As contratações públicas sustentáveis: desafios à efetividade
Por André Luís Vieira Membro do IASC, advogado e doutorando em direito público pela Universidade de Coimbra, Portugal.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, é cristalina ao estabelecer que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao poder público e à sociedade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Essa imposição estabelecida pelo constituinte originário ao poder público, em particular, é chamada de função ambiental pública.
Trata-se de dever constitucional imposto ao Estado brasileiro, nesse sentido concebido como o conjunto dos três níveis de estatalidade – União, Estados e Municípios –, para que este, ao cumprir tal função ambiental, o realize mediante mecanismos legais aptos a torná-lo o principal agente indutor da sustentabilidade socioambiental e da qualidade de vida da população.
Dentre os inúmeros instrumentos jurídico-administrativos postos à disposição da função ambiental pública, para emprestar-lhe efetividade, está a lógica do uso do poder de compra do estado, enquanto medida indutora de comportamentos ambientalmente amigáveis.
Nesse contexto, as contratações públicas sustentáveis exsurgem como instrumento apto a influenciar diretamente o mercado fornecedor de soluções para a Administração Pública, na adoção e ampliação da oferta de bens e serviços dotados de critérios socioambientais.
Assim, as contratações públicas sustentáveis no cenário brasileiro são primordiais para o cumprimento da função pública ambiental estabelecida no seio da Constituição, cujas perspectivas residem na efetivação de uma espécie de estado democrático socioambiental, onde a qualidade de vida das presentes e futuras gerações devem ser, não apenas formalmente, mas materialmente concretizada.
Entretanto, em meu modesto sentir, o estado brasileiro não tem assumido adequadamente o seu papel como agente indutor do comportamento socioambiental, muito por conta do burocratismo irracional, agravado pela competência constitucional concorrente em matéria ambiental entre União, Estados, DF e Municípios. O que se percebe, portanto, é que apesar de ótimas iniciativas isoladas existentes, a falta de vontade institucional e de priorização do tema guardam em si fundamentos próprios de sua obstaculização.
Deveríamos nos valer, por exemplo, das medidas de boas práticas adotadas pela União Europeia que, em seu papel de entidade supranacional, estabelece vários conjuntos de critérios socioambientais a serem sugeridos como requisitos, ou mesmo, mecanismos de suporte às aquisições públicas, conferindo maior grau de segurança jurídica e efetividade aos processos licitatórios.
Notadamente no caso brasileiro, a relevância e a atualidade desta questão esbarram na urgência de amplo debate sobre o papel indutor do Estado, enquanto prestador de serviço público, discutindo-se, sobretudo, sua eficiência prestacional.
É, justamente sobre este viés prestacional, que a discussão avulta de importância, na medida em que o Estado, personificado na figura de seus formuladores de políticas públicas e em sua atribuição para edição de normas regulamentares infralegais, tem papel fundamental como elemento indutor de comportamentos socioeconômicos desejáveis na promoção de metodologias de consumo de produtos (bens e serviços) que sejam reconhecidas como éticas e sustentáveis.
Sem a assunção desse papel regulamentar, baseado, dentre outras medidas, na adoção de normas que estabeleçam, objetivamente, critérios e requisitos de sustentabilidade, o gestor público, a quem caberá a execução da política de contratações sustentáveis, não terá a segurança jurídica suficiente ao exercício de sua atuação desejada.
Portanto, o papel do Estado como agente indutor do comportamento socioambiental constitucionalmente desejável, passa muito além do conjunto de normas de comando e controle, ingressando mesmo no campo da análise econômica do direito, no sentido de se editarem normas que estimulem determinados comportamentos (Teoria dos Incentivos), transcendendo o caráter punitivista tradicional.
É preciso, pois, conscientizar a sociedade, estimulando comportamentos que tragam sustentabilidade e qualidade de vida, sem que isso seja necessariamente um ônus econômico-financeiro para quem desejar adotar posturas sustentáveis, como atualmente o é.
Isso posto, aflora a indagação sobre que ferramentas os gestores públicos possuem para garantir a adequação da contratação pública como mecanismo jurídico verdadeiramente sustentável? Em resposta, pode-se afirmar que existem diversas normas infralegais que já preveem a possibilidade da contratação de bens e serviços dessa natureza, no entanto o gestor público precisa de segurança jurídica necessária para se conduzir no processo de contratação pública, que por si só, já é sabidamente burocrático e extremamente formalista.
Nesse sentido, o gestor precisa dessa sensação de segurança, precisa saber-se salvaguardado ante aos órgãos de controle, na condução do interesse público do desenvolvimento nacional sustentável.
Para isso, urge a transformação da lógica do controle meramente procedimental, focado na literalidade estrita da norma, para a lógica do controle finalístico, particularmente quando se tratar da contratação de bens e serviços dotados de critérios ambientais. Por óbvio, não se defende aqui qualquer leniência com a flagrante ilegalidade, mas a sensibilização dos agentes e órgãos de controle para evitar as responsabilizações desarrazoadas e de cunho meramente punitivista.
No ponto, em face da nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), a discussão recorrente a respeito da inserção do termo “desenvolvimento nacional sustentável” como princípio ou diretriz, carece imensamente de efetividade, apesar de estar diante de temática muito interessante do ponto de vista teórico e doutrinário. Tal discussão se apresenta dicotomizada entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico, como se fossem percepções contrapostas e irreconciliáveis. O fato é sabidamente polêmico, porém precisa ser enfrentado e melhor trabalhado em termos de efetividade de políticas públicas socioambientais.
De nada vale toda a construção hermenêutica sobre o alcance e o sentido de normas, princípios e valores que compõem a temática das contratações públicas sustentáveis, se o objetivo final não for o de traçar um caminho seguro para a sua efetividade.
Neste aspecto, a palavra-chave é efetividade. Efetividade para proteger a qualidade de vida da população. Efetividade para proteger e explorar com racionalidade nossos riquíssimos bens e recursos naturais. Efetividade para permitir o desenvolvimento econômico de forma sustentável. Efetividade para não transformar o princípio do desenvolvimento nacional sustentável em mera alegoria normativa. Efetividade para permitir o desenvolvimento econômico não seja simplesmente um ideário obstaculizado.
Resta claro, portanto, que precisamos urgentemente racionalizar procedimentos normativos e administrativos, mediante o realinhamento da política ambiental com a política desenvolvimento econômico, visando melhorar a transparência administrativa, diminuir o caos burocrático na emissão de licenças e alvarás e incentivar os aspectos finalísticos da fiscalização e da proteção ao meio ambiente.