além disso, deveria ter havido a necessária modulação dos efeitos da alteração do entendimento jurisprudencial, nos termos do art. 927, § 3º do CPC e arts. 23 e 24 da LINDB, em prestígio aos princípios da proteção da confiança, da segurança jurídica e da isonomia.
2.2.) Outro argumento que demonstra ter sido a Súmula 65/TJSC editada precipitadamente, repousa no fato de que seu enunciado não delimita se o CDI passaria a seradmitido nos contratos bancários somente como componente dos encargos remuneratórios, ou também como índice de correção monetária. Com efeito, entre o julgamento do REsp 1.781.959/SC e a publicação da Súmula 65/TJSC, o STJ vinha divergindo sobre o assunto, com acórdãos da 4ª Turma considerando ilegal a incidência do CDI como índice de atualização monetária, bem como considerando legal tal previsão contratual, desde que a soma da correção monetária com os encargos remuneratórios não ultrapasse a taxa média de mercado. Já a 3ª Turma, com exceção do já mencionado acórdão que, mesmo após o acórdão do REsp 1.781.959/SC, reconheceu a ilegalidade do CDI como índice de remuneração do contrato bancário, com base Súmula 176/STJ, possuía precedente apenas no sentido de admitir a incidência do CDI também como índice de correção monetária.
Tal lacuna já vem ocasionando insegurança jurídica ao criar divergência sobre o assunto entre as Câmaras de Direito Comercial do TJSC, uma vez que as 2ª e 3ª Câmarasconsideram ilegal a incidência do CDI como índice de correção monetária, ao passo que as 4ª, 5ª e 6ª Câmaras possuem julgados admitindo-o também como índice de correção monetária.
Entre as Câmaras de Direito Privado do TJSP, cuja grande maioria vinha decidindo por vedar a incidência do CDI como índice de correção monetária e como componente dos encargos remuneratórios, o cenário não é diferente. Apenas a título exemplificativo, tem-se que a 37ª Câmara vem reconhecendo a legalidade da incidência do CDI como componente dos encargos remuneratórios, ao passo que a 19ª Câmara considera ilegal tal hipótese. Já a 18ª Câmara considera ilegal a incidência do CDI como índice de correção monetária, ao passo que a 22ª Câmara considera legal tal hipótese.
Ocorre que, atualmente, o entendimento tanto da 3ª como da 4ª Turma do STJ, acabou se firmando no sentido de vedar a incidência do CDI como índice de correção monetária nos contratos, demonstrando, mais uma vez, que a matéria ainda não se encontra madura para ser “engessada”, por meio de enunciado sumular, tal como procedeu o TJSC. Aliás, ao vedar a sujeição do devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID/CETIP, a Súmula 176/STJ não fez nenhuma distinção sobre tal sujeição ser a título de encargos remuneratórios ou correção monetária.
3 – AS PREMISSAS QUE EMBASARAM O OVERRULING.
No acórdão do REsp 1.781.959/SC, cuja fundamentação acolheu muitos dos argumentos trazidos aos autos pela FEBRABAN, na qualidade de amicus curiae, restou consignado um novo entendimento jurisprudencial, que veio assimretratado na respectiva ementa: “De acordo com as normas aplicáveis às operações ativas e passivas de que trata a Resolução nº 1.143/1986, do Conselho Monetário Nacional, não há óbice em se adotar as taxas de juros praticadas nas operações de depósitos interfinanceiros como base para o reajuste periódico das taxas flutuantes, desde que calculadas com regularidade e amplamente divulgadas ao público.
O depósito interfinanceiro (DI) é o instrumento por meio do qual ocorre a troca de recursos exclusivamente entre instituições financeiras, de forma a conferir maior liquidez ao mercado bancário e permitir que as instituições que têm recursos sobrando possam emprestar àquelas que estão em posição deficitária.
Nos depósitos interbancários, como em qualquer outro tipo de empréstimo, a instituição tomadora paga juros à instituição emitente. A denominada Taxa CDI, ou simplesmente DI, é calculada com base nas taxas aplicadas em tais operações, refletindo, portanto, o custo de captação de moeda suportado pelos bancos.
[…]
Não é potestativa a cláusula que estipula os encargos financeiros de contrato de abertura de crédito em percentual sobre a taxa média aplicável aos Certificados de Depósitos Interbancários (CDIs), visto que tal indexador é definido pelo mercado, a partir das oscilações econômico-financeiras, não se sujeitando a manipulações que possam atender aos interesses das instituições financeiras.
Eventual abusividade deve ser verificada no julgamento do caso concreto em função do percentual fixado pela instituição financeira, comparado às taxas médias de mercado regularmente divulgadas pelo Banco Central do Brasil para as operações de mesma espécie, conforme decidido em precedentes desta Corte julgados sob o rito dos recursos repetitivos, o que não se verifica na espécie”.
Contudo, com todo o respeito, tal entendimento partiu de premissas equivocadas, uma vez que:
3.1.) a taxa DI ou CDI não representa o custo de captação de moeda pelas instituições financeiras, pois, como é cediço e, inclusive, conforme consta no próprio parecer juntado pela FEBRABAN naqueles autos, o CDI é calculado tão somente com base nas operações “[…] em que uma instituição financeira com saldo de operações ‘credor’ empresta recursos a outra instituição financeira que esteja com saldo de operações ‘devedor’. Tais empréstimos normalmente tem prazo de um dia” (g.n.). Além disso, também conforme mencionado no referido parecer da FEBRABAN, inclusive, em trecho citado no próprio acórdão em questão, “[…] o CDI, como explicado, somente é operado entre instituições financeiras e, portanto, a Taxa DI exprime fielmente o custo de captação de recursos no mercado interfinanceiro e praticamente tem sua flutuação atrelada à da Taxa Selic” (g.n.).
No mesmo sentido é a lição de Bruno Miragem, citada na fundamentação do acórdão do REsp 1.781.959/SC, quando afirma que taxa DI-CETIP “Trata-se da taxa média calculada e divulgada pela CETIP, mediante ponderação do volume de operações de emissão de depósitos interfinanceiros pré-fixados, pactuadas por um dia útil e registradas e liquidadas em seu sistema. É denominada formalmente taxa DI-CETIP Over Extra-Grupo, em vista de o seu cálculo considerar um dia útil de prazo (overnight) e contemplar apenas operações celebradas entre instituições de diferentes conglomerados financeiros. […] (Direito bancário, 2. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2018, pág. 73)”.
Portanto, por não constar no referido acórdão ou no mencionado parecer da FEBRABAN qualquer informação que possa dar ensejo a conclusão diversa, constata-se que a taxa DI ou CDI é calculada com base em um “acordo” entre instituições financeiras, de modo que, ao adotar-se como parâmetro para tais empréstimos um percentual pouquíssimo inferior à taxa SELIC, ao mesmo tempo impede-se que haja concorrência no mercado interfinanceiro(entre as próprias instituições financeiras), bem como que uma instituição financeira obtenha vantagens exageradas sobre outra, que sofreráprejuízos além do esperado, quando estiver comdéficit de caixa para fechar o dia. Em outras palavras, a taxa DI ou CDI reflete o custo de captação de dinheiro para as instituições financeiras apenas e tão somente nessas operações realizadas no mercado interfinanceiro que, repita-se, possuem prazo de apenas um dia.
Basta observar que, ao oferecer CDB´s, LCA´s, LCI´s e outros títulos de investimento(que correspondem a um dos meios de captação de recursos), as instituições financeiras dificilmente remuneram seus investidores com 100% do CDI ou mais, a não ser quando o CDI está em patamares baixíssimos, tal como ocorreu no ano de 2020, quando o CDI esteve próximo de 2% a.a.. De todo modo, mesmo com o CDI e a SELIC em patamares baixos (em torno de 6,5% a.a. em 2018 ou 2%, em 2020), a taxa média de juros cobradas pelas instituições financeiras nas mais variadas operações no mercado financeiro, jamais acompanha tais quedas de forma proporcional.
Outrossim, conforme ressaltado no parecer da FEBRABAN, em trechos citados na fundamentação do v. acórdão do REsp 1.781.959/SC “[…] a Taxa DI (ou Taxa-CDI) é praticada em valores inferiores aos da Taxa Selic (diferença média de 0,05 p.p. entre as taxas acumuladas) […] e praticamente tem sua flutuação atrelada à da Taxa Selic” (g.n.).
No entanto, muito embora historicamente o CDI tenha acompanhado de perto a SELIC, não há nenhuma norma das autoridades monetárias que determine essa vinculação. Portanto, como a taxa DI ou CDI é calculada exclusivamente com base nas operações realizadas entre instituições financeiras, nada impede que, a qualquer momento e ao bel prazer dessas instituições,referida taxa deixe de acompanhar a SELIC, para ser fixada em patamares mais elevados, bastando para tanto um novo “acordo” nesse sentido. Se assim não fosse, por que as instituições financeiras não trocam a previsão contratual de incidência do CDI pela SELIC, já que se trata de taxa definida por uma autarquia federal (o que supostamente lhe confere maior transparência)? Seria porque a taxa SELIC, embora possa sofrer influência das instituições financeiras, não é de todo por elas controlada?
Mais um motivo, portanto, para se concluir que a cláusula que sujeita o devedor à taxa CDI ofende, indubitavelmente, o disposto nos arts. 122 do CC e 6º, III e 52 do CDC.
Não bastasse isso, a taxa DI ou CDI sempre foi calculada pela CETIP (razão pela qual sempre foi vedada pelo claríssimo enunciado da Súmula 176/STJ) que, mesmo tendo sido incorporada pela B3 em 2017, não deixou de existir e continua exercendo as mesmas funções.
Em vista disso, observa-se, com o máximo respeito, que também parte de premissas equivocadas o distinguishing realizado na fundamentação do acórdão do REsp nº1.630.706/SP, quando consigna que “[…] no presente recurso não se cuida da taxa de juros que era divulgada pela extinta ANBID (Associação Nacional de Bancos), associação que congregava instituições bancárias, o que ensejaria a aplicação da Súmula 176 (‘É nula a cláusula contratual que sujeita o devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID /CETIP’), mas de cláusula contratual em que pactuado como encargo a variação dos Certificados de Depósitos Interbancários (CDI), indexador inicialmente divulgado pela extinta CETIP e atualmente pela sua sucessora a B3 S/A, variável conforme as oscilações do mercado, não sujeito a manipulações por parte dos bancos”.
Aliás, a séria histórica da taxa CDI e o seu cálculo ainda são divulgados no site da própria CETIP, onde se observa que, ao contrário do que possa parecer das alegações trazida com o parecer da FEBRABAN no REsp nº 1.781.959/SC, trata-se claramente de índice de dificílimo entendimento, até mesmo para pessoas com razoável conhecimento do mercado financeiro (e aqui fica o convite para que o leitor acesse o referido site).
Nesse sentido, ressalta-se que, em muitos dos julgados do TJSC, em que a utilização do CDI nos contratos bancários restou vedada, a Súmula 176/STJ sequer foi citada ou foi citada como fundamento complementar, pois o fundamento principal para tal proibição recaía sobre a ofensa ao dever de informação. Nesse sentido, cita-se o v. acórdão da apelação nº 0302002-34.2015.8.24.0054, de relatoria do Exmo. Des. Guilherme Nunes Born, onde restou consignado que “Cediço que o Certificado de Depósito Interbancário – CDI tem natureza remuneratória, não recomposição do poder de compra da moeda, e consiste em taxa flutuante, pelo que obsta ao consumidor o prévio e indubitável conhecimento acerca do percentual incidente e o valor da prestação efetivamente devida, em clara ofensa ao direito do consumidor à informação prévia e adequada de produtos e serviços que envolvem a outorga de crédito (art. 6º, III e art. 52, CDC)”.
Do mesmo modo, ao julgar o recurso de apelação nº 0302842-84.2018.8.24.0039, sob a relatoria do Exmo. Des. José Carlos Carstens Köhler, o TJSC consignou que “[…] a aplicação do CDI resulta em evidente violação ao direito de informação do Consumidor, a teor do art. 6º, inciso III, do CDC, à medida que se trata de taxa flutuante, vez que não resta clara qual será a taxa efetivamente aplicada a cada mês”.
Ademais, ainda que realmente a taxa CDI fosse definida “pelo mercado, a partir das oscilações econômico-financeiras”, esse “mercado” e as “oscilações econômico-financeiras” estariam atrelados – ao menos por enquanto – unicamente à taxa SELIC, uma vez que o CDI, como visto, acompanha de perto a SELIC. O grande problema dessa assertiva é que a taxa SELIC pode variar, por exemplo, de acordo com a política econômica do governo, que pode ou não ter relação com a inflação ou com o custo do dinheiro para as instituições financeiras, de modo que se mostra por demais perverso com o devedor, que fique sujeito a uma taxa que, em pouco mais de um ano, possa variar de 2% a.a. para 13,75% a.a., tal como ocorreu recentemente entre 2021 e 2022.
Essa forte oscilação, frise-se, é uma das principais causas de “quebra” de diversas empresas ao longo dos anos, tendo-se como exemplo recente a multinacional POLISHOP, cujo fundador, João Appolinário, apontou o CDI como o grande responsável pelo aumento do endividamento da empresa.
Mas não é só. Ainda mais grave é o fato de que, ao contrário da esmagadora maioria deseus clientes, as instituições financeiras sempre possuíram – e ainda possuem – poder de influência ou ao menos são as primeiras a ter ciência sobre os novos rumos da política monetária e sua influência sobre as tendências de queda ou baixa da taxa SELIC que, por consequência, influenciará diretamente o CDI.
Explica-se. A SELIC é a taxa básica de juros da economia e é definida a cada 45 dias, em reuniões realizadas pelo Comitê de Política Monetária (Copom), órgão do Banco Central(BACEN), criado pela Circular nº 2.698, de 20 de junho de 1996 e formado pelo seu Presidente e Diretores.
Segundo o art. 9º da Lei nº 4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro Nacional), “Compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional”.Conforme o art. 52 da referida lei, o quadro de pessoal do BACEN é constituído de: “I – Pessoal próprio, admitido mediante concurso público de provas ou de títulos e provas, sujeita à pena de nulidade a admissão que se processar com inobservância destas exigências; II – Pessoal requisitado ao Banco do Brasil S. A. e a outras instituições financeiras federais, de comum acordo com as respectivas administrações; III – Pessoal requisitado a outras instituições e que venham prestando serviços à Superintendência da Moeda e do Crédito há mais de 1 (um) ano, contado da data da publicação desta lei”.
O Conselho Monetário Nacional (CMN), por sua vez, de acordo com o art. 6º da Lei nº 4.595/64, com a redação vigente até a entrada em vigor da LC nº 179/21 (que trouxe profundas alterações ao Sistema Financeiro Nacional), era composto pelos: “I – Ministro da Fazenda que será o Presidente; II – Presidente do Banco do Brasil S. A.; III – Presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico; IV – Sete (7) membros nomeados pelo Presidente da República, após aprovação do Senado Federal, escolhidos entre brasileiros de ilibada reputação e notória capacidade em assuntos econômico-financeiros, com mandato de sete (7) anos, podendo ser reconduzidos.”
Além disso, conforme previa o art. 7º da Lei nº 4.595/64, com a redação vigente até a entrada em vigor da LC nº 179/21, atuavam junto ao CMN, as Comissões Consultivas Bancária, de Mercado de Capitais, de Crédito Rural e de Crédito Industrial, todas formadas, em sua maioria, por representantes de instituições financeiras públicas e privadas, cooperativas de crédito e outras instituições que comumente integram o mesmo grupo econômico de instituições financeiras, tais como Companhias de Seguros Privados e Capitalização.
Ressalta-se, ainda, o quanto disposto nos incisos IV, V e VI do art. 3º da Lei nº 4.595/64 (com a redação ainda em vigor), ao estabelecer entre os objetivos da política do CMN: “IV – Orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras, quer públicas, quer privadas; tendo em vista propiciar, nas diferentes regiões do País, condições favoráveis ao desenvolvimento harmônico da economia nacional; V – Propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos financeiros, com vistas à maior eficiência do sistema de pagamentos e de mobilização de recursos; VI – Zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras;”.
Com efeito, na remotíssima hipótese de realmente se firmar o equivocado entendimento de que as instituições financeiras não possuemqualquer influência sobre o CDI e que a CETIP ou a B3 não atuam no mesmo sentido dos seus interesses, o arcabouço legislativo acima citado leva à inafastável conclusão de que, as instituições financeiras, pelo menos até a entrada em vigor da LC nº 179/21, sempre tiveram a possibilidade de influenciar oucertamente saber de antemão qual a meta e/ou o viés da taxa SELIC (o que não ocorre com a esmagadora maioria de seus clientes). Logo, como o CDI historicamente acompanha a SELIC, revela-se clara a vantagem que as instituições financeiras levam sobre os tomadores de empréstimo, quando inserem no contrato (comumente de adesão) o CDI como componente dos encargos remuneratórios ou como índice de correção monetária.
Portanto, não bastasse o CDI ser divulgado pela CETIP/B3 – e, por isso mesmo, ter sua incidência vedada pela clara e expressa previsão da Súmula 176/STJ – e evidentementesofrer influência das instituições financeiras (pois, como visto, é calculado exclusivamente com base nas operações do mercado interfinanceiro), observa-se que a própria SELIC também sofre, ainda que em maior ou menor grau, certa dose de influência das instituições financeiras em sua definição.
Mas não é só. Conforme consta na própria fundamentação do acórdão do REsp 1.781.959/SC, “A Taxa Selic, invocando mais uma vez a lição de Bruno Miragem, ‘(…) foi criada pela Circular 466/1979 do BACEN, e é a aplicada para remuneração de títulos públicos federais negociados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC). Trata-se de um sistema informatizado para registro, custódia e liquidação de títulos emitidos pelo Tesouro Nacional. Administrado pelo BACEN em parceria com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA)’”.
Como se pode perceber, a apuração da taxa SELIC conta com a participação da ANBIMA, cuja finalidade, conforme consta em seu site, é falar “em nome de instituições como bancos, gestoras, corretoras, distribuidoras e administradoras”. A ANBIMA, vale dizer, trata-se de entidade criada mediante a junção da ANDIB (sim, aquela mencionada na Súmula 176/STJ) com a ANDIMA e tem entre seus associados o Banco B3 que, conforme consta em seu próprio site, é inteiramente controlado pela B3 (sim, aquela que incorporou a CETIP, que é quem apura e divulga o CDI!!).
Desse modo, estando o CDI atrelado à taxa SELIC e sendo ambas as taxas apuradas por entidades que defendem os interesses de instituições financeiras, resta claro, também por este motivo, que permanecem inalterados osfundamentos que embasaram os precedentes doSTJ que deram origem à Súmula 176/STJ. Nesse sentido, extrai-se da própria fundamentação do acórdão do RESp nº 1.781.959/SC, que “No REsp nº 28.599/MG, julgado sob a relatoria do igualmente saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo, o órgão julgador considerou inadmissíveis ‘(…) as estipulações contratuais que prevejam encargos financeiros vinculados a taxas ou índices sobre cuja aferição uma das partes contratantes exerça, em maior ou menor medida, influência, ingerência’”.
Por outro lado, mesmo que não houvesse influência ou prévia ciência das instituições financeiras sobre a meta e/ou o viés da taxa SELIC (e, por consequência, também do CDI), ainda assim não faria sentido permitir a incidência do CDI nos contratos bancários.
Isso porque, a SELIC pode oscilar não apenas de acordo com o “mercado, a partir das oscilações econômico-financeiras”, tal como consignado no acórdão do REsp nº 1.781.959/SC, mas principalmente por questõesde política monetária, da qual não é justo que o tomador de crédito fique à mercê. Nesse sentido, vale reiterar aqui o recentíssimo cenário da economia nacional, em que, por questão de política econômica e sob a influência do Ministro da Fazenda Paulo Guedes, a SELIC (e, por consequência, o CDI) variou de aproximadamente 2% a.a. para 13,75% a.a., apenas entre os anos de 2020 e 2022.
Para corroborar o que ora se alega, basta observar que, embora a LC nº 179/21 tenha conferido relativa autonomia ao BACEN, o seu art. 2º dispõe que “As metas de política monetária serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, competindo privativamente ao Banco Central do Brasil conduzir a política monetária necessária para cumprimento das metas estabelecidas” (g.n.).
Ocorre que, o Conselho Monetário Nacional atualmente é composto pelo Ministro de Estado da Fazenda (presidente do Conselho), Ministra de Estado do Planejamento e Orçamento e pelo Presidente do Banco Central do Brasil, sendo que apenas este último não é necessariamente nomeado pelo Presidente da República em exercício (art. 4º, § 1º da LC 179/21), embora seja a ele subordinado para determinados assuntos (v.g.: art. 13 do Decreto nº 10.789/21). Em outras palavras, por seguir de perto a taxa SELIC, o CDI fica sujeito a influências meramente políticas, cujas oscilações são de dificílima ou impossível previsão para o homem médio e até mesmo para experientes empresários.
Não bastassem todos esses argumentos, um importante fator a ser levado em consideração é o fato do que, para as instituições financeiras, não se observa prejuízo com a oscilação do CDI (e os lucros líquidos anualmente divulgados pelas maiores instituições financeiras do país corroboram essa assertiva), pois, mesmo com a diminuição do spreaddecorrente da baixa da SELIC e do CDI (tal como visto, por exemplo, nos anos de 2019 a 2021), a taxa de juros das operações bancárias não é proporcionalmente reduzida, sendo que basta uma consulta às taxas médias divulgadas pelo BACEN, em relação a diversas espécies de operações para corroborar tal assertiva.
3.2.) A partir de uma análise aprofundada das normas do BACEN, citadas no v. acórdão do REsp 1.781.959/SC para fundamentar a validade do CDI como encargo financeiro nos contratos bancários, pode-se chegar à conclusão diversa daquela alcançada pelo Eg. STJ.
Explica-se. Consta no referido v. acórdão que “A redação adotada na Circular nº 1.978, de 26/6/1991, na parte que veda ‘(…) a utilização, a qualquer título, como indexador ou base de remuneração, de indicadores obtidos a partir das taxas de juros praticadas nas operações de depósitosinterfinanceiros’ (art. 5, I), serviria de reforço ao entendimento manifestado no acórdão recorrido”.
Contudo, a utilização do CDI como encargo financeiro nos contratos bancários não estaria vedada apenas pelo inciso I do art. 5º da referida Circular, mas também pelo inciso II, que também veda “A previsão contratual de mais de uma base de remuneração ou mais de um índice de preços, exceto nas hipóteses de extinção daquele estabelecido ou dos casos expressamente previstos na regulamentação em vigor”.
Ora, tendo em vista que, o próprio STJ reconhece que “O CDI reflete a remuneração do capital” e que a grande maioria dos contratos que prevê o CDI como encargo remuneratório, o coloca ao lado de um percentual de juros remuneratórios, resta claro que o contrato pactuado nestas condições possui duas bases de remuneração, o que é vedado pela referida norma.
Essa proibição permaneceu durante a vigência das Circulares ns. 2.216/92 (art. 2º), 2.436/94 e também da Circular nº 2.905/99 (art. 5º, I), que ainda continua em vigor.
Não bastasse isso, desde a Circular nº 2.216/92, subsiste outra vedação para a utilização do CDI como encargo financeiro nos contratos bancários. Isso porque, segundo o item “c” do parágrafo 1º do art. 1º, “a taxa referencial a que se refere este artigo: c – deverá se basear em operações contratadas a prazo não inferior ao período de reajuste estipulado contratualmente”.
No entanto, como afirmado pela própria FEBRABAN em seu parecer juntado aos autos doREsp 1.781.959/SC, as operações que embasam o cálculo da taxa DI ou CDI são contratadas pelo prazo de apenas 1 (um) dia, ao passo que, via de regra, os reajustes estipulados nos contratos bancários ocorrem no prazo de 30 (trinta) dias. Essa vedação, frise-se, continuou e foi ainda ampliada no art. 3º, parágrafo único, II da Circular nº 2.436/94, ao dispor que “A taxa flutuante a que se refere este artigo: II – deverá se basear em operações contratadas a taxas de mercado prefixadas, com prazo não inferior ao período de reajuste estipulado contratualmente”.
Diz-se que a vedação foi ampliada, porque ainda se determinou que a taxa flutuante deve ser embasada em operações contratadas a taxas de mercado prefixadas, o que não é o caso das operações realizadas entre as instituições financeiras, no mercado interfinanceiro. E tal vedação também permaneceu na Circular nº 2.905/99 (art. 3º, II), que ainda continua vigente.
Portanto, verifica-se que, ao elencar como requisitos para a utilização de taxas flutuantes embasadas em taxas de juros praticadas nas operações de depósitos interfinanceiros, tão somente que estas sejam “calculadas com regularidade e amplamente divulgadas ao público”, o v. acórdão do REsp 1.781.959/SC desprezou os demais requisitos previstos nas mesmas normas que fundamentama conclusão adotada no referido decisum.
3.3.) O acórdão do REsp 1.781.959/SC tratou de contrato de abertura de crédito e não de contrato de mútuo/empréstimo, sendo tal peculiaridade integrante da ratio decidendi do referido julgado, cuja fundamentação é expressa no sentido de que “Não é potestativa a cláusula que estipula os encargos financeiros de contrato de abertura de crédito em percentual sobre a taxa média aplicável aos Certificados de Depósitos Interbancários (CDIs), visto que tal indexador é definido pelo mercado, a partir das oscilações econômico-financeiras, não se sujeitando a manipulações que possam atender aos interesses das instituições financeiras.
Tal peculiaridade, embora possa parecerirrelevante, trata-se de questão importantíssima para a matéria.
Isso porque, na hipótese de se considerar legal a cobrança do CDI como encargo financeiro, sob a justificativa de que tal índice reflete “o custo de captação de moeda suportado pelos bancos”, só faria sentido, quando muito,admitir a cobrança do CDI nos contratos de abertura de crédito, em que o dinheiro apenas fica à disposição do consumidor, que poderá utilizar o referido crédito ou não, de modo que é na data em que for utilizado o crédito que se pode considerar o custo de captação da moeda para o banco. Ou seja, optando por utilizar o crédito (e podendo pesquisar previamente qual a taxa do CDI nessa data), normalmente o consumidor devolve o dinheiro dentro de poucos dias, semanas, ou meses, uma vez que essa espécie de contrato possui juros muito mais altos do que aqueles previstos para os empréstimos comuns, com número de parcelas para pagamento previamente fixadas.
Já nos contratos de empréstimos comuns, em que o banco entrega o dinheiro para o cliente, para receber de volta em 12, 24, 48, 60 ou ainda mais parcelas, não faz sentido algum que a operação continue sendo remunerada pelo CDI durante todos esses meses, uma vez que o custo da captação do dinheiro para o banco deve ser aquele observado na data da contratação.
Talvez seja por essa razão que, mesmo após o julgamento do REsp 1.781.959/SC, a própria 3ª Turma do Eg. STJ tenha reconhecido a ilegalidade do CDI como encargo remuneratório(taxa de juros) em outro caso, que não tratava de contrato de abertura de crédito.
Trata-se do v. acórdão do AgInt no AgInt no AREsp 1599182/SP, julgado em 04/05/2020, em que restou consignado o entendimento de que “É ilegal a fixação da taxa de juros vinculada ao Certificado de Depósito Interbancário – CDI, por ser a CETIP a responsável pela sua apuração e divulgação, atraindo a incidência da Súmula nº 176 do STJ, segundo a qual é nula a cláusula contratual que sujeita o devedor a taxa de juros divulgada pela ANBID/CETIP”.
4 – OVERRULING OU DISTINGUISHING: INSEGURANÇA JURÍDICA E MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA ALTERAÇÃO JURSIRPUDENCIAL.
Por tudo o que foi exposto acima, resta clara a enorme insegurança jurídica que paira sobre a (i)legalidade do CDI nos contratos bancários. Consequentemente, não é difícil vislumbrar situações em que referida insegurança jurídica acarreta efeitos nefastos aos jurisdicionados.
Explica-se. Imagine-se, por exemplo, a situação de uma empresa de transportes que tem o imóvel de sua sede e todos os seus veículos alienados fiduciariamente em garantia, mediante contratos de empréstimos/financiamento, que contenham o CDI como componente dos juros remuneratórios.Tendo em vista o entendimento até então consolidado sobre a ilegalidade do CDI, referida empresa ajuizou ação revisional, com pedido de tutela de urgência, que foi deferido para que o depósito das parcelas do contrato fosse realizado em juízo, substituindo-se o CDI pelo INPC (ou ainda pela taxa média de mercado) e, com isso, descaracterizando-se a eventual mora contratual.
Continuando a narrativa do caso hipotético, a empresa vinha realizando os depósitos em juízo – tal como autorizado pela decisão liminar – por cerca de 2 anos até que, ao ser sentenciado o processo, o Juiz julga improcedente o pedido inicial e revoga a decisão liminar outrora concedida, colocando a empresa autora em situação de mora e sujeita à célere execução extrajudicial da dívida em relação ao contrato garantido pela sua sede, bem como à ações de busca e apreensão em relação aos contratos garantidos pelos veículos.
Agora, para manter-se na posse de seus bens (sede e veículos) a empresa devedora teria que pagar a diferença de tudo aquilo que deixou de pagar durante 2 anos e mais os respectivos encargos moratórios, decorrentes da revogação da liminar anteriormente concedida.
Não é muito difícil imaginar que, na grande maioria dos casos semelhantes, o jurisdicionado perderá todos os seus bens e, quiçá, ainda continuará em débito perante o credor fiduciário, quando o produto da execução da garantia fiduciária não for suficiente para quitar o total da dívida.
Diante de tais situações, mostra-se razoável argumentar que há uma violação da boa-fé objetiva por parte do Poder Judiciário, uma vez que, segundo Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, “O poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário), tanto no exercício de suas funções típicas como no de suas funções atípicas e administrativas, tem de agir segundo a boa-fé objetiva. Boa-fé objetiva é regra de conduta, consubstanciada na necessidade de o poder público praticar atos que dele se esperam em determinada circunstância. É cláusula geral e garantia constitucional. Essa regra implica a proibição de venire contra factum proprium, vício que se caracteriza quando se pratica ou pretende praticar ato incompatível com a conduta anterior, conduta anterior essa que criou no administrado/contribuinte/jurisdicionado certa expectativa”. (g.n.)
É evidente, portanto, que a reviravolta jurisprudencial causada a partir do julgamento do REsp nº 1.781.959/SC, sem a devida modulação dos efeitos, feriu de morte os princípios da isonomia, da segurança jurídica e da proteção da confiança, os quais recentemente o legislador buscou proteger no art. 927, §§ 3º e 4º do CPC e por meio da Lei nº 13.655/18, que introduziu os arts. 23 e 24 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Ao tratar da Lei nº 13.655/18, Teresa Arruda Alvim esclarece que, “[…] nos artigos 23 e 24, a nova lei diz algo de extrema relevância e quanto à alteração de posição da jurisprudência. O artigo 23 estabelece que a decisão, a respeito do tema X, que adota orientação diferente daquela que vinha sendo adotada pelas decisões anteriores do mesmo órgão, deve conter, em si mesma, regime de transição quanto à incidência dos efeitos que dela decorrem, quando isso for indispensável para concretização do princípio da confiança e da segurança jurídica. […]
O artigo 24, por sua vez, tem o alcance que, a nosso ver, deve ser efetivamente atribuído ao instituto da modulação. Diz que, quando o Judiciário revê certo ato, contrato, ajuste etc., que tenha se completado à luz de ´orientações gerais da época’, para se verificar da sua validade, devem-se levar em conta, como parâmetro, exatamente as orientações urgentes à época da ocorrência do ato, do contato etc., e não aquelas decorrentes de mudança de posicionamento posterior.
No parágrafo único desse mesmo dispositivo, consta que estas ‘orientações gerais’compreendem a ‘jurisprudência judicial’. Parece-nos, portanto, que este dispositivo significa que, aquele que agiu reiteradamente com base em orientação pacificada dos tribunais, a respeito do sentido de certa norma jurídica, quando tem seus atos avaliados pelo Judiciário, quanto à sua validade, faz jus a que seja julgado à luz dos parâmetros existentes à época em que a conduta se realizou, ainda que a orientação deste mesmo tribunal tenha sido alterada”.
Ocorre que, ao julgar o AgInt no REsp n. 2.016.417/SP e se manifestar sobre pedido de modulação dos efeitos da alteração jurisprudencial referente à (i)legalidade do CDI, o STJ, por meio de acórdão de lavra do Exmo. Min. Marco Buzzi e, com base na fundamentação do acórdão do já mencionado REsp nº 1.630.706/SP, decidiu que “Não há falar em modulação de efeitos, pois não houve mudança ou relativização da Súmula 176/STJ, mas o mero reconhecimento de sua inaplicabilidade às hipóteses de encargos pactuados sobre a variação dos CDI’s”.
Como se pode perceber dos referidos julgados, o STJ vem reconhecendo que a inaplicabilidade da Súmula 176/STJ para declarar a ilegalidade do CDI nos contratos bancários não decorre da prática do overruling, mas sim de aplicação da técnica do distinguishing.
No entanto, como visto acima, até o julgamento do REsp nº 1.781.959/SC, tanto os tribunais locais, como o próprio STJ (a 4ª Turma, por meio de acórdão e Decisões Monocráticas; e a 3ª Turma por meio de Decisões Monocráticas e, inclusive, um acórdão posterior ao do REsp nº 1.781.959/SC) vinham reconhecendo a ilegalidade do CDI com base na Súmula 176/STJ. O mesmo se diga, por exemplo, em relação ao TJSP e ao TJSC, que vinham há anos (o TJSC há mais de 20 anos e de forma mansa e pacífica) reconhecendo a ilegalidade do CDI.
Além disso, também já se demonstrou que o distinguishing realizado pelo acórdão do REsp nº 1.630.706/SP partiu de premissas equivocadas, uma vez que, a CETIP, embora incorporada pela B3, não deixou de existir e ainda é o órgão que calcula e divulga o CDI, razão pela qual a Súmula 176/STJ, enquanto não revogada, deveria ser aplicada para reconhecer a ilegalidade do CDI. E mais, ainda que os precedentes que deram origem à Súmula 176/STJ tratassem, em sua maioria (tal como afirmado pelo parecer da FEBRABAN apresentado no REsp nº 1.781.959/SC), de processos em que se questionava a utilização da taxa de juros apurada e divulgada pela ANBID/CETIP para a atualização dos encargos financeiros de títulos de créditos rurais emitidos em favor do Banco do Brasil, a ratio decidendi que ensejou a edição da referida súmula estava ligada, como se constata do próprio enunciado, à intrínseca parcialidade dos órgãos que divulgam referidas taxas (no caso do CDI, a CETIP), a qual permanece até os dias atuais, como visto acima.
Tais fatos, por si sós, revelam-sesuficientes para demonstrar que, de fato, ocorreu profunda alteração no entendimento jurisprudencial da Corte Superior, não havendo que se falar em mero distinguishing, mas sim em verdadeiro overruling, que nada mais é que a revogação do entendimento jurisprudencial consolidado.
Ocorre que, como alerta Luiz Guilherme Marinoni, Melvin Eisenberg afirma que “um precedente está em condições de ser revogado quando deixa de corresponder aos padrões de congruência social e consistência sistêmica e, ao mesmo tempo, os valores que sustentam a estabilidade – basicamente os da isonomia, da confiança justificada e da vedação da surpresa injusta – mais fundamentam a sua revogação do que a sua preservação.
Um precedente deixa de corresponder aos padrões de congruência social quando passa a negar proposições morais, políticas e de experiência. Essas proposições aparecem no raciocínio do common law exatamente quando se mostram relevantes para a elaboração, para a aplicação ou para a mudança de um precedente. As proposições morais determinam uma conduta como certa ou errada a partir do consenso moral geral da comunidade, as proposições políticas caracterizam uma situação como boa ou má em face do bem-estar geral e as proposições de experiência dizem respeito ao modo como o mundo funciona, sendo que a maior classe dessas últimas proposições descreve as tendências de condutas seguidas por subgrupos sociais.
A Corte deve utilizar proposições morais ancoradas nas aspirações da sociedade como um todo, assim como empregar proposições de conteúdo político que reflitam uma situação como boa para a generalidade da sociedade. Estas proposições, dentro de uma adequada metodologia, devem poder ser vistas como substancialmente fundadas na comunidade, derivar de normas morais ou políticas que têm esta base ou aparecer como se tivessem tal fundamento. Do mesmo modo, as proposições de experiência, assim como as de moralidade e política, devem ter ancoragem social. Porém, ao contrário das duas últimas, não necessitam ter base na generalidade da comunidade. É que as proposições de experiência podem dizer respeito a assuntos técnicos, de interesse e conhecimento de poucos, devendo, assim, encontrar fundamento em outro lugar, como em pareceres ou em opiniões de especialistas.
De outra parte, o precedente não tem consistência sistêmica quando deixa de guardar coerência com outras decisões. Isso ocorre quando a Corte decide mediante distinções inconsistentes, chegando a resultados compatíveis com o do precedente, mas fundados em proposições sociais incongruentes, e quando a Corte, apesar de tratar de situação diversa, decide com base em proposições sociais incompatíveis com as que fundamentaram o precedente”.
Entretanto, não se encontra, nem no acórdão do REsp nº 1.781.959/SC (que realizou o overruling) e nem nos demais que lhe seguiram, qualquer fundamento no sentido de que a vedação do CDI nos contratos bancários teria deixado de corresponder aos padrões de congruência social, consistência sistêmica e aos valores que sustentam a estabilidade do entendimento até então adotado em torno do CDI.
Por fim, a título de argumento consequencialista (presente na teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick),cumpre ressaltar que, o atual entendimento do STJ sobre a (i)legalidade do CDI, acaba por dar ensejo ao ajuizamento de mais de uma ação revisional sobre o mesmo contrato, à luz do disposto no art. 505, I do CPC.
Isso porque, conforme decidido no REsp nº 1.781.959/SC, “Eventual abusividade deve ser verificada no julgamento do caso concreto em função do percentual fixado pela instituição financeira, comparado às taxas médias de mercado regularmente divulgadas pelo Banco Central do Brasil para as operações de mesma espécie […]”.
Pois bem. Imagine-se a hipótese de uma ação revisional em que se busca o afastamento do CDI de um contrato que foi pactuado com taxa de juros remuneratórios de 1% a.m. + 100% do CDI, em época na qual o CDI anual estava em torno de 2%. Ao sentenciar o feito, o Juiz entende que referida taxa de juros remuneratórios, se comparada com a taxa média de mercado para o mesmo tipo de operação, não se mostra abusiva e julga improcedente o pedido inicial.
Meses depois, por razões imprevisíveis ao tomador de crédito, o CDI passa a aumentar excessivamente, chegando a 14% ao ano, de modo que os juros remuneratórios do contrato, agora, superam em mais de 50% a taxa média de mercado e, aos olhos daquele mesmo juiz, revelar-se-iam abusivos.
Nessa situação, de acordo com o art. 505, I do CPC, o tomador de crédito poderia ajuizar uma nova ação revisional visando ao afastamento do CDI, de modo que, como se pode observar, a insegurança jurídica causada pela reviravolta jurisprudencial em torno da (i)legalidade do CDI trata-se de um problema de mão dupla, com efeitos deletérios ao devedor, mas também ao próprio credor.
5 – CONCLUSÃO.
Ao longo deste artigo foram demonstrados diversos fundamentos pelos quais a incidência do CDI como componente dos juros remuneratórios ou como índice de correção monetária deveria permanecer sendo vedada pela jurisprudência pátria.
De todo modo, ainda que o leitor não concorde com nenhum dos fundamentos supracitados, os efeitos incontestavelmentenefastos, gerados pela repentina mudança de alteração do entendimento jurisprudencial sobre a matéria, revelam que algo ainda pode e merece ser feito, a fim de que se evitem ainda mais prejuízos aos jurisdicionados.
São precisas, nesse sentido, as palavras de Teresa Arruda Alvim, quando afirma que “no Brasil e em tantos outros países […], a dispersão excessiva da jurisprudência num mesmo momento histórico e a mudança brusca de entendimentos jurisprudenciais que já estavam absolutamente pacificados chocam e comprometem profunda e irremediavelmente a segurança jurídica (uniformidade, estabilidade, previsibilidade, isonomia) gerando mal-estar social. Isso sem falar no descrédito do próprio Poder Judiciário”.
Assim, mostra-se urgente e necessária a imediata instauração de IRDR nos tribunais locaise/ou a afetação de Recurso Especial Representativo da Controvérsia (ou IAC) perante o STJ, a fim de que, diferentemente do que se passou no julgamento do REsp nº 1.781.959/SC, outros setores da sociedade diretamente atingidos pelos efeitos do referido precedente, especialmente aqueles cujos interessem conflitem com os da FEBRABAN, possam apresentar pareceres e colaborar com o processo de construção democrática da decisão que vier a pacificar o assunto. Independentemente disso, urge aos tribunais que seguem aplicando o entendimento exposto no acórdão do REsp nº 1.781.959/SC, que passem ao menos a modular os efeitos da alteração jurisprudencial, para que a legalidade do CDI seja reconhecida somente nos processos ajuizados, no mínimo, 6 meses após 20/2/2020, que é a data da publicação do referido acórdão, haja vista a ausência de adequada publicidade prévia sobre o possível overruling que viria a ser praticado naquele julgamento.
Hélio Ricardo Diniz Krebs é advogado,fundador do Diniz Krebs Advocacia e Consultoria, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SC.
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