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ASPECTOS JURÍDICOS DO CONTRATO DE ENCOMENDA TECNOLÓGICA.

Por André Luís Vieira – Membro Efetivo do IASC, advogado e doutorando em direito público pela Universidade de Coimbra, Portugal.

“A necessidade é a mãe da inovação” – Platão

A economia contemporânea está fundamentalmente ancorada no uso intensivo de tecnologias, notadamente digitais e plataformas web, na gestão do conhecimento e na propriedade intelectual, além do capital intelectual e das capacidades nacionais vocacionadas à pesquisa e ao desenvolvimento (P&D) de novas possibilidades tecnológicas.

O Brasil não ocupa posição louvável no ranking no Índice Global de Inovação, fato por si só lamentável e elucidativo como um dos fundamentos para o ignóbil crescimento da economia, da reduzida geração de riquezas e da baixa competitividade global do sistema produtivo nacional.

Alterar esse cenário passa por reconfigurar a política de inovação alçando-a ao patamar de objetivo nacional estratégico, visando à institucionalização das atividades inovativas como mudança de mentalidade na capacitação de recursos humanos e na alocação de meios financeiros e de infraestrutura tecnológica.

A seara da ciência, tecnologia e inovação (CT&I), enquanto política pública, deve ser percebida como processo institucionalizado em organismos públicos ou privados e almejar, em última instância, à acumulação, melhoria, aplicação e difusão do conhecimento técnico, o beneficiando infraestruturas tecnológicas e o implemento de ecossistemas de inovação sinérgicos na atratividade de investimentos, inclusive estrangeiros, o que por si só já contribuiria de maneira determinante para a inserção do Brasil em mercados globais cada vez mais competitivos.

Na esteira da inovação como elemento indutor de primordial importância para o desenvolvimento social e econômico do país, exsurge a figura do instrumento contratual da encomenda tecnológica (ETECs). Trata-se da solução legal, regida pela Lei n° 10. 973/04, mais conhecida como Lei de Inovação, com as alterações trazidas pela Lei n° 13.243/16 e as disposições regulamentares previstas no Decreto n° 9.283/18, proporcionando à Administração Pública a capacidade de contratar objetos dotados de complexidade tecnológica e que não estão disponíveis no mercado.

Esse tipo contratual, ainda pouco utilizado, encontra-se previsto no comando normativo inserto no art. 19, § 2º, inc. V e regulamentado pelo art. 20 da supracitada legislação, figurando como um dos principais instrumentos de estímulo à inovação nas empresas e, por isso mesmo, apto a assumir papel de centralidade no universo da inovação e de suas relações com o poder público demandante.

Na particularidade das encomendas tecnológicas, trata-se de modelagem contratual específica para o uso do poder de compra do Estado pelo lado da demanda, que visam ao fomento econômico, por via de incentivos ao mercado, da manutenção e da ampliação das capacidades técnico-científicas instaladas no país. Visto de outra forma, é a aplicação do uso do poder de compra do Estado como instrumento de estímulo às políticas públicas de inovação, na resolução de demandas sociais específicas, dotadas de risco tecnológico e sem solução existente no mercado.

Nesse sentido, o contratante será sempre o Estado brasileiro, seja por intermédio de órgãos da Administração Pública Direta, seja por meio das suas pessoas jurídicas descentralizadas em entidades integrantes da Administração Pública Indireta (autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas).

Os contratados poderão ser Instituições Científica, Tecnológica e de Inovação (ICT), entidades de direito privado sem fins lucrativos, vocacionadas em seus objetos sociais e estatutários às atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), ou empresas, isoladas ou em consórcio, desde que voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor. Podem ser, deste modo, instituições públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos. O importante, nesse caso, reside no aspecto finalístico da contratação, ou seja, o estímulo econômico para que os potenciais fornecedores desenvolvam atividades de pesquisa e tecnologias em elevado padrão de satisfação da demanda pública.

Assim, o objeto maior da encomenda tecnológica, enquanto instrumento jurídico-contratual, é exatamente o oposto daqueles almejados pelos contratos de bens e serviços de prateleira, ou seja, aqueles bens e serviços estandardizados ou comumente encontrados no mercado e que, via de regra, possuem o processo produtivo dominado por vários agentes econômicos.

A encomenda tecnológica configura contrato administrativo típico, cujo objeto, em tese, ainda não se encontra disponível no mercado. É algo que ainda precisa ser desenvolvido e, consequentemente, enseja objeto específico que visa a atender finalidades públicas especiais. Portanto, quem define o objeto da encomenda tecnológica é o poder público contratante, a partir das necessidades que se apresentem estratégicas para o desenvolvimento econômico e social do país.

Não obstante, em alguns modelos de contratação o objeto nem sempre é inteiramente definido na fase preparatória da contratação (vide os procedimentos de manifestação de interesse (PMI), a contratação integrada e, mesmo agora, a nova modalidade de diálogo competitivo), fato é que não há dúvida que o mercado entregará aquele resultado desejado. Não se põe em dúvida que o fim será atendido.

Na encomenda tecnológica, por sua vez, sucede fenômeno distinto. Pretende-se contratar instituição, pública ou privada, para desenvolver bens, serviços ou mesmo processos inovadores que não estejam disponíveis no mercado e que, portanto, não se tem a certeza de que haverá a entrega do produto, uma vez que a finalidade contratual está direcionada ao esforço técnico desprendido pelo contratado, durante o processo de inovação.

O que se promove é uma abertura dialógica com o mercado ou mesmo com os eventuais contratados, a fim de acolher à conformação operacional e técnica do objeto contratual e mitigar as assimetrias informacionais existentes, visando melhor atender a finalidade pública. Afinal, nem sempre os entes públicos são dotados de capacidade institucional satisfatória para modelarem objetos complexos e tecnologicamente sofisticados.

Desse modo, a configuração jurídica da encomenda tecnológica perpassa os principais aspectos da contratualização da atividade de pesquisa e desenvolvimento, com opção ou não de compra do produto (bem ou serviço) concebido por projeto ou processo inovador. Tal opção de compra do resultado da encomenda também variará casuisticamente e funcionará como uma hipótese negocial que estimule parceiros privados a se habilitarem no processo, particularmente quando a exploração de direitos de propriedade intelectual é acrescida a esta função.

A transferência de tecnologia com seus diversos modelos negociais também tende a estimular mais agentes privados capacitados a participar do processo de encomenda, ampliando as probabilidades de sucesso e, em última instância, expandir as relações econômicas e contratuais que consolidam a livre concorrência.

O instrumento contratual em questão figura, portanto, como nítida incorporação de lógica adaptada do direito estrangeiro, particularmente do direito norte-americano e dos modelos contratuais de contratação de tecnologia e soluções tecnológicas da União Europeia, à legislação brasileira. Trata-se de estrutura normativa inspirada na parte 35 do Federal Acquisition Regulation (FAR) norte-americano, além do artigo 31 da Diretiva 2014/24/EU e no Comunicado COM (2007) 799, parte final.

Ainda nesse aspecto da orientação pela demanda, o risco tecnológico assume o papel de elemento central deste tipo contratual. Sua característica principal repousa na lógica da compensação do risco tecnológico pela via contratual, tal como ocorre na contratação produtos desenvolvidos no atendimento aos interesses do setor de defesa nacional e em demandas tecnológicas específicas para a área de saúde.

Neste sentido, portanto, as cinco principais características jurídico-contratuais, trazidas da teoria geral dos contatos para a seara das encomendas tecnológicas, podem ser assim sumarizadas: (i) contrato que tem por objeto a pesquisa e ou/desenvolvimento; (ii) contrato aleatório; (iii) contrato complexo; (iv) contrato que pressupõe partição especial de risco, designadamente o risco tecnológico; (v) contrato dotado de intensa carga de interesse público e viabilizador de políticas públicas.

Primeiramente, a encomenda tecnológica tem objeto pesquisa e desenvolvimento de novas soluções ainda não disponíveis no mercado. Tal flexibilidade jurídica contida nessa espécie contratual visa, tão somente, ao atendimento das necessidades públicas demandantes por trilhas tecnológicas alternativas, observados os parâmetros e requisitos estabelecidos pelo poder contratante.

A encomenda pode ser caracterizada como um contrato aleatório na medida em que sua onerosidade é diretamente impactada pela incerteza implícita na atividade de P&D. Portanto, a aleatoriedade contratual está configurada justamente na permissão legal ao poder público contratante em assumir parte considerável do risco, notadamente o tecnológico, devido à sujeição previamente negociada entre as partes, condicionando o evento incerto (cláusula de obrigação aleatória) à excelência no comprometimento no esforço técnico desprendido.

Isto porque, se a atividade contratada invoca, assumidamente, o risco tecnológico, não se pode condicionar o pagamento em função dos resultados alcançados, visto que é exatamente sobre estes que incide a álea de risco. Portanto, a melhor intelecção da norma legal é a avocação de considerável parte dessa álea para a entidade pública contratante, justamente para incentivar a participação de amplo espectro de ICT e empresas de base tecnológica e, ao mesmo tempo, não inviabilizar a continuidade da atividade empresarial das instituições e entidades contratadas.

Institui-se, desse modo, correlação estreita entre compromisso pelo esforço técnico e a eficiência do resultado tecnológico efetivamente alcançado. Trata-se, assim, da característica de contrato aleatório pela internalização prévia do risco na composição da equação econômica e financeira da encomenda.

A seu turno, a encomenda também figura como contrato complexo porquanto prevê a possibilidade de uma rede contratual com tantos fornecedores, quantos forem capazes de apresentar expertise técnica compatível com a consecução do objeto encomendado.

Na medida em que estes fornecedores deixarem de avançar gradativamente no esforço técnico efetivo, seja por se alcançar o limite do capital humano disponível, seja por insuficiência de infraestrutura tecnológica, tal conjunto de contratos se afunila, permitindo que a encomenda persista apenas para as soluções tecnológicas que apresentem determinado grau de maturidade e prontidão, a serem absorvíveis pelo mercado (modelo “funil”).

Em outra perspectiva tal modalidade contratual se apresenta também como um contrato que tem, conforme já mencionado, no risco tecnológico seu elemento central. Na esteira da política de obtenção de soluções tecnológicas pelo lado da demanda, o incentivo a um setor privado dinâmico exige que o Estado contratante realize o tratamento oportuno do risco mais decisivo para o sucesso da encomenda, justamente por representar o fator essencial a ser considerado no desenvolvimento e na aquisição de novas tecnologias.

Este risco contém a incerteza intrínseca em toda a atividade de P&D, de que esta pode não alcançar os resultados esperados. Por essa razão, a implantação de metodologias de avaliação e o gerenciamento de risco, nomeadamente aos projetos lastreados em contratos públicos, implicam na redução de custos excessivos e mitigação do desperdício de recursos públicos.

Claro que essa incerteza não autoriza aventuras administrativas, ou seja, pretensas encomendas tecnológicas de objetos que não estão, no atual estado da arte, disponíveis na órbita do conhecimento humano. Devem ser demandas estatais estratégicas, mas que possuam tecnologia disponível para se confiar na possibilidade do desenvolvimento do produto (bem ou serviço).

O pagamento ao contratado mescla uma remuneração certa e determinada (proporcional aos trabalhos executados e conforme o cronograma físico-financeiro aprovado) e uma espécie de remuneração por perfomance (com previsão de pagamentos adicionais associadas ao alcance de metas de desempenho no projeto), a teor do disposto no § 3° do art. 20 da Lei n° 10.973/04.

A combinação entre distintos métodos de remuneração é bastante importante, já que o contratado não poderia desenvolver objeto tecnicamente complexo sem um fluxo de caixa de recursos mínimo e um cronograma físico-financeiro apto a conferir previsibilidade para a aquisição de bens, serviços e contratação de profissionais que se desvelem como indispensáveis para a execução do objeto da encomenda tecnológica. De outro lado, a remuneração por desempenho cria os necessários incentivos econômicos para que o contratado procure ser o mais eficiente possível e alcance os resultados almejados.

Em tal aspecto, o que se propõe é uma convergência estratégica e institucional da política pública vigente, efetivada por intermédio dos procedimentos jurídico-contratuais, da mudança da cultura organizacional de tolerância ao risco, bem como avaliação ampla e de gerenciamento rigoroso dos riscos envolvidos, objetivando a melhor consecução possível do objeto da P&D.

Note-se que o tema versa sobre particularidade das encomendas que visam à obtenção de capacidades tecnológicas específicas ou desenvolvimento de novas tecnologias. É neste ponto que a contratação de projetos que vislumbram inovação tecnológica exige decisões sobre a viabilidade da aquisição, aferindo o grau de maturidade da tecnologia considerada e nível do risco assumido.

Isso porque, tais objetos encomendados envolvem diferentes configurações metodológicas no planejamento de metas e aferição resultados, pois, em regra, congregam diferentes áreas da ciência e integram pesquisas aplicadas de diversos matizes. Portanto, a correta identificação dos riscos tecnológicos, apontado como a principal causa de atrasos nos cronogramas e aumento de custos (blow-out costs), colabora, sobremaneira, com a efetividade e assertividade das práticas contratuais na gestão dos projetos dessa natureza, seja por guardar a racionalidade econômica do objeto, seja para se adequar ao limite orçamentário imposto.

A encomenda tecnológica é, por essência, um contrato com intensa carga de interesse público em função dos fatores globalizantes da economia moderna, cada vez mais digitalizada e baseada em soluções técnico-científicas, ao reclamarem intensa circulação de bens, serviços e informações, reordenaram a noção moderna de interesse público e exigem a ampliação do papel indutor do Estado no fomento a políticas de inovação pelo lado da demanda, face aos preceitos de evolução tecnológica permanente.

(*) Artigo adaptado do Capítulo 3: Aspectos jurídicos do contrato de encomenda tecnológica. p. 60 – 82. In: HIGA, Alberto Shinji; OLIVEIRA FILHO, Gilberto Bernardino de; MARCO, Nathalia Leone. A Boa gestão pública e novo direito administrativo: dos conflitos às melhores soluções práticas. 1. ed. São Paulo: SGP – Soluções em Gestão Pública, 2021, escrito em co-autoria com Dr. Flávio Amaral Garcia.

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