“JUIZ SEM ROSTO” e o Crime Organizado: a poesia da Constitucionalidade no horizonte do PL 212/24.
Por Thiago de Miranda Coutinho* – Membro Efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC.
A recente criação da Vara Estadual de Organização Criminosa pelo venerável TJSC, em maio passado, marca um movimento tecnicamente inovador no enfrentamento ao crime organizado no Brasil.
Trata-se de uma unidade judiciária composta por um colegiado de cinco magistrados – com competência privativa e concorrente para julgar todos os atos concernentes –, atuando sob regime de anonimato parcial, com distorção de imagem e voz durante as audiências, e com sessões realizadas exclusivamente por videoconferência; medida essa voltada à proteção física dos julgadores e demais operadores do sistema.
Inequivocamente, o objetivo é proteger os juízes de represálias em razão da periculosidade dos grupos julgados, mormente facções criminosas com atuação interestadual e internacional; muitas das vezes, envolvidas com tráfico de drogas, de armas, lavagem de dinheiro e homicídios. É o retrato que se enxerga na obra “O Banquete”, de Platão, onde a frase “a necessidade é a mãe da inovação” emoldura a realidade atual.
Diz-se que os clássicos nunca saem de moda e, assim como no diálogo Platônico, a solução adotada pelo judiciário catarinense – reforçada pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) –, é baseada na Lei nº 12.694 de 2012 e guarda vieses assertivos de atividade de inteligência.
(Lei nº 12.694/12) Art. 1º-A. Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais poderão instalar, nas comarcas sedes de Circunscrição ou Seção Judiciária, mediante resolução, Varas Criminais Colegiadas com competência para o processo e julgamento:
I – de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição;
II – do crime do art. 288-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e
III – das infrações penais conexas aos crimes a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo.
- 1º As Varas Criminais Colegiadas terão competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e da execução da pena, inclusive a transferência do preso para estabelecimento prisional de segurança máxima ou para regime disciplinar diferenciado.
- 2º Ao receber, segundo as regras normais de distribuição, processos ou procedimentos que tenham por objeto os crimes mencionados no caput deste artigo, o juiz deverá declinar da competência e remeter os autos, em qualquer fase em que se encontrem, à Vara Criminal Colegiada de sua Circunscrição ou Seção Judiciária.
- 3º Feita a remessa mencionada no § 2º deste artigo, a Vara Criminal Colegiada terá competência para todos os atos processuais posteriores, incluindo os da fase de execução.
Ela, a solução, retoma e reformula a lógica do “Juiz sem Rosto”, que ganhou notoriedade na década de 1990 em países como Itália e Colômbia; posteriormente, no Rio de Janeiro, com a atuação da Justiça Federal no combate ao crime organizado. Quanto às exceções da medida, elas residem nos processos de competência do Tribunal do Júri, de Violência Doméstica e do Juizado Especial Criminal.
Entretanto, o diferencial atual é que a vara não apenas tem competência especializada, mas é também estruturalmente plural, compondo um modelo que busca assegurar o distanciamento institucional e a segurança física de seus integrantes, como dito.
Porém, os debates acerca da constitucionalidade dessa medida são inevitáveis. Toda discussão jurídica acaba por circundar o princípio do juiz natural, previsto no artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, que impede a criação de tribunais ou juízos de exceção, assegurando que todo cidadão seja julgado por autoridade competente previamente estabelecida por lei.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
Neste caso, não se trata de juízo de exceção ou tribunal de exceção, mas de um órgão regular, integrado à estrutura do Judiciário estadual, com competência funcional e territorial definida e anterior aos fatos sob julgamento. Inclusive, tal especialização é vista como uma forma de garantir maior celeridade, técnica e coerência no julgamento de crimes de elevada complexidade.
Todavia, o aspecto mais sensível da iniciativa diz respeito à publicidade dos atos processuais, uma vez que a Carta Magna em seu artigo 93, inciso IX, exige que todas as decisões sejam fundamentadas e que os julgamentos sejam públicos, salvo nas hipóteses legais de segredo de justiça.
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Aqui, a publicidade dos atos não é eliminada, mas mitigada quanto à identidade dos julgadores. Outrossim, a atuação do colegiado é registrada, as decisões são motivadas e acessíveis e, por isso, o processo tramita normalmente sob o acompanhamento das partes. Ainda assim, não se pode negligenciar o debate sobre eventuais riscos democráticos de se permitir o anonimato dos juízes; mesmo em nome da segurança institucional.
Isso, porque a ausência de identificação individual pode, em tese, supostamente dificultar o exercício pleno do contraditório, uma vez que não se poderia aferir o histórico, a imparcialidade e eventuais impedimentos ou suspeições relacionadas a cada julgador.
Desta feita, tal preocupação não é trivial, especialmente no que tange o princípio da identidade física do juiz que, embora mais robusto no processo civil, também se manifesta no âmbito penal como um ideal de continuidade e pessoalidade na jurisdição.
Contudo, a solução catarinense não rompe essa lógica, pois os cinco juízes atuarão de forma conjunta desde a origem do processo, participando dos atos de instrução e decisão, sem substituições arbitrárias no curso da marcha processual.
Assim, pontua-se que, embora inédito, o modelo está juridicamente fundamentado e é compatível com o sistema normativo brasileiro, desde que sua aplicação seja feita com rigor técnico e fiscalização contínua.
Afinal, o debate sobre a temática é amplo. E essa amplificação não se esgota na esfera judicial. Ele, o debate, ganha corpo também no plano legislativo, especialmente com a tramitação do Projeto de Lei nº 212/2024, cuja sugestão legislativa é deste escritor, catarinense.
O hoje PL nº 212/2024 – cuja propositura se deu junto ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a seccional barriga verde, em 2022 –, visa prover um maior lastro de proteção à Advocacia brasileira. O objetivo é incutir qualificadoras aos tipos penais de lesão corporal e homicídio praticados contra advogados no exercício da profissão ou em decorrência dela; medida extensiva aos cônjuges, companheiros e parentes consanguíneos até terceiro grau, em razão dessa condição.
Nessa senda, a pertinência de se traçar um paralelo entre o novo modelo de vara colegiada implantada pelo egrégio TJSC e o PL n° 212/24 é manifesta. Ambos se inserem em um contexto mais abrangente de fortalecimento institucional diante da crescente violência contra operadores do Direito; sejam advogados ou magistrados.
Aqui, se aponta para o horizonte de proteção e salvaguarda dos pilares constitucionais do Estado Democrático do Direito, como arguido no texto da sugestão legislativa:
[…] Ademais, vilipendiar estes operadores da justiça, além de expor o desprezo que os criminosos têm para as instituições e para o sistema jurídico e constitucional do Brasil, fragiliza e coage a atuação funcional dos homens e mulheres que, diuturnamente, buscam defender a justiça e o Estado Democrático de Direito. […]
[…] Por isso, incluir tais hipóteses qualificadoras ao regramento penal promoverá, ao menos, a concreta sinalização estatal no sentido de prover maior segurança funcional e tutela institucional aos importantes patronos que laboram perante a justiça brasileira.
Portanto, é imperioso que, ao mesmo tempo em que se busca proteger os agentes do sistema de justiça, não se prescinda a transparência, a imparcialidade e a possibilidade de fiscalização dos atos judiciais. Diante disso, o Estado ao enfrentar o crime organizado deve responder de forma contundente, cirúrgica, legal, efetiva e constitucional; assim como nas expectativas depositadas na louvável criação da vara especializada em solo catarinense.
Quanto à iniciativa legislativa prezando pela Advocacia brasileira, o PL n° 212/24 encontra-se em regime de urgência aguardando votação no Plenário da Câmara dos Deputados.
Enquanto isso, faz-se poesia. Olha-se para o horizonte, onde nada distante, pairam os corpos nesta “sala de espera” chamada Democracia. E por falar nisso, Vinícius, que “Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia, eu fiz o cimento da minha poesia”.
Referências:
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 maio 2025.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23 maio 2025.
BRASIL. Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012. Dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas; altera dispositivos dos Códigos Penal, de Processo Penal, de Trânsito e do Estatuto do Desarmamento. Diário Oficial da União, seção 1, p. 3, 25 jul. 2012. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12694-24-julho-2012-773906-norma-pl.html. Acesso em: 9 jun. 2025.
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 27. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Conselho Federal. Gabinete da Vice-Presidência. Ofício n. 004/2022 – GVP, de 29 de mar. de 2022. Propõe e apoia sugestão de Projeto de Lei que qualifica os crimes de Homicídio e Lesão Corporal praticados contra Advogados de iniciativa do Sr. Thiago de Miranda Coutinho. Endereçado a Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, Presidente da Comissão Especial de Estudo do Direito Penal. Brasília, 2022. 1 f.
PLATÃO. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes; texto grego baseado em John Burnet; editor convidado Plínio Martins Filho; coordenação de Benedito Nunes e Victor Sales Pinheiro. 4. ed. bilingue (grego‑português), revista. Belém: Editora UFPA, 2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Judiciário de SC inova ao criar Vara Estadual de Organizações Criminosas. Florianópolis: TJSC, maio 2025. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/judiciario-de-sc-inova-ao-criar-vara-estadual-de-organizacoes-criminosas-. Acesso em: 9 jun. 2025.
Autor:
* Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito, com pós-graduação em Inteligência Criminal. Escritor e coautor de livros, atua como articulista em importantes veículos jurídicos nacionais, integra o corpo docente da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina (Acadepol), é palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC).
Em 2021, foi condecorado pela Associação Brasileira das Forças Internacionais de Paz por sua contribuição à comunidade de Inteligência. Já em 2023, recebeu uma Moção de Aplauso da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).
Recentemente, Miranda Coutinho ganhou destaque nacional como autor da sugestão legislativa que resultou no Projeto de Lei 212/2024, apoiado pelo Conselho Federal da OAB, propondo a inclusão de qualificadoras no Código Penal para crimes cometidos contra advogados no exercício da função.
Instagram: @miranda.coutinho_