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DIREITO E LITERATURA

Por Maria Teresa Vieira da Silva Oliveira – Juíza Federal Titular da 27ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, RS *.

As diretrizes curriculares do curso de Graduação em Direito, elaboradas com observância da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), abrangem o estudo, em linhas gerais, de conteúdos relacionados ao conhecimento geral, como antropologia, sociologia, filosofia, ciências políticas, e a conhecimentos específicos, como direito material e processual civil, penal, do trabalho, direito constitucional, administrativo, internacional, previdenciário, comercial, financeiro, além de outros ramos do Direito, a critério de cada faculdade, como direito digital, direito agrário, bioética, ambiental, etc.

Como se vê, a educação jurídica no Brasil está formatada na entrega do maior número possível de informações técnicas ao estudante.

Contudo, a meu ver, essa concepção técnico-informativa de ensino não capacita plenamente o Operador do Direito a desenvolver um adequado raciocínio jurídico. E assim o é porque o Direito não é uma ciência exata. Outrossim, porque a Lei não oferece solução pronta à imensa gama de especificidades que decorre da relação do homem em Sociedade.

Mais do que o ensino epistemológico, o curso de Direito, como ciência humana que se afigura, deveria também privilegiar os saberes literários, de modo a imbuir o formando de sólida formação, não somente técnico-jurídica, mas também humanista, dotando-lhe de capacidade de análise, reflexão, valoração e interpretação dos fenômenos jurídico-sociais.

Destarte, o estudo da literatura, em caráter complementar ao estudo formal, propiciaria ao estudante o desenvolvimento de uma postura crítica, o domínio da gênese, facilitando a pesquisa da doutrina, jurisprudência e outras fontes do Direito, além de favorecer o correto uso da linguagem.

É sabido que o ordenamento jurídico traz informações de caráter instrumental, demandando de seu intérprete um trabalho de investigação para a aplicação da lei ao caso concreto, ou seja, cabe ao operador do direito examinar, dentro da legislação, a melhor solução que a lei oferece àquela hipótese.

E nesse aspecto, a literatura se apresenta capaz de abrandar ou individualizar a letra fria da lei.

O professor ANDRÉ KARAN TRINDADE, da UNISINOS, que desenvolve um trabalho belíssimo na área de Direito/Literatura junto com o procurador de justiça do RS e também professor da Unisinos, da pós-graduação em Direito, Lênio Streck diz que: “A LITERATURA PODE HUMANIZAR O DIREITO. E isto é fundamental para a interpretação dos fenômenos jurídicos e, de um modo geral, para a formação do jurista”.

Contudo, muitos estudiosos e juristas condenam o uso da literatura no ensino do Direito. Ponderam que o exercício iria afastar o intérprete da vontade do legislador.

Penso diferente.

Tenho convicção de que essa interdisciplinaridade enriquece a pesquisa, a fundamentação das teses, auxilia a prática e a educação, visando à construção do saber jurídico crítico, reflexivo e humanístico a cada caso concreto.

Mais do que isso: a literatura fornece vasto ferramental para a compreensão do mundo, e, por via reflexa, do mundo jurídico.

Insta ressaltar, oportunamente, que o artigo 206, incisos II e III, da CF, não só autoriza, mas incentiva e estimula a interdisciplinaridade, assim enunciando:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.

Com base nesse dispositivo é que a reforma do ensino jurídico no Brasil tem buscado uma formação mais plural, menos tecnicista ou meramente dogmática, ampliando-se, assim, o olhar dos bacharéis em Direito para a complexidade do fenômeno jurídico.

Cabe aqui a reflexão da Professora de Direito Constitucional, Vera Karam, da UFPR, no sentido de que “a literatura abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico, porque é mais sensível às especificidades do humano”.

Nesse compasso, parece-me de extrema relevância que os estudantes sejam instados a se debruçar, além da doutrina jurídica stricto sensu, sobre a literatura, abraçando autores como Machado de Assis, Shakespeare, Eça de Queiróz, Lima Barreto, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Sófocles, Jorge Amado e tantos outros.

Podemos extrair grandes lições, por exemplo, da literatura de Machado de Assis. Em suas obras, o Direito e as questões jurídicas apareciam a todo momento, evidenciando verdadeira devoção do escritor ao ramo.

Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado em folhetins a partir de 1888, o personagem principal confessa ter estudado muito mediocremente, mas mesmo assim teria colado grau em Direito pela Universidade de Coimbra. A narrativa adentra em questões sociais, trata de positivismo e cientificismo, além de descrever os efeitos na vida urbana da libertação dos escravos (1888) e da proclamação da República (1889). No último capítulo (“Das negativas”), prevalecem a ironia e o pessimismo, características ínsitas da obra de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Na célebre obra “Dom Casmurro” (que dialoga com Otelo, de Shakespeare), publicado em 1889, a narrativa se desenvolve a partir de uma promessa feita pela mãe de Bentinho e descumprida após negociar com Deus a troca do sacerdócio daquele pelo casamento com Capitu. A obra é tão atemporal, que seu mote principal (Capitu traiu ou não Bentinho) é discutido até hoje e, inclusive, sofreu, modificação de interpretação ao longo das décadas: até a década de 60, tinha-se certeza que Capitu havia traído Bentinho, e, com a evolução dos costumes, passou-se a acreditar que a traição não havia ocorrido, que tudo não passava de paranoia do narrador (o próprio Bentinho).

Já no conto “O Alienista”, o advogado Salustiano, prestes a ser internado como louco na Casa Verde, defendeu um testamento falso como sendo verdadeiro e obteve vitória para seu cliente. Consta da obra que, “o distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade”. E aí sobressai a visão machadiana sobre advogados: esse era um advogado “normal” e não poderia, por isso, ser internado na Casa de Orates.

A seu turno, Lima Barreto, o escritor que trazia muitas de suas vivências pessoais para a ficção (três personagens importantes de sua obra, Gonzaga de Sá, de “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, publicado em 1919; Isaías Caminha, de “Recordações do escrivão Isaias Caminha”, de 1909; Vicente Mascarenhas, de “Cemitério dos Vivos”, de 1920, são funcionários públicos, assim como o escritor), traz como pano de fundo de suas obras o racismo, o preconceito e a discriminação social.

Em “O homem que sabia javanês” (1911), o autor mostra as bases sobre as quais se constrói a estratificação social. A história retrata a ascensão social do protagonista Castelo, um malandro que mente ser professor de javanês, e, com isso, cai nas graças do Barão de Jacuecanga, ganhando fama e prestígio social, e, ao final, até ingressa na carreira diplomática. A história, contada pelo próprio Castelo em tom de ironia ao amigo Castro, serve de gancho para discussões sobre a política dos favores no Brasil, critérios pouco ortodoxos de ascensão social e, mais do que tudo, o poder do “parecer” em detrimento do “ser”, ou seja, a supremacia da imagem fabricada frente ao saber verdadeiro, lamentavelmente tão em voga hoje em dia.

Também encontramos reflexões jurídicas na obra de Aluísio Azevedo. A temática de “O cortiço” (1890) retrata a luta de classes, o conflito entre “explorado e explorador”, e, assim, como “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, resgatando os dramas da transição do trabalho escravo para o trabalho livre.

Por sua vez, Jorge Amado nos presenteia com profunda análise sobre as desigualdades sociais, a formatação da política brasileira, racismo e a marginalização no Brasil em obras como “Capitães da Areia” (1937), “Jubiabá” (1935), e tantas outras.

Graciliano Ramos, escritor, jornalista e político, um militante de causas sociais, registra, em sua obra, denúncias do descaso do governo com os investimentos sociais relacionados à seca no Nordeste.

Em “Vidas Secas”, publicado em 1938, Graciliano retrata a diáspora de milhares de sertanejos de sua terra, bem como a inserção desses retirantes nos espaços urbanos do centro do Brasil, a partir da história de Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cachorra Baleia.

A obra, que conta a vida de uma família nordestina perambulando pelo sertão em busca de sobrevivência, é um relato pungente da desumanização que a seca promove nos personagens, cuja capacidade de se expressar verbalmente é tão estéril quanto o solo da região.

Noutras palavras, as vidas são secas não somente em virtude da nefasta condição climática, mas em virtude da miséria imposta pela exploração da ignorância da família personagem pelos ricos proprietários de terras da região.

Aqui, a literatura atua como instrumento de denúncia da miséria e do abandono social, dialogando com o pintor Candido Portinari, que na mesma época lançou sua série de pinturas “Retirantes”.

A propósito, ficou célebre a carta que Graciliano Ramos enviou para Portinari a propósito da miséria, ou da exploração dela, no final da década de 30:

Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? Dos quadros que você mostrou quando almocei no Cosme Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe com a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto me horroriza”.

Como se vê, após escrever “Vidas Secas”, o escritor conclui, pesaroso, que a arte se alimenta da miséria.

A angústia de Graciliano é reprisada em “Memórias do cárcere”, em que o escritor relata sua vivência na prisão, arbitrariamente ordenada pelo Estado Novo, de Vargas. O relato aproxima-se de “O Processo”, de Kafka, uma vez que o escritor foi preso sem processo legitimador, sem acusação formalizada e sem crime pronunciado, sob a mera imputação de subversão. Nas entrelinhas da obra, a conclusão é ainda mais nefasta do que em “Vidas Secas”: o Direito vive da miséria.

A temática da seca e a migração de retirantes nordestinos também é pano de fundo da obra “O quinze” (1930), de Rachel de Queiroz, que, ainda, trata da posição da mulher na sociedade, de feminismo e de socialismo.

Mais para a frente, não poderia deixar de citar Ariano Suassuna, que, em seu “Auto da compadecida” (1955), traz lições de cunho social, além de nos brindar com a cena do tribunal de júri com vislumbres do Direito Canônico, em que Deus é associada ao juiz, o demônio é representado pelo promotor e Nossa Senhora, a advogada de defesa. A peça “A pena e a lei” (1959) também aborda a temática social, tratando da exploração do trabalhador, de desigualdade social, miséria, prostituição; enfim, um retalho do Nordeste dos anos 50, na visão do então estudante de Direito.

Algumas obras e escritores são inclusive emblemáticos para a compreensão do processo de evolução da família brasileira e, em consequência, de sua regulação jurídica. Um exemplo disso é a obra de Nelson Rodrigues, que traça um retrato da família brasileira da metade do século XX, destacando temas difíceis para a época, como o adultério, o concubinato, o divórcio, a filiação extraconjugal. A temática é largamente explorada em Dom Casmurro, como acima exposto.

Na atualidade, podemos referir Dráuzio Varela (“Estação Carandiru”, “Carcereiros” e “Prisioneiras”, que registram a ignominia que se afiguram as penitenciárias brasileiras), Conceição Evaristo (“Becos da memória”, que trata da desigualdade social da perspectiva de cidadãos negros descendentes de escravos que são despejados da favela onde moram), Geovani Martins (“O sol na cabeça”), e tantos outros livros que retratam o tratamento que o Direito e o Estado dispensam às minorias.

A literatura estrangeira também é primorosa na compreensão dos fenômenos sociojurídicos.

O português Eça de Queiroz, que estudou Ciências Jurídicas, traz diversos registros em sua obra, de institutos do Direito. A trama de “O primo Basílio” (1878) gira em torno do adultério de Luísa, que, casada com Jorge, o trai com o primo Basílio. Extraímos do enredo um exemplo clássico de assédio moral vertical ascendente, praticado pela criada Juliana em relação à patroa Luísa. Testemunha do adultério e havendo surrupiado algumas cartas trocadas entre os amantes, Juliana passa a chantagear Luísa, exigindo dinheiro em troca de seu silêncio. Já em “O crime do Padre Amaro” (1875), discute-se amor, ética, celibato e convenções sociais.

Da literatura de Liev Tolstói, temos “A ressurreição” (1872), que trata da injustiça do sistema judiciário e prisional na Rússia, no fim do Século XIX. Ainda de Tolstói, temos, em “A morte de Ivan Ilicth” (1886), como protagonista, um juiz que descobre, em seu leito de morte, que sua vida foi desprovida de propósito, que se limitou a viver tal e qual a Sociedade dele esperava. Que não se aprofundou em suas relações pessoais e profissionais. Que deixou se contaminar pelos louros do cargo. Reflexões bastante oportunas.

Saltando para a Idade Antiga, releva notar o dramaturgo Sófocles, que viveu na Grécia entre 495 e 406 A.C., e que tem muito a ensinar aos Operadores do Direito sobre o embate entre o Direito Natural e o Direito Positivo, do ponto de vista da evolução do Direito perante os conflitos que permeiam a Sociedade (notadamente em duas obras da trilogia tebana, “Antígona” e “Édipo Rei”).

Outro dramaturgo festejado, o inglês Shakespeare, muitos séculos após Sófocles, tratou de questões jurídicas de alta relevância e de dilemas que, quase um século depois, continuam a assombrar a sociedade contemporânea. O que é justo? O que é moral? As leis oprimem ou libertam? O que é legítimo? As peças “O mercador de Veneza”, escrita em 1596, e “Medida por medida”, de 1604, por exemplo, tratam do formalismo jurídico, remetendo-nos a um problema filosófico atemporal: até que ponto a teoria do direito deve centrar-se apenas na norma, relegando-se para outros campos de investigação questões de política ou juízos de equidade?

As sobreditas peças antecipam a discussão hermenêutica levada a efeito pelos juristas do século XIX, discussão essa que persiste até os dias atuais. Tais reflexões são atemporais, como soem ser todas aquelas que emergem dos clássicos.

Não podem ficar de fora da presente análise obras como “Os Miseráveis” (Victor Hugo, 1862), “Crime e castigo” (1866) e “O idiota” (1869), ambos de Fiódor Dostoiévski, “Vigiar e punir” (Michel Foucault; 1975), “Germinal” (Emile Zola, 1885), “A casa soturna” (Charles Dickens, 1853), “A revolução dos bichos” (1945) e “1984” (1949), de George Orwell, todas trazendo representações acerca da exteriorização da Sociedade a respeito de suas normas jurídicas e “O caso dos exploradores de caverna” (1949), de Lon Fuller, que trata sobre o  “estado da natureza”, de Hobbes, trazendo à luz o conflito entre aplicar a “letra fria da lei” e fazer justiça, buscando uma adequação da lei ao caso concreto, além de diversas obras de Balzac (“O contrato de casamento” e “Ilusões perdidas”), Flaubert (“Madame Bovary”) e Goethe (“Fausto), que trouxeram as questões de Direito para dentro de suas narrativas.

Evidentemente, ficaram de fora da presente análise dezenas, quiçá centenas de cronistas, contistas, dramaturgos, filósofos, ficcionistas, enfim, literatos, que se dedicaram a estudar a condição humana e, nesse diapasão, adentraram na seara do Direito, em busca de compreensão dos fenômenos sociojurídicos.

Impende repisar, nessa linha e já à guisa de conclusão, que não se afigura, o ensino da literatura para o Operador do Direito, como algo prescindível, senão altamente recomendado, pelas razões elencadas.

Se a literatura humaniza, quem sabe não seria essa nossa tábua de salvação na era em que vivemos, onde grassam a intolerância, a intransigência, a falta de compaixão e de empatia.

Por derradeiro, faço minhas as sábias palavras enunciadas pelo professor, sociólogo e crítico literário Antônio Cândido, no sentido de que “(…) assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”.

*Texto publicado no site do TRT da 4ª Região e no site do CONJUR.

 

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