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O duplo grau de jurisdição e o cabimento de embargos infringentes e de nulidade em ação penal originária julgada por Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal

Por Wilson Knoner Campos*Membro do Instituto dos Advogados de Santa Catarina-IASC

 

Resumo: Duplo grau de jurisdição. Embargos infringentes e de nulidade. Foro por prerrogativa de função. Ação penal originária. Órgão Especial. Tribunal de Justiça. Tribunal Regional Federal.

Article: Double degree of jurisdiction and motion for review of non-unanimous judgment of Court of Justice before Upper Trial Chamber of State and Federal Court of Justice

 Abstract: Double degree of jurisdiction. Motion for review of non-unanimous judgment of Court of Justice. Privileged jurisdiction. Upper Trial Chamber. State and Federal Court of Justice.     

Índice:

  1. Introdução. 2. O duplo grau de jurisdição: direito fundamental de caráter judicial e garantia constitucional do processo. 3. A experiência internacional nos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos no tema do duplo grau de jurisdição e o papel do controle de convencionalidade para compatibilizar as jurisdições nacional e internacional. 4. A experiência brasileira: o multicitado RHC 79.785, j. em 29/03/2000 (Pertence), seus contornos e inaplicabilidade em tema de embargos infringentes e os precedentes do STF a partir da AP 470. 5. O cabimento de embargos infringentes em decisão não unânime desfavorável ao réu em ação penal originária julgada por Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal: a natureza absolutória em sentido próprio e o número mínimo de votos vencidos não são pressupostos. 7. A relevância dos embargos infringentes para o réu após o overrulling que possibilitou a execução penal antecipada. 8. Conclusão.

1 – Introdução

Nunca esteve tão em evidência na pauta do Congresso Nacional e do Poder Judiciário a agenda do combate à corrupção e consequentemente discussões acerca da reconfiguração de direitos de investigados, de réus presos e condenados. São temas que dividem opiniões dentro e fora dos tribunais e não raro os acirrados debates desaguam em uma “polifonia” argumentativa em que nenhum dos lados se propõe a ouvir a divergência de modo desarmado, inviabilizando qualquer consenso.

Dentre tais temas, está o do cabimento de embargos infringentes e de nulidade ante decisão não unânime desfavorável ao réu imposta em ação penal originária julgada pela cúpula dos Tribunais, isto é, pelo Plenário do STF e pelo Órgão Especial de Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal.

E diante de eloquentes vozes e gritos bramando “eis aqui a melhor solução” e em face da popularidade que algumas saídas sugerem [geralmente contra “homine”], o momento é mesmo de dar ouvidos à “voz” da Constituição Federal e ouvir o que ela soberanamente tem a dizer sobre tais temas [se é que ela diz algo…], a fim de fazer cumprir seus preceitos e maximizá-los, independentemente de a solução constitucional coincidir ou não com o que o ecoa da “voz as ruas”.

E o presente artigo tematiza exatamente a necessidade de uma urgente releitura do art. 609, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal à luz da Constituição Federal, a fim de se aquilatar a (in)existência de direito aos embargos infringentes e de nulidade, ou seja, a um recurso ordinário, que possa analisar questões fáticas, probatórias e jurídicas nas quais se baseia uma sentença/acórdão não unânime desfavorável ao réu, tomada em ação penal originária de competência de Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.

2 – O duplo grau de jurisdição: direito fundamental de caráter

judicial e garantia constitucional do processo

 Os manuais de processo penal brasileiro são convergentes em reconhecer dentre os princípios e garantias processuais o do duplo grau de jurisdição. Embora se diga não haver previsão constitucional expressa [como ocorreu, por exemplo, com a de 1824, no seu art. 158], o mesmo é visualizado como consequência lógica do princípio da ampla defesa e como decorrência da própria estrutura organizacional do Poder Judiciário e em especial pela própria dinâmica recursal[1].

O duplo grau de jurisdição tem por fundamento proteger a presunção de inocência, a qual não pode ser afastada com uma única sentença condenatória prolatada por órgão jurisdicional singular. Daí falar-se em necessidade de dupla conformidade em matéria penal, que impõe uma revisão mais ampla possível ou uma segunda análise da condenação imposta sobre a pessoa, em razão da gravidade e dos efeitos decorrentes da pena em si [privação da liberdade, suspensão dos direitos políticos, perda de bens, etc], de sorte a se poder afirmar ser o duplo grau de jurisdição uma faculdade [a final de contas, o recurso é voluntário] do condenado e que é “conditio sine qua non” para aplicação da pena.

Tanto é assim que, mesmo nos casos em que o réu renuncia ao direito de apelação, a abdicação fica condicionada à chancela do Advogado do réu[2]. Se o Advogado diverge do réu e interpõe o recurso, o reclamo deve ser conhecido e devidamente processado, a evidenciar a relevância que o ordenamento jurídico brasileiro confere ao direito ao recurso e à presunção de inocência.

De outro lado, a natureza facultativa do exercício do duplo grau de jurisdição não lhe suprime o status de direito fundamental e tampouco suplanta sua natureza de “conditio sine qua non” para aplicação da pena. É característica dos direitos fundamentais a imprescritibilidade, ou seja, não será removido do rol de garantias constitucionais do processo pelo seu não exercício. Importa é ser assegurada a faculdade de, em querendo, poder recorrer da condenação. O exercício do direito ao duplo grau de jurisdição é decisão da Defesa [do réu e do Advogado Defensor].

Além disso, a doutrina arrola ainda o fundamento político do duplo grau de jurisdição, revelado na imprescindibilidade de controle dos atos estatais, dentre os quais estão as decisões judiciais[3], o que não poderia ser diferente, sobretudo ante a falibilidade humana, inclusive do julgador.

A nosso viso, o fundamento normativo do duplo grau de jurisdição é mesmo constitucional, uma vez que o art. 5º, LV, da Constituição Federal positiva entre nós a garantia do “contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Parte da doutrina entende que a expressão “recursos a ela inerentes” associado ao direito à ampla defesa delineia o duplo grau de jurisdição ou o “duplo exame” independentemente do grau de jurisdição que profere condenação.

Não bastasse isso, Constituição Federal do Brasil claramente optou por uma dinamicidade protetiva e progressiva no tocante a direitos fundamentais, entendendo que não podem ser suprimidos [são cláusula pétrea – art. 60, §4º, IV, CF], mas podem ser ampliados. A primeira forma de ampliação de direitos fundamentais é a via da Emenda Constitucional, como ocorreu com inserção do direito fundamental à razoável duração do processo [art. 5º, LXXVIII, CF, fruto da EC 45 /04]. A segunda forma de ampliação de direitos fundamentais é a via da internalização de preceitos de direitos humanos dispersos em outros textos de direito internacional e que são incorporados à ordem jurídica brasileira na qualidade de direitos fundamentais. Neste último caso, a inclusão como direito fundamental pode se dar com status de Emenda Constitucional, se respeitada a regra do art. 5º, §3º, da CF, ou com statussupralegal”, se apesar de inobservado o quórum para aprovação de emenda, a norma internacional pactuada entre Estados soberanos e internalizada no Brasil veicular direitos humanos.

É possível distinguir, portanto, o direito fundamental como constitucional [positivado diretamente na Carta Magna ou internalizado com quórum de emenda constitucional se emanar de tratado internacional e veicular direitos humanos] e o direito fundamental “supralegal”, agregado ao nosso ordenamento pela cláusula de abertura do art. 5º, §2º, da CF.

Independentemente das duas formas de ampliação dos direitos fundamentais acima listadas, os efeitos que geram na ordem jurídica – arrisca-se dizer – são praticamente os mesmos, e a diferenciação é meramente retórica e sem pragmatismo.

Basta lembrar que o art. 5º, LXVII, da CF, vedou a prisão civil por dívida, excepcionando os casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel. Contudo, a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH [Pacto de São José da Costa Rica] igualmente vedou a prisão civil por dívida, mas apenas excepcionou unicamente o caso de devedor renitente de alimentos [art. 7º, 7]. Pelo texto da Constituição Federal é possível a prisão do depositário infiel, mas pelo teor do Pacto de São José da Costa Rica, não.

Tal antinomia foi resolvida pelo STF no sentido de que apesar de a inserção do Pacto de São José da Costa Rica em nosso ordenamento jurídico não ter observado o quórum de emenda constitucional, ele veiculou direitos humanos, os quais, nos termos do art. 5º, §2º, da CF, ingressaram na ordem jurídica com status supralegal. E sem anular ou revogar o texto do art. 5º, LXVII, da CF, atribuiu-se à aludida norma internacional de direitos humanos uma eficácia “paralisante” à legislação infraconstitucional que positivava e dava concretude a prisão civil do depositário infiel[4].

Ou seja, apesar de a Carta Magna autorizar, a CADH proíbe a prisão do depositário infiel. Sem ter sido inserida na ordem jurídica brasileira por emenda constitucional, veja-se que o citado tratado obsta que a própria Constituição Federal irradie efeitos neste tocante, vez que “diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.[5]

Não há justificativa razoável para que se dê tratamento jurídico diverso no caso do duplo grau de jurisdição, igualmente previsto naquele mesmo Pacto de São José da Costa Rica [CADH], art. 8.2.“h”, que assim dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: […] “h”. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

Daí que, apesar de doutrinadores de escol como Gilmar Ferreira Mendes[6] sustentarem não ser o duplo grau de jurisdição um direito na ordem jurídica brasileira, a não ser naqueles casos em que a Constituição Federal expressamente assegura ou garante esse direito, como nas hipóteses em que faculta a possibilidade de recurso ordinário ou apelação para instância imediatamente superior [arts. 98, I, 102, II, b; 108, II], ou que institui uma estrutura hierarquizada de instâncias jurisdicionais originária e recursal [arts. 118, 122, 125], parece-nos que o fundamento da tese não mais se sustenta.

É que, assim como para a grande maioria dos doutrinadores e jurisprudência que nega ao duplo grau de jurisdição a qualidade de um direito fundamental, o citado jurista e Ministro do STF Gilmar Mendes baseia-se no multicitado precedente do STF no RHC 79785/RJ, j. em 29/03/2000, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, no que entendeu que a normatização da jurisdição, sobretudo em tema recursal, seria tema próprio de constituição doméstica e impassível de regulamentação por preceito internacional, de modo que o art. 8.2.“h” do Pacto de São José da Costa Rica não teria incidência superior ao teor da Constituição na ordem jurídica brasileira.

A partir do citado julgado seguiram-se outras manifestações do STF e Tribunais do país no mesmo sentido, sem que houvesse muito aprofundamento do tema, e o precedente do STF no RHC 79785/RJ passou a ser aplicado de forma automática.

Contudo, o próprio precedente referido destaca que a decisão que se tomava na ocasião estava sujeita à cláusula do rebus sic stantibus, pois consignou que se estava decidindo na perspectiva “de um estágio ainda primitivo de centralização e efetividade da ordem jurídica internacional”. Ou seja, no momento daquela decisão não se tinha a dimensão da importância que os direitos humanos veiculados em tratados internacionais assumiriam no país. Assim, foi num contexto diverso da realidade atual, na qual já não há mais dúvida da centralidade que os preceitos internacionais de direitos humanos ocupam no ordenamento jurídico pátrio.

Prova eloquente da mudança de entendimento do STF, a atestar a centralidade que normas internacionais de direitos humanos ocupam no ordenamento jurídico pátrio ante a sua supralegalidade, foi a edição da Súmula Vinculante n. 25, fruto da tese definida no RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60. No citado RE o Supremo Tribunal Federal assentou que a internalização dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos “tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante”. Enfatizou-se que “diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada (…), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria” [RE 466.343, voto do min. Gilmar Mendes, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009].

Ademais, o precedente do STF no RHC 79785/RJ, Pertence, foi anterior a PEC 45/2004, que incluiu o parágrafo 3º ao art. 5º da CF. A partir de tal mudança do texto constitucional houve também o acolhimento pelo STF de uma nova interpretação sobre a posição dos direitos humanos veiculados em pactos internacionais de que signatário o Brasil e inseridos em nosso ordenamento pela via da supralegalidade do art. 5º, §2º, da CF. Tal evolução hermenêutica esvaziou a premissa do antigo julgado no RHC 79.785/RJ.

Logo, é legítimo concluir que se a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH [Pacto de São José da Costa Rica] foi internalizada no Brasil com status supralegal, nem mesmo uma norma da Constituição Federal que eventualmente vedasse o duplo grau de jurisdição poderia surtir efeitos práticos contra tal direito convencional, dada a eficácia paralisante que o art. 8.2.“h” do Pacto de São José da Costa Rica possui, justamente a ideia constitucional que norteou a edição da SV n. 25 do STF, fruto da tese definida no RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009.

Se tem status supralegal, o direito ao duplo grau de jurisdição orbita entre a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais. Está acima das leis, mas abaixo da Constituição, o que tem ao menos a eficácia paralisante de atividade legiferante contrária à norma internacional de direitos humanos, mesmo quando a própria Constituição Federal divergir da norma internacional veiculadora de direitos humanos internalizada pela via da “supralegalidade” do art. 5º, §2º, da Carta Magna.

Portanto, se a CADH pode mitigar a efetividade do próprio texto constitucional sem revoga-lo, pode igualmente paralisar as interpretações até hoje existentes e que assentam não ser o duplo grau de jurisdição um direito fundamental, hermenêutica esta que não se coaduna com o teor art. 8.2.“h” do Pacto de São José da Costa Rica, que veicula ser sim um direito humano aquele “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”.

Em conclusão preliminar, a teor da “supralegalidade” que o art. 5º, §2º, da Carta Magna conferiu à Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH [Pacto de São José da Costa Rica], bem como ante ao efeito paralisante das normas infraconstitucionais colidentes com os direitos humanos veiculados no citado tratado [reconhecido pelo próprio STF no RE 466343], afigura-se inconstitucional e inconvencional negar a qualidade de direito fundamental ao duplo grau de jurisdição positivado no art. 8.2.“h” da CADH, o qual se materializa como autêntico direito fundamental de caráter judicial e de garantia constitucional do processo.

3 – A experiência internacional nos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos no tema do duplo grau de jurisdição e o papel do controle de convencionalidade para compatibilizar as jurisdições nacional e internacional

No âmbito da Jurisdição Internacional dos Direitos Humanos, sobretudo no que tange ao sistema interamericano, a experiência tem sido rica e contundente em posicionar o duplo grau de jurisdição como um típico direito da pessoa acusada, sem que haja flexibilização da garantia do duplo grau de jurisdição mesmo nas hipóteses de foro por prerrogativa de função, divergindo, portanto, de parte da doutrina brasileira.

Nesse ponto, não se pode passar ao largo do que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) decidiu na Sentença de 23/11/2012, no caso Mohamed vs Argentina, quando assentou que “para a CorteIDH, o direito ao recurso a que se refere a CADH (art. 8.2.h) deve ser um recurso ordinário, que possa analisar questões fática, probatórias e jurídicas nas quais se baseia a sentença impugnada […][7]. [grifamos]

E no caso citado, Mohamed havia sido absolvido em primeiro grau, e com o recurso da acusação, o tribunal local reformou a decisão e o condenou. Seguiu-se a inadmissão do recurso extraordinário, por veicular matérias de fato e prova estranhos à competência da Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina [“regramento” equivalente aos plasmados nas súmulas 07/STJ e 279 e 280/STF]. O ponto nodal, portanto, foi uma condenação inaugural em segundo grau de jurisdição, sem a possibilidade de recurso amplo em prol da defesa. Diante disso, a CorteIDH condenou a Argentina a, dentre outras obrigações, adotar medidas internas para assegurar ao sr. Mohamed o direito a um recurso irrestrito, no qual pudesse veicular matérias de fato e de prova, além de haver determinação de suspensão dos efeitos da condenação até efetivação de tal direito.

Na ocasião, a CorteIDH reafirmou o que já havia decidido em 02/07/2004 no caso “Herrera Ulloa vc. Costa Rica”, oportunidade na qual considerou insuficiente a previsão de mero recurso de cassação para fazer valer a garantia convencional do duplo grau de jurisdição. Em resumo, na primeira instância, o Sr. Herrera Ulloa fora absolvido na ação penal. O recurso de cassação [apelação] da acusação fora provido pelo tribunal doméstico, e, submetido a novo julgamento em primeiro grau, sobreveio condenação do Sr. Herrerra. O recurso do Sr. Herrera Ulloa contra sua condenação foi rejeitado pelo mesmo tribunal que antes já havia cassado a sentença absolutória. Na decisão sobre o caso, a CorteIDH asseverou que o duplo grau de jurisdição deve ser isento de formalismos que obstaculizem seu exercício pleno, isto é, assentou-se que o recurso deve ensejar um exame integral da decisão recorrida, o que resta violado se a Corte ad quem restringe sua atuação ao exame das matérias definidas em legislação processual.

Em outro precedente, de 30/01/2014, ao julgar o caso Liakat Ali Alibux vs Suriname, a CorteIDH novamente reiterou sua jurisprudência, no sentido de que a condenação proferida em instância única e a impossibilidade de interposição de recurso ordinário violou o direito de Liakat ao duplo grau de jurisdição (CADH, art. 8.2.h)[8]. Na prática, ratificou-se que a Convenção é descumprida quando condenações penais são proferidas por órgãos tribunalícios e aos réus não são assegurados recursos que façam amplo escrutínio sobre os fatos e sobre as provas discutidas nos autos.

Existe, ainda, um precedente específico da CorteIDH que tratou da impossibilidade de se julgar no Pleno das mais altas Cortes dos Estados-parte os acusados da prática de um delito, exatamente por haver a subtração do recurso ordinário. O problema não é julgar diretamente pela cúpula do Tribunal. A violação à CADH está na negativa de se conceder acesso a recurso. É o precedente “Barreto Leiva vs. Venezuela”, no qual se assentou que “apesar de os Estados terem uma margem de apreciação para regular o exercício desse recurso, não podem estabelecer restrições ou requisitos que infrinjam a essência do direito de recorrer da culpa/condenação. O Estado pode estabelecer foros especiais para o processamento contra os altos funcionários públicos, e esses foros são compatíveis, em princípio, com a Convenção Americana. Sem embargo, mesmo nesses casos o Estado deve permitir que o jurisdicionado conte com a possibilidade de recorrer da culpa/condenação[9].

Além de condenação à reparação econômica, o ponto comum dos casos citados é a determinação da CorteIDH para que o Estado-parte condenado adeque sua legislação interna à obrigação convencional tida por violada. Em outras palavras, a CorteIDH ordenou a compatibilização do ordenamento jurídico interno, mediante a remoção dos óbices legislativos ou interpretativos impeditivos ao exercício do duplo grau de jurisdição nos casos de foro por prerrogativa de função.

E ao contrário do que se possa imaginar inicialmente, a ordem de compatibilização do ordenamento doméstico independe de alterações legislativas propriamente ditas, como a edição de Emenda Constitucional ou reforma da legislação processual penal, já que, como afirmam Luiz Magno Pinto Bastos Junior e Rodrigo Mioto dos Santosa implementação das garantias convencionais pode ser realizada diretamente pelo próprio Poder Judiciário, por intermédio do exercício do controle de convencionalidade[10].

O estudo do controle de convencionalidade, a partir dos casos “Almonacid Arellano y otros vs. Chile” [26/09/2006] e “Trabajadores Cesador del Congreso (Aguado Alfaro y otros) vs. Peru” [24/11/2006], revelou a existência de um dever endereçado ao Poder Judiciário interno dos Estados-parte, ou seja, imposto aos juízes nacionais, de afastar a aplicação de norma interna “inconvencional”. Tal vício é visualizado nas normas de hierarquia inferior à Convenção que tenham sido editadas em desconformidade com ela. Funciona como um mecanismo jurídico por meio do qual magistrados podem e devem invalidar normas internas destoantes do teor da convenção e da interpretação que a CorteIDH lhe dá, cabendo aos magistrados realizar o controle de convencionalidade inclusive “ex officio[11].

Assim, mostra-se inadmissível o teratológico adágio jurídico de que diante do “favor” constitucional do foro por prerrogativa de função [ser julgado por órgão colegiado, de regra, mais experiente que juiz singular], seria razoável a incidência de restrições ao duplo grau de jurisdição daquelas autoridades julgadas diretamente por órgãos superiores. Não há nenhuma razoabilidade nesse proceder.

Daí ser perfeitamente viável e necessário assentar que, à luz do controle judicial de convencionalidade, o duplo grau de jurisdição não pode ser suprimido nas ações penais de competência originária de Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.  É que as normas processuais penais sobre recurso, e, notadamente no caso do recurso de embargos infringentes e de nulidade, devem receber dos juízes/tribunais domésticos interpretação voltada a assegurar a integridade sistêmica [unidade, coerência e completude dos ordenamentos jurídicos], forte nos precedentes da CorteIDH que reconhecem a existência de violação ao art. 8.2.“h” da CADH, afastando-se normas internas do Estado-parte impeditivas do exercício do direito ao recurso amplo [apto a rediscutir matérias fáticas e probatórias], a fim de viabilizar os embargos infringentes perante os órgãos de cúpula dos Tribunais Estaduais/Regionais.

4 – A experiência brasileira: o multicitado RHC 79.785, j. em 29/03/2000 (Pertence),

seus contornos e inaplicabilidade em tema de embargos infringentes

 e os precedentes do STF a partir da AP 470

Conforme já tematizado neste artigo, a doutrina e jurisprudência brasileiras admitem algum grau de restrição à plena aplicabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição, justamente o caso do foro por prerrogativa de função, em que se admite moderada mitigação do direito ao recurso dotado de ampla revisão por órgão judicial superior.

E esta tem sido a hermenêutica proclamada pela jurisprudência pátria, sobretudo após o julgamento pelo STF do RHC 79785, j. em 29/03/2000, de relatoria do Exmo. Ministro Sepúlveda Pertence.

Entretanto, conforme alhures destacado, embora tal precedente venha sendo aplicado de modo automatizado pelo Poder Judiciário, sua incidência não pode mais ser admitida na atualidade.

Isso porque, os contornos da situação fático-processual trazidos naquela lide constitucional eram extremamente sui generis. E mais, o julgamento se deu antes da EC/45, que ao introduzir o §3º no art. 5º da CF/88, ensejou nova reflexão do STF no tocante aos efeitos do parágrafo 2º do mesmo art. 5º, reconhecendo-se desde a EC/45 a centralidade dos direitos humanos na ordem jurídica pátria, quando, repita-se, conferiu status de supralegalidade às normas da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH.

A singularidade da questão tratada no citado RHC 79785 é sem paralelo no Brasil  e muito se distancia do ponto de vista defendido no presente artigo, no sentido de que são cabíveis embargos infringentes e de nulidade contra acórdão não unânime desfavorável ao réu prolatado em sede de ação penal de competência originária de Órgão Especial de Tribunal de Justiça e de Tribunal Regional Federal.

Ora, no RHC 79.785 o STF examinava hipótese de cabimento de “recurso inominado com força de apelação” interposto por corré que havia sido condenada em ação penal de competência originária do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em cuja ação o réu principal era um Juiz de Direito. Após o Órgão Especial do TJRJ proferir acórdão condenatório, o recurso defensivo foi protocolizado no próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e a recorrente, com base na Constituição e na Convenção Americana de Direitos Humanos, almejava que o reclamo fosse processado no TJRJ e depois remetido à instância ad quem, que na visão daquela recorrente seria o Superior Tribunal de Justiça, autorizado que estaria para atuar como uma espécie de tribunal de apelação da causa.

Contudo, o Órgão Especial do TJRJ liminarmente indeferiu o “recurso inominado com força de apelação”, advindo daí a impetração de habeas corpus perante o STJ, o qual foi indeferido liminarmente e improvido o agravo regimental aviado. Adveio, então, a interposição perante o STF do Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 79.785, visando destrancar aquele recurso inominado para que o STJ o julgasse como uma apelação. Diante de tais balizas fático-processuais e no contexto de uma ação constitucional individual [sem efeito erga omnes] é que o STF, por maioria de votos [vencidos na época os Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso; ausente o Ministro Celso de Mello], assentou que o duplo grau de jurisdição não seria um direito assegurado na Constituição, ao menos naquela forma pretendida pela recorrente.

Nessa perspectiva, é absolutamente inaplicável a diretriz do RHC 79.785 à hipótese aqui defendida: a de que o duplo grau de jurisdição positivado no art. 8.2.“h” da CADH autoriza a interposição de embargos infringentes e de nulidade contra acórdão não unânime de Órgão Especial de Tribunal de Justiça e de Tribunal Regional Federal em julgamento de ação penal originária.

Não foi por outra razão que a existência do precedente do RHC 79.785/RJ não impediu fossem manejados diversos embargos infringentes por réus contra o acórdão condenatório não unânime emanado do Plenário do STF na Ação Penal n. 470 [“Mensalão”], muitos dos quais foram inclusive providos para absolver diversos réus. Após a conclusão do histórico julgamento do “mensalão”, o STF deu provimento a oito embargos infringentes para absolver oito recorrentes do crime de formação de quadrilha[12], bem como proveu outros tantos infringentes para proferir absolvição quanto ao delito de lavagem de dinheiro[13], sem olvidar, ainda, dos casos em que os embargos infringentes permitiram o restabelecimento do devido direito penal ao se reconhecer a prescrição e ao se realizar a redução de penas.

De todo modo, a admissão de embargos infringentes no STF se deu por votação majoritária [6 x 5] e pela ótica do “status” de lei ordinária do Regimento Interno do STF, de sorte que a previsão de tal recurso no art. 333, I, do RISTF não teria sofrido derrogação tácita ou indireta da superveniente edição da lei 8.038/90. Fez-se uma distinção entre os infringentes do art. 609, parágrafo único, do CPP e os previstos no art. 333, I, do RISTF, definindo-se a prevalência das regras preconizadas neste último, inclusive no tocante à exigência do mínimo de quatro votos em prol da absolvição em sentido próprio, ou seja, não basta haver divergência favorável ao réu, a dissidência deve residir quanto à decisão que “julgar procedente a ação penal” e a existência de um número mínimo de votos vencidos se qualificaria como pressuposto de admissibilidade de tal recurso [AP-EI-décimo-quarto AgR 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. em 12/02/2014].

Mais recentemente o tema foi revisitado pelo STF em dois julgamentos marcantes. Na AP409-EI-AgR-segundo/CE, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 19/08/2015, o Plenário reafirmou o critério do número mínimo de votos divergentes e enfatizou que a natureza da decisão que dá causa aos embargos infringentes previstos no art. 331, I, do RISTF é a que tem conteúdo absolutório em sentido próprio[14], ou seja, votos vencidos que reconhecem prescrição da pretensão punitiva não autorizariam o manejo dos infringentes. A votação foi unânime [9×0], estando ausentes os Ministros Cármen Lúcia e Dias Tóffoli.

Já na AP 863 EI-AgR/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 19/04/2018, o Plenário entendeu pelo cabimento de embargos infringentes opostos contra decisões em sede de ações penais de competência originária das Turmas, e, por maioria e nos termos do voto do Relator, fixou como requisito de cabimento desse recurso a existência de 2 (dois) votos minoritários absolutórios em sentido próprio. Ficaram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, e, em menor extensão, o Ministro Alexandre de Moraes. O Ministro Gilmar Mendes passou a superar o requisito da necessidade de voto divergente pela absolvição em sentido próprio.

Importante consignar que essas restrições não incidem no caso de embargos infringentes em se tratando de ação penal originária perante Tribunais de Justiça ou Regional Federal, independentemente se a competência for de Câmaras/Turmas/Seções ou de Órgão Especial/Tribunal Pleno.

Apesar de divergências sobre os pressupostos de admissibilidade de embargos infringentes nas Turmas [quantidade de votos e natureza dos votos vencidos, o que se aplica exclusivamente ao STF], o que restou unânime e fortalecido pelos julgados do Plenário do STF foi exatamente que o efeito jurídico interno/doméstico do duplo grau de jurisdição previsto no art. 8.2.“h” da CADH é o de autorizar a interposição de embargos infringentes, uma vez que tal recurso concretiza o postulado do duplo exame e confere aplicabilidade à cláusula convencional da proteção judicial efetiva.

Nas palavras do Ministro Celso de Mello “esse direito ao duplo reexame, consoante adverte a Corte Interamericana de Direitos Humanos, não deixa de incidir mesmo nas hipóteses de condenações penais em decorrência de prerrogativa de foro, decretadas, em sede originária, por Cortes Supremas de Justiça estruturadas no âmbito dos Estados integrantes do sistema interamericano que hajam formalmente reconhecido, como obrigatória, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação do Pacto de São José da Costa Rica.” [AP 863 EI-AgR/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 19/04/2018].

Portanto, seja por ter contornos processuais peculiares e inéditos, seja por ter sido proferido antes da inclusão do §3º no art. 5º da CF/88 pela EC 45/2004, e, assim, anteriormente ao reconhecimento do status de supralegalidade da CADH no direito brasileiro [vide RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009], não é legítimo e nem adequado invocar o precedente do RHC 79.785/RJ para argumentar o descabimento de embargos infringentes e de nulidade em ações penais originárias, sobretudo as de competência de Órgão Especial ou Pleno de Tribunais de Justiça/Regionais, uma vez que o duplo grau de jurisdição tem envergadura de direito humano-fundamental, com evidente eficácia paralisante de normas com ele conflitantes.

 

  1. O cabimento de embargos infringentes em decisão não unânime desfavorável ao réu em ação penal originária julgada por Órgão Especial de Tribunal de Justiça ouTribunal Regional Federal: a natureza absolutória em sentido próprio e o número mínimo de votos vencidos não são pressupostos

A ação penal originária possui ao menos duas características irrefutáveis: sempre terá no polo passivo uma autoridade cujo cargo implica na competência de Tribunal para processar e julgar a causa, e, de outro lado, é dotada de uma lentidão historicamente marcante em seu trâmite e julgamento, sobretudo por se submeter a um rito especial com delegação de competências instrutórias à juízos de diferentes patamares, e, ainda, por conta do reduzido número de vezes que em geral os órgãos de cúpula [Órgão Especial/Pleno] dos Tribunais de Justiça e Regionais se reúnem para julgamento, em comparação com as Câmaras Criminais isoladas, por exemplo. Sem olvidar, ainda, de que as decisões monocráticas do Magistrado relator são desafiadas por agravo interno, recurso que deve ser julgado pelo órgão colegiado que tem número de reuniões mais restritas.

Nesse contexto, sobretudo no caso de réus exercentes de mandatos eletivos, são ínfimos os casos em que tais processos chegam ao fim, com prolação de acórdão absolutório ou condenatório pelo Órgão Especial/Pleno dos Tribunais de Justiça e Regionais, uma vez que o tempo e o ritmo do processo não coincidem com o tempo de duração do mandato, e findo este pelo decurso temporal, eleição e posse em cargo diverso, ou nomeação para cargo de estado, ocorre a declinação da competência [salvo no caso de instrução processual já encerrada – STF, AP n. 937]. O julgamento prosseguirá em outro foro.

E quanto mais elevado o cargo, maiores as dificuldades de trâmite processual e maior a lentidão. Basta lembrar o número de sessões e o tempo que o julgamento do “Mensalão” levou até ser concluído. Tal julgamento foi épico porque foi o primeiro na história da constituição cidadã em que se iniciou e se encerrou [com absolvições e condenações] sob a competência do Tribunal Pleno do STF envolvendo tantos réus. Também foi marcante por ter introduzido na ordem jurídica brasileira, dentre outros temas, a discussão do cabimento de embargos infringentes à luz do art. 8.2.“h” da CADH, que é exatamente o ponto relevante no presente artigo.

As mesmas intempéries se repetem em ações penais originárias que tem como réu parlamentares estaduais. Via de regra as constituições estaduais cometem ao Órgão Especial dos Tribunais de Justiça a competência para processo e julgamento de tais autoridades. Então, o menor número de sessões de julgamento [geralmente, duas vezes ao mês] repercute no tempo do processo.

E como as sessões de julgamento das Turmas/Câmaras Criminais isoladas são semanais, é maior o volume de julgamento de autoridades que ali tem foro por prerrogativa de função, em geral, prefeitos municipais [art. 29, X, da CF/88]. Nesses casos, não há nenhuma dúvida quanto ao cabimento de embargos infringentes e de nulidade, pois a repetição de julgamentos não unânimes desfavoráveis ao réu consolidou seu cabimento à luz do art. 609, § único do CPP, e dos regimentos internos do Tribunais de Justiça/Regionais.

Assim, se de um lado é inequívoco o cabimento de embargos infringentes e de nulidade contra decisões não unânimes favoráveis ao réu no âmbito das Turmas/Câmaras Criminais isoladas, de outro, os raros casos iniciados e encerrados envolvendo parlamentares estaduais ou outras autoridades julgadas por Órgão Especial de Tribunais de Justiça/Regionais não permitiram o amadurecimento sobre seu cabimento no âmbito dos citados órgãos de cúpula das Cortes.

Some-se a isso a circunstância de que após a redefinição do foro por prerrogativa de função assentada pelo STF na AP n. 937, menor ainda será o número de julgamentos de autoridades que os Tribunais realizarão. Passou-se de uma competência “ratione personae” ampla e abrangente para uma limitada aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Poucos casos servirão de “laboratório” para a discussão do cabimento de embargos infringentes e de nulidade perante Órgão Especial de Tribunais de Justiça/Regionais.

Não obstante, não pode haver dúvidas de que são sim perfeitamente cabíveis os embargos infringentes e de nulidade oponíveis a julgado não unânime proferido pelo Órgão Especial de Tribunais de Justiça/Regionais em sede de ação penal originária.

A Lei n. 8.038, de 28.05.1990, a qual institui normas procedimentais para os processos que especifica, entre os quais os de competência originária do STJ e do STF, que se aplica aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais por força do art. 1º da Lei n. 8.658, de 26.05.1993, manda, em seu art. 12, que se observe, quando do julgamento dessas causas, o previsto em regimento interno, vale dizer, nos regimentos internos do STJ e do STF.

Assim, o regramento aplicável em tema de embargos infringentes criminal é o art. 333, I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, [em leitura conjugada com o art. 609, par único, do CPP], o que se dá por expressa determinação do art. 1º, da Lei 8.658/1993, que impõe a observância do art. 12 da Lei 8.038/1990, em respeito, ainda, a competência da União determinada pelo art. 22, inciso I, da Constituição Federal.

Repita-se, a Lei 8.658/1993, que “dispõe sobre a aplicação, nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, das normas da Lei n° 8.038, de 28 de maio de 1990, sobre ações penais originárias“, diz em seu art. 1º que: “as normas dos arts. 1º a 12, inclusive, da Lei no 8.038, de 28 de maio de 1990, aplicam-se às ações penais de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, e dos Tribunais Regionais Federais“.

Como se vê na Lei n. 8.038/90, mencionada expressamente no referido artigo e que tem por objeto regular procedimentos específicos para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, operou-se expressamente a incorporação dos regimentos internos desses tribunais, prevendo em seu art. 12 que: “Finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno […]”.

E por efeito dessa positivação remissiva, deu-se o processo de transformação em lei federal das normas do regimento interno do STJ e do STF[15] no caso dos processos submetidos não só a Lei n. 8.038/90, mas também nos feitos em que é aplicado o procedimento objeto da Lei n. 8.658/1993, vale dizer, ações penas originárias que tramitam perante os Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Regionais Federais.

Esse é o motivo fundamental pelo qual se aplica, além do art. 609, caput e §único, do CPP, também o regimento interno do STF, que em tema de processo penal, tem força de lei federal [competência da União]. E lá está positivado, no seu artigo 333, I, que “cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma […] que julgar procedente a ação penal”.

A propósito, nunca houve dúvida de que o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal “tem valor de lei[16], já que assim recepcionado pela nova ordem constitucional de 1988[17], do que resulta evidente que ao criar o permissivo dos embargos infringentes, o fez com efeito de norma primária.

A maioria dos regimentos internos dos tribunais pátrios não possui regulamentação exaustiva sobre os embargos infringentes e de nulidade, e utiliza-se da fórmula jurídica da “aplicação subsidiária do regimento interno do STF e STJ nos casos omissos” o que, na hipótese dos embargos infringentes, seria mesmo desnecessário, pois jamais poderiam as cortes pátrias dispor em contrário ao que está preconizado no regimento interno do STF. É que, diante da sequência legislativa adrede citada, o regimento interno do STF tem status de lei federal não só para o próprio Excelso Pretório, mas também para os demais tribunais brasileiros, cujos regimentos devem observar o contido no RISTF.

A análise de alguns regimentos internos de tribunais facilita a compreensão do tema.

No caso do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná o próprio Regimento Interno, no art. 84, III, expressamente prevê o cabimento de embargos infringentes contra os acórdãos não unânimes proferidos por seu Órgão Especial:

RITJPR: “Art. 84. Compete privativamente ao Órgão Especial, por delegação do Tribunal Pleno: III – julgar: a) os embargos infringentes interpostos aos seus acórdãos, bem como o agravo contra a decisão interlocutória que não os admitirem; [grifamos]

É um caso típico em que não paira a mínima dúvida quanto ao cabimento de embargos infringentes perante o Órgão Especial do TJRP contra decisão não unânime do próprio Órgão Especial. Tal previsão veio apenas reforçar o que já está positivado no art. 333, I, do RISTF, aplicável como lei federal aos tribunais pátrios por força do encadeamento legislativo acima exposto [aplicabilidade da Lei n. 8.038/90 e da Lei n. 8.658/1993 às ações penais originárias de Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais]. O regimento interno do TJPR poderia até mesmo ser omisso, mas nunca poderia dispor de modo contrário ao art. 333, I, do RISTF, que, repita-se, tem status de lei federal ante ao art. 12 da Lei n. 8.038/90 e art. 1º da Lei n. 8.658/1993.

De outro lado, a título de exemplo, os regimentos internos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Tribunal Regional Federal da 1ª Região e Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, não dispõem expressamente sobre embargos infringentes e de nulidade perante o Órgão Jurisdicional de cúpula [Corte Especial ou Órgão Especial]. Nesses casos, seriam inadmissíveis os infringentes?

Evidentemente que não. Primeiro, em razão de que os regimentos internos dos citados Tribunais [TRF4[18], TRF1[19] e TJSC[20]] contêm dispositivo remissivo aos regimentos do STJ e STF, sendo que o do Excelso Pretório prevê o cabimento dos embargos infringentes. Aí, pelo critério da subsidiariedade, o RISTF preenche a lacuna nos regimentos internos omissos.

E o silêncio do Regimento Interno do TRF4 , TRF1  e TJSC [e demais TJs e TRFs]  quanto a este ponto, vale dizer, em matérias de índole constitucional [duplo grau de jurisdição, observância do Pacto de São José da Costa Rica, Art. 8º, n. 2, alínea “h”, juiz natural, devido processo legal, favor rei, etc], não autoriza compreender pela exclusão dos embargos infringentes em sede de ação penal originária no âmbito do col. Órgão Especial/Corte Especial da dos citados Tribunais, porquanto são seus próprios regimentos que estabelecem que nas omissões deve ser observado o Regimento Interno do STF.

Não obstante, o cabimento de embargos infringentes e de nulidade perante Corte Especial/Órgão Especial de todos os Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça sequer dependeria de previsão em regimento interno local.

É que, conforme já enfatizado, o permissivo do cabimento dos infringentes é mesmo legal e não meramente regimental. O já citado art. 12 da Lei n. 8.038/90 e o art. 1º da Lei n. 8.658/1993 estabelecem um verdadeiro bloco normativo regente das ações penais de competência originária no âmbito do Órgão Especial/Corte Especial dos Tribunais, sobretudo porque conferem status de lei federal ao RISTF. Logo, ainda que os regimentos internos do TRF4, TRF1 e TJSC [e demais TJs e TRFs] não contivessem qualquer previsão remissiva ao RISTF, a viabilidade de manejo dos embargos infringentes e de nulidade não seria afetada, uma vez que por força da sequência legislativa da Lei n. 8.038/90 e da Lei n. 8.658/93, houve um processo de transformação em lei federal do art. 333, I, do RISTF, o qual prevê os embargos infringentes, e, portanto, como lei federal, aplica-se a todos os Tribunais pátrios.

Delineado o cabimento de embargos infringentes e de nulidade perante Órgão Especial/Corte Especial de Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal, deve-se destacar que o critério quantitativo de votos vencidos preconizado no art. 333, I, do RISTF [mínimo de 04 votos favoráveis ao réu] é pressuposto exclusivo do STF e não incide no caso dos Tribunais pátrios.

Ora, enquanto os infringentes cabíveis no STF possuem como pressuposto não só a qualidade do voto vencido [deve ser absolutório em sentido próprio] como o mínimo de 04 votos divergentes, nos embargos infringentes e de nulidade previstos no art. 609, § único, do CPP inexiste outra exigência que não a mera existência de voto divergente favorável ao réu.

Assim, no tocante aos pressupostos dos embargos infringentes e de nulidade, diante da concorrência de duas possibilidades legislativas incidentes sobre uma mesma hipótese [uma restritiva e outra ampla], a norma mais favorável à pessoa humana é que deve reger a interpretação do Poder Judiciário[21], de modo a se dar primazia àquela norma mais propícia a gerar a mais ampla proteção jurídica ao duplo grau de jurisdição positivado no art. 8.2“h” da CADH, o que, a propósito, se alinha à eficácia paralisante que a supralegalidade da CADH irradia nesse aspectoa teor do art. 29 da CADH.

O Superior Tribunal de Justiça, examinando o Habeas Corpus n. 522.797, concedeu liminar em 29/07/2019, justamente em caso que envolvia ação penal de competência originária de Órgão Especial de Tribunal de Justiça, e assentou que, nestas condições, basta que o acórdão seja majoritário e desfavorável ao réu, descabendo agregar outros pressupostos que não aqueles positivados no art. 609, § único, do CPP.

Confira-se:

“[…] Ademais, por terem sido julgados de forma não unânime, na esfera penal, admite-se, em tese, a interposição de embargos infringentes, o que impede, por ora, a expedição da ordem de prisão. Portanto, à primeira vista, como não houve o exaurimento da cognição fático-probatória, impõe-se a manutenção do réu em liberdade.

A orientação do STJ é a de que os embargos infringentes, recurso exclusivo da defesa, previsto no art. 609, parágrafo único, do CPP, não exige, para sua interposição, que o acórdão tenha reformado a sentença de mérito. No processo penal, basta que o acórdão tenha sido não unânime e seja desfavorável ao réu.

[…]

Além disso, pendente a possibilidade de interposição de embargos infringentes pela defesa na origem, não há falar em exaurimento de instância, apto a justificar o início da execução provisória da pena.”  [STJ, HC n. 522.797, Rel. Min. João Otávio de Noronha] – grifamos

Em substancioso voto apresentado em 19/04/2018 na Ação Penal n. 863/SP, o e. Ministro Gilmar Mendes ressaltou que o foro privilegiado impacta negativamente o duplo exame e que momento atual exige a maximização do princípio do duplo grau de jurisdição, razão pela qual entendeu S. Excelência mostrar-se inviável interpretar-se restritivamente o cabimento do já combalido recurso de embargos infringentes previsto no ordenamento jurídico nos casos de decisões em ações penais originárias. Veja-se:

Em questão de ordem levantada pelo Min. Roberto Barroso, seis votos concorreram no sentido de que o “foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas” – AP-QO 937, Rel. Min. Roberto Barroso, julgamento iniciado em 23.11.2017. Um dos fundamentos desses votos é a inexistência de direito ao recurso contra a condenação. Daquela feita, o Min. Roberto Barroso destacou a necessidade de “harmonizar as disposições constitucionais com os compromissos internacionais firmados pelo Brasil, BEM COMO DE REALIZAR, NA MAIOR EXTENSÃO POSSÍVEL, O PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO EM MATÉRIA PENAL” (§ 17).

Se o momento exige a maximização do princípio do duplo grau de jurisdição, não há como interpretar restritivamente o já minguado recurso previsto no ordenamento jurídico de decisões do STF em ações penais originárias. [STF, Ag.Reg. Nos Emb.Infr. na Ação Penal n. 863/SP] – (grifamos)

Por essa compreensão do tema, não há espaço para dúvida, pois o hermeneuta deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a fim de fazer prevalecer a regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano [art. 29 da CADH], que, no caso ventilado neste estudo, é o art. 333, I, do RISTF [por prever expressamente o cabimento de infringentes], conjugado com o art. 609, §único, do CPP, mas com o afastamento e paralisação [RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, DJE 104 de 5-6-2009] da exigência da satisfação dos pressupostos da natureza/qualidade e da quantidade de votos vencidos para viabilizar o manejo dos embargos infringentes e de nulidade perante Órgão Especial/Corte Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.

 

6 – A relevância dos embargos infringentes para o réu ante ao overrulling que possibilitou a execução penal antecipada [HC 126.292]

 A relevância dos embargos infringentes e de nulidade é verificada em duas perspectivas.

A primeira é que, em sendo cabíveis os embargos infringentes e de nulidade contra decisão não unânime e desfavorável ao réu proveniente do Órgão/Corte Especial de TJ/TRF, não estará exaurida a instância ordinária, de modo a ser inviável a execução antecipada da pena.

É que, conforme já destacado, a razão de ser dos embargos infringentes é possibilitar a revisão de temas probatórios e fáticos contidos no(s) voto(s) vencido(s). Logo, ao menos em tese, é possível que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, ao realizar nova reflexão agora exclusivamente jungida ao tema da divergência, proceda a reforma da decisão desfavorável e absolva, reduza pena e/ou reconheça causa extintiva da punibilidade, sem prejuízo inclusive de conceder ex officio habeas corpus caso constate alguma nulidade absoluta.

Por esta razão é que “os embargos infringentes são recurso com efeito suspensivo, e, em consequência, a execução da decisão condenatória deve ser suspensa” [STF, AP 86 EI-AgR/SP, voto do Min. Gilmar Mendes].

A segunda perspectiva em que se constata a relevância dos embargos infringentes e de nulidade, é que a adoção do critério do duplo reexame nos julgamentos penais condenatórios realizados pelo Órgão/Corte Especial dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais permitirá alcançar solução mais justa e mais refletida nos casos em que os tribunais que julgam fatos e provas, atuando originariamente como instância judiciária única, proferirem, por votação majoritária, julgamentos desfavoráveis aos réus.

Assim, ainda que reputados inconvenientes por alguns processualistas, os embargos infringentes e de nulidade possuem alto significado no processo penal democrático, porquanto oportunizam, ainda que de modo pontual e limitado ao objeto da divergência, uma nova visão sobre a controvérsia fático-jurídica[22].

Sobejam exemplos de casos a confortar a afirmação supra. Foi em sede de embargos infringentes e de nulidade que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina anulou o processo contra criminal contra “Oscar do Rosário”, que havia sido preso e condenado ilegalmente por suposto estupro e homicídio qualificado de uma criança em rumoroso caso midiático. Com o provimento dos embargos infringentes[23], seu processo foi anulado desde o nascedouro e o réu foi colocado em liberdade, sem que até hoje haja nova investigação ou nova denúncia. Não fossem os embargos infringentes, a injustiça da condenação e da pena estariam sendo ilegalmente infligidas sobre o citado réu até hoje.

No âmbito da Ação Penal 470, o col. Supremo Tribunal Federal não só admitiu como também deu provimento a expressiva quantidade de embargos infringentes opostos contra a histórica condenação prolatada pelo e. Plenário do Excelso Pretório em acórdão não unânime. Em sede de embargos infringentes na AP 470, o STF reformou a condenação ora para absolver acusados, ora para reconhecer a prescrição, e ora para abrandar regimes ou reduzir penas. Cita-se, para ilustrar, AP 470 EI-décimos quartos, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 20-08-2014 PUBLIC 21-08-2014; AP 470 EI-décimos terceiros, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 20-08-2014 PUBLIC 21-08-2014; AP 470 EI-décimos primeiro, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 20-08-2014 PUBLIC 21-08-2014; dentre outros.

De outro lado, não é verdade que os embargos infringentes em ação penal originária de Órgão/Corte Especial de Tribunal de Justiça/Regional estimulam uma contestação continuada e permanente da decisão judicial.

Ao contrário, tal recurso apenas é cabível na presença de voto(s) divergente(s) desfavorável ao réu e limitado pela abrangência do voto vencido.

Assim, só haverá rediscussão ampla se o voto vencido veicular uma absolvição. Caso contrário, se, por exemplo, a divergência limitar-se a critérios dosimétricos, eventuais embargos infringentes terão a dosagem da pena por limite, salvo a evidenciação de alguma nulidade absoluta sanável pela via do habeas corpus ex officio [art. 654, §2º, do CPP].

Logo, nos casos de ação penal originária de competência de Órgão/Corte Especial de Tribunal, antes de caracterizar afronta à segurança jurídica, o recurso de embargos infringistes e de nulidade é vocacionado ao aperfeiçoamento do acórdão condenatório, para que, ao receber o carimbo da coisa julgada ou o selo provisório para execução penal antecipada, tal seja precedido no mínimo de uma nova reflexão pela cúpula da Corte Estadual ou Tribunal Regional Federal competente, ainda que permaneça incólume a condenação.

 

7 – Conclusão

Segundo exposto nos capítulos anteriores, afigura-se inconstitucional e inconvencional negar a qualidade de direito fundamental ao duplo grau de jurisdição positivado no art. 8.2.“h” da CADH, o qual se materializa como autêntico direito fundamental de caráter judicial e de garantia constitucional do processo, já que dotado da “supralegalidade” que o art. 5º, §2º, da Carta Magna conferiu à Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH [Pacto de São José da Costa Rica], possuindo, por consequência, eficácia paralisante das normas infraconstitucionais colidentes com os direitos humanos veiculados no citado tratado [reconhecido pelo próprio STF no RE 466343].

Diante disso, o duplo grau de jurisdição não pode ser excluído nas ações penais de competência originária de Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, uma vez que as normas processuais penais sobre recurso, e, notadamente no caso do recurso de embargos infringentes e de nulidade, devem receber dos juízes/tribunais domésticos interpretação voltada a assegurar a integridade sistêmica [unidade, coerência e completude dos ordenamentos jurídicos], forte nos precedentes da CorteIDH que reconhecem a existência de violação ao art. 8.2.“h” da CADH, afastando-se normas internas do Estado-parte impeditivas do exercício do direito ao recurso amplo [apto a rediscutir matérias fáticas e probatórias], a fim de viabilizar os embargos infringentes perante os órgãos de cúpula dos Tribunais Estaduais/Regionais.

De outro lado, seja por ter contornos processuais peculiares e inéditos, seja por ter sido proferido antes da inclusão do §3º no art. 5º da CF/88 pela EC 45/2004, e, assim, anteriormente ao reconhecimento do status de supralegalidade da CADH no direito brasileiro [vide RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009], não é legítimo e nem adequado invocar o precedente do RHC 79.785/RJ para argumentar o descabimento de embargos infringentes e de nulidade em ações penais originárias, sobretudo as de competência de Órgão Especial ou Pleno de Tribunais de Justiça/Regionais, uma vez que o duplo grau de jurisdição tem envergadura de direito humano-fundamental, com evidente eficácia paralisante de normas com ele conflitantes.

Considerando que o bloco normativo regente das ações penais de competência originária no âmbito do Órgão/Corte Especial de Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais está positivado no art. 12 da Lei n. 8.038/90 e no art. 1º da Lei n. 8.658/1993, os quais instituíram um processo de transformação do art. 333, I, do RISTF em norma com status de lei federal, em interpretação conjunta com o art. 8.2“h” e art. 29 da CADH, e, ainda, com art. 609, § único, do CPP, tem-se que a previsão ali constante do cabimento embargos infringentes aplica-se a todos os Órgãos/Cortes Especiais dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, independentemente de previsão expressa no regimento interno destes, tendo por pressuposto a mera existência de um ou mais votos vencidos no acórdão condenatório, afastado, portanto, o pressuposto da qualidade do voto vencido [absolutório em sentido próprio] e da quantidade [mínimo de 04 votos vencidos], aplicáveis unicamente no âmbito do STF.

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no processo penal. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 25.

[2] Súmula n. 705/STF: “A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.”

[3] Alexis Couto de Brito, Humberto Barrionuevo Fabretti, Marco Antônio Ferreira Lima. Processo Penal Brasileiro. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 63.

[4] RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, voto do min. Gilmar Mendes, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009.

[5] Ibidem.

[6] , p. 598.

[7] Paiva, Caio; Heemann, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017, p. 493.

[8] Paiva, Caio; Heemann, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017, p. 538.

[9] Vide: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_206_esp1.pdf

[10] BASTOS JUNIOR, LUIZ MAGNO PINTO; e DOS SANTOS, RODRIGO MIOTO. “O princípio do duplo grau na jurisprudência da corte interamericana de direitos humanos e sua compatibilidade com o direito brasileiro nos casos de foro por prerrogativa de função”. Disponível em < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=94c8e4495d11846b >. Acesso em 22 de agosto de 2019.

[11] SCHEPIS, MARCELO. La influencia de los tratados internacionales en el derecho interno. El control de convencionalidad. XXV Congreso Nacional de Derecho Procesal. Buenos Aires, 11-13 nov. 2009. Disponível em: http://www.procesal2009bsas.com.ar/ponencias-constiproceso.html. Acesso em 20 de agosto de 2019.

[12] Vide: https://www.conjur.com.br/2014-fev-27/condenados-acao-penal-470-nao-formaram-quadrilha-decide-supremo

[13] Vide: https://www.conjur.com.br/2014-mar-13/supremo-absolve-joao-paulo-cunha-reu-lavagem-dinheiro

[14] AP-EI-AgRg-segundo 409, Rel. Ministro Celso de Mello.

[15] O tema da conversão do regimento interno do STF e STJ em lei federal por efeito da Lei n. 8.038/90 e da Lei n. 8.658/1993 é abordado de forma extremamente didática na Ação Penal Originária n. 0008203-21.2010.8.24.0045/50006, do TJSC, em voto que abriu a divergência capitaneada pelo Desembargador Francisco Oliveira Neto em caso envolvendo julgamento de parlamentar estadual e ex-prefeito municipal.

[16] BUZAID, Alfredo. Estudos de Direito. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 200/201, item n. 18, v. 1.

[17] RTJ 147/1010 – RTJ 151/278.

[18] RITRF4: “Art. 216. Os Regimentos Internos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça serão fontes subsidiárias deste Regimento.

[19] RITRF1: “Art. 424. Os casos omissos serão resolvidos pelo presidente, ouvida a Comissão de Regimento. Parágrafo único. Os Regimentos Internos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça serão fontes subsidiárias deste Regimento.

[20] RITJSC: “Art. 373. Aplica-se subsidiariamente a este regimento, no que couber, o disposto nos regimentos internos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça”.

[21] HC 96.772/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

[22] PONTES DE MIRANDA. “Comentários ao Código de Processo Civil”, tomo VII, p. 329/330 e 339, 1975, Forense.

[23] TJSC, Embargos Infringentes n. 2009.051225-8 / 0093279-85.2009.8.24.0000.

* Advogado Penalista – Sócio da Bertol Sociedade de Advogados.

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