Há garantia nos carros de repasse?
Por Ariel Silveira – Membro efetivo do IASC.
I – Garantia de carros seminovos
No comércio de veículos (leia-se carros) usados, como já é do conhecimento, incidem as garantias previstas na Lei n° 8.078/90, o CDC – Código de Defesa do Consumidor, por conta da vulnerabilidade do consumidor frente a expertise dos lojistas e seus colaboradores.
Vale lembrar que tal regramento não se aplica ao comércio realizado entre particulares[2], ou seja, partes que não se enquadrem como relação de consumo, conforme os termos do CDC:
- 2° – consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire o produto como destinatário final;
- 3°- fornecedor é toda pessoa física ou jurídica que desenvolvem, entre outras, atividade de comercialização de produtos.
Nos casos que se encaixem na relação consumerista, de acordo com os requisitos expostos acima, o consumidor tem assegurado o direito à garantia do veículo adquirido, em 90 (noventa) dias.
Dentro do prazo da garantia, qualquer vício que o automóvel (leia-se carro) venha a apresentar é de responsabilidade do lojista, o qual tem um prazo de 30 (trinta) dias para solucionar o problema, caso contrário, o consumidor pode exigir a substituição do produto, seu dinheiro de volta, ou abatimento proporcional do preço.
Ainda, a exceção à regra da garantia dos automóveis pelo prazo de 90 (noventa) dias, consiste no caso do vício oculto, que se trata de um vício que não é de fácil constatação pelo consumidor, ou que possa ser notado somente após um razoável tempo de uso.
Nas hipóteses de vício oculto, o prazo da garantia (90 dias) se inicia no momento em que o defeito for descoberto.
II – Carros de repasse
Devido à grande explosão do comércio de veículos seminovos na última década, se tornou muito corriqueiro para os lojistas terem que pegar os automóveis usados como forma de pagamento.
Essa prática (ter que pegar veículo usado na troca) se tornou comum, em razão do grande número de automóveis expostos no mercado pelas fabricantes, e a grande facilidade de crédito para seu financiamento.
Assim, boa parte desses automóveis, ou seja, que entram como forma de pagamento, são revisados e expostos à venda pelos lojistas, se tornam seu próprio produto.
Contudo, outra parte desses veículos já se encontram bem depreciados, de maneira que não vale a pena o custo-benefício de revisá-los para introduzir novamente no mercado.
Esses veículos são repassados por um valor bem abaixo da tabela Fipe[3], pois não recebem nenhum tipo de manutenção mecânica ou estética, nem geram lucro sobre tal transação, por isso obviamente não pode ser considerado um produto.
Logo, diante do exposto, percebe-se que os veículos de repasse são uma moeda de troca, e não podem nem sequer ser equiparados a um produto de comercialização das revendas de automóveis.
III – Garantia dos carros de repasse
O mercado vem se modernizando em uma velocidade impressionante, assim como a vida em sociedade num todo, de modo que a nossa legislação não consegue acompanhar.
Porém, os lojistas para se manter ativos as inovações do mercado, têm que se adaptar para ter êxito em suas vendas e ao mesmo tempo não deixar de cumprir as leis.
Diante disso, surgem dúvidas como: deve se conceder ou não a garantia para os veículos de repasse?
Pois bem! O art. 4° do CDC, com enfoque em seus incisos III e IV traz os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo de modo bem abrangente e aberto, permitindo uma interpretação extensiva.
Essa interpretação extensiva possibilita a adaptação das relações de consumo ao avanço tecnológico e as inovações do mercado. Vejamos a redação do inciso III do art. 4° do CDC:
harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
Parece-me que a intenção do legislador foi clara em deixar na lei a possibilidade de que as relações de consumo se adaptem ao avanço da sociedade, como o caso dos veículos de repasse.
Dito isto, não é razoável que um veículo repassado por um lojista seja equiparado a um veículo que é produto na sua loja, pois o primeiro não recebe nenhum tipo de revisão, nem se aufere lucro sobre ele, e ainda é cientificado esses detalhes ao consumidor. E o segundo é todo revisado e vendido pelo preço de mercado.
Assim, vindo no mesmo sentido das últimas decisões dos tribunais dos estados de Santa Catarina e de São Paulo, conforme se tem notícia, chega-se à conclusão que os veículos de repasse – vendidos abaixo do valor de mercado, sem revisão, e desde que informado isso ao cliente – não são passíveis de fornecimento de garantia.
[1] Advogado, Membro efetivo do IASC e consultor jurídico. Especialista em direito processual civil pela Faculdade Cesusc.
Endereço eletrônico para contato: arielsilveira.adv@gmail.com
[2] Particular é o sujeito que compra ou vende o seu veículo de uso próprio, ou comercializa não sendo sua atividade fim e atividade que não auferi lucro objetivamente.
[3] A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – Fipe é uma organização de direito privado, sem fins lucrativos, criada em 1973. Entre seus objetivos está o apoio ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Possui, hoje, destacada atuação nas áreas de ensino, projetos, pesquisa e desenvolvimento de indicadores econômicos e financeiros.