iascsecretaria@gmail.com
+55 (48) 3039-0059

Notícias

Artigos & Publicações periódicas

Há uma luz no fim do túnel – por Prof. Dr. Carlos Alberto Antunes Maciel

II n’y a pas de science du singulier, il n’y a pas de science de l’événement, c’est là un des points les plus du assurés d’une vulgatethéorique encore dominante. (Edgar Morin)

“… é mesmo provável que, nas condições da “corrupção”, o poder e a violência da energia (…) sejam atualmente maiores do que nunca  e que o indivíduo gaste agora muito mais esta energia do que antes podia (…) [É] quando nascem o grande amor e o grande ódio… (Friedrich Nietsche)

                        A metáfora utilizada e que justifica por si só o nosso encontro de hoje muito diz ao mesmo tempo sobre o objeto e o caminho a percorrer. A palavra túnel vem de uma antiga palavra francesa, tonnelle, que nos deu, em português, o tonel ou ainda a tonelada. Era uma espécie de cilindro, normalmente de couro e, forçosamente, com duas aberturas nas extremidades. Foi através da língua inglesa que a palavra, com uma nova roupagem, veio a ter o sentido que agora, e neste contexto, lhe é atribuído. Trata-se sempre, de uma certa forma, de um cilindro, com duas extremidades. Entre as duas extremidades, o espaço a percorrer.

                        A palavra luz nos vem da lux latina, que é o lume, o brilho (lumière, luce, luz, Licht, light). Esta luz é também o dia; e opõe-se à escuridão, às trevas. No universo religioso das representações, a luz (dia) e Deus (de dei, antiga raiz indo-europeia que indica o brilho – e, com o brilho, a luz: Dieu, Dio, Dios, God, Gott), aqui se encontram e, por vezes, até mesmo se confundem.

                        Convém que deixemos de lado aqui, e por enquanto, a vertente religiosa da problemática – que nos vai no entanto servir mais adiante, como veremos. O nosso túnel – que é a nossa trajetória, o nosso percurso – é com efeito essencialmente político que, no dizer de Spinoza, deve ser o espaço da razão. A religião, como espaço da emoção, deve seguir o seu próprio caminho, idealmente, de forma paralela.

                        E cabe bem salientar este ponto. O que nos reúne hoje aqui é com efeito a certeza de que há uma luz no fim do túnel. Que surge como uma nova esperança nestes tempos de desesperança. Com a aceitação da necessária travessia – e, para atravessar o túnel, para chegar à luz, é preciso aceitar a priori, e enfrentar, com serenidade, as incertezas e a escuridão que o túnel em que nos encontramos encerra.

                        O túnel, considerada a sua geometria, apresenta-se a nós como uma constante. Consideradas as suas diferentes configurações, ele compreende uma quantidade importante de variáveis.

                        Se estivermos, em Florianópolis, no túnel Antonieta de Barros, podemos ir do Centro para o Saco dos Limões. O túnel é curto e os bairros são conhecidos. Mas há possíveis engarrafamentos… e pode haver acidentes.

                        Se estivermos no túnel do Monte Branco, nos Alpes, iremos da França para a Itália, ou da Itália para a França. O túnel tem, neste caso, cerca de doze quilômetros; ao entrar, de um lado como do outro, não é possível ver a luz que na outra ponta se encontra – mas sabemos que ela lá está. Ela é o nosso objetivo e vamos ao encontro dela. Fruto da razão, ela não é de essência divina e o túnel que nos conduz a ela não é com certeza o túnel Antonieta de Barros – demasiado curto e com luzes visíveis nas duas pontas.

                        Necessário faz-se então que estabeleçamos o nosso Plano de Ação e que este Plano de Ação nos ofereça alternativas.

                        Podemos com efeito imaginar que, para atravessar o túnel e vencer, na escuridão, todos os obstáculos que se apresentam a nós, basta seguir um Mestre, um Guia, um Chefe. Isto dá-nos – claro – aquela enorme dose de segurança que em tais situações buscamos. Seguir, já nos ensinava Sêneca há mais de dois mil anos, não representa no entanto uma garantia de acerto e muito menos de felicidade. É necessário com efeito, diz-nos Sêneca, esforçar-se para não fazer o que fazem as ovelhas, que seguem o rebanho e caminham, não para onde se deve ir, mas muito simplesmente porque é naquela direção que todo mundo vai.

                        Adotar esta postura, que é ao mesmo tempo cômoda e intelectualmente estéril, é apostar numa solução, num enlace messiânico, sebastianista – de que a história já nos mostrou, em algumas tantas ocasiões, no Brasil mesmo (e penso agora no episódio da Pedra Bonita ou ainda no de Canudos e em outros momentos mais recentes), os contornos imprevisíveis e violentos que tantas vezes marcaram o porto de chegada.

                        Estas posturas messiânicas existem, hoje, no nosso debate político. E não se trata, no entanto, para quem quer atravessar o túnel, de simplesmente seguir os passos de um Guia. Para atravessar o túnel, onde se encontram todos os males e todos os perigos, temos nós mesmos de elaborar as alternativas. Temos de definir o nosso próprio projeto ou Plano de Ação; temos de saber que luz e/ou que País queremos, que sociedade almejamos ter. Seguir o Guia, ou ainda acompanhar o rebanho é o que fazem – ou fizeram – todos os que, de forma agora sectária, se inscreveram no ideário das seitas que aqui, lá e acolá proliferam. Tais seitas, bem sabemos, podem ser de caráter político e/ou religioso.

                        Definir o nosso projeto? Isto tem um nome de que, visto assim, cabe saudar a nobreza. Este nome é política. “A política, diz-nos Alcides Abreu, é a atividade social que se propõe assegurar pela força, geralmente fundada sobre o direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular, garantindo ordem em meio às lutas que nascem da diversidade e da divergência de opiniões e dos interesses”.

                        Se, por um lado, é verdade que as ideias ou opiniões são veiculadas por pessoas (e é ainda bem claramente preciso que as tais ideias existam), é também por outro lado bem verdade que as lutas a que aqui se faz referência são as lutas travadas entre diferentes ideias, entre diferentes ideais e/ou ideologias. A política, na sua essência, é nobre – e ela nos é indispensável, apesar de uns tantos políticos dela se afastarem, na medida em que, na busca de um poder exercido distante da filosofia e dos ideiais que a norteiam, reduzem-na a mecanismos que dela somente no entanto representam uma parte visível. Por isso mesmo, e citando agora o nosso querido amigo Dr. Ricardo Rosa, temos de dizer, em alto e bom tom, que “política é coisa de gente séria…”

                        O sistema partidário deve existir para traduzir, na prática política, esta diversidade de ideias e de opiniões. Ele pode, diz-nos ainda Alcides Abreu, “ser analisado sob dois aspectos: o de estrutura e o de desempenho ou operação.

                        Estruturalmente, o sistema partidário é constituído (…) de pessoas e de recursos não humanos que se combinam (…) se subordinam a um conjunto eleito de valores (ideologia inscrita num programa) e adotam um sistema (…) com vistas (…) à operação.” Em outras palavras, um partido político não pode simplesmente representar um grupo de poder, criado para representar interesses particulares em detrimento da sociedade.

                        Temos então até aqui, recapitulando, alguns ingredientes básicos:

            a – a necessária definição dos termos: temos de saber do que estamos falando e/ou qual é a natureza do túnel em que nos encontramos. Definir um projeto, buscar a luz no fim do túnel, exige que o projeto seja definido. Em outras palavras, temos que saber de que luz estamos falando.

            b – afastar de nós a ideia segundo a qual basta seguir um Guia – ou basta eleger aquela pessoa providencial que, naturalmente, vai conduzir o povo para a sua pleniturde, para a felicidade.

            c – afastar o mau político, mero representante de interesses particulares, e reabilitar a política e, com ela, outros termos que se desgastaram, tais como república e democracia.

            d – partidos políticos representativos de uma corrente de pensamento (ou ideologia), capazes de claramente propôr um modelo ou uma forma específica de organização política e social para o País (o que supõe, na prática, a inevitável cláusula de barreira…).

                        E sigo, com dois outros pontos.

                        Reabilitar a memória. O Brasil conhece uma crise (e estamos no meio do túnel). Mas, lembremos: não há uma crise, há em verdade diferentes crises que se conjugam e/ou correm em paralelo.

                        A “crise” que, no dizer do historiador Reinhart Koselleck, é um sentimento inerente à condição humana, integrou o vocabulário político e econômico na primeira metade do século XIX. A palavra vem da medicina e a crise é, por natureza, passageira (quem já teve uma crise de asma bem sabe disso – a crise passa e a doença permanece). Depois disso, e durante uma boa parte do século XX, a crise “ausentou-se” do processo, para ressurgir com força nos últimos tempos.

                        Em 1972, Edgar Morin escreveu: “uma sociedade que evolui é uma sociedade que se destrói para se recuperar, e é assim uma sociedade onde os acontecimentos se multiplicam”. Em 1992, Paul Ricœur, citando Edgar Morin, cometeu um lapso e escreveu: “uma sociedade que evolui é uma sociedade que se destrói para se recuperar, e é assim uma sociedade onde as crises se multiplicam”. (V. bibliografia)

                        A nossa crise é o nosso túnel. E é antes de mais nada um fenômeno antropológico de que interpretamos os sintomas para fazer deles uma representação.

                        Assim foi com a crise de 1929, qualificada por alguns de crise da acumulação. E assim foi com a crise de 1973, chamada também de crise do petróleo ou de crise do dólar.

                        A crise de 1973 vem depois dos “trinta gloriosos” – que foram anos de forte expansão do capitalistamo, com aumento do nível de vida e redução das desigualdades. Foram anos durante os quais tivemos também um forte aumento da taxa de lucro dos empreendedores, com um consequente aumento também da acumulação. A crise, assim vista, diz que alguma coisa está acontecendo.

                        O filósofo André Gorz, em 1974, assim interpretou o acontecimento: “o capitalismo, que está longe de sucumbir diante da crise, vai administrá-la como sempre fez: grupos financeiros que ocupam boas posições vão tirar proveito das dificuldades dos grupos rivais para os absorver, pagando por eles um preço baixo e aumentando assim o poder de controle que exercem sobre a economia. O poder central vai por outro lado se esforçar para controlar a sociedade: tecnocratas calcularão normas para a “otimização” da despoluição e da produção”. Na política, as coisas não acontecem de forma muito diferente. Depois, temos a grande crise da década de 1990 e a crise de 2007/2008, que se prolonga.

                        Se damos estas referências, é para lembrar que o Brasil não está fora do mundo. E que, como diz o sociólogo Razmig Keucheyan, em abril de 2017, bem claramente falando do mundo ocidental, “a crise atual é antes de mais nada política”, com três principais debates, que começam com uma pergunta: o problema está nesta tensão que surgiu com relação às elites, que seriam hoje excepcionalmente corruptas e cúpidas, ou na desconfiança geral com relação às instituições da democracia representativa (isto é, a uma crise da representação que se traduz, na prática, por um sensível aumento das abstenções ou ainda pelo voto de extrema direita, por exemplo)? As elites são agora vistas como incapazes de trabalhar em benefício do bem comum, de gerar riquezas ou de respeitar a lei (o que aponta para uma crise da república e, com ela, da democracia representativa).

                        Na outra ponta, temos também a crítica da imprensa ou dos mass media. Ou ainda a observação segundo a qual vivemos um tempo de “triunfo das mediocridades”.

                        Finalizando sobre este ponto, o que se quer aqui indicar é que, na escala do nosso mundo, entramos provavelmente na era da “grande transformação” de que nos fala Karl Polanyi, da grande viragem histórica – ou idade da regressão – ou ainda na era da “descivilização”, em que vivemos comprando tempo, numa grande crise “sempre adiada do capitalismo democrático”, no dizer de Wolfgang Streek.

                        A luz está no fim do túnel. Não há dúvida. Mas temos que ver no túnel todos os diferentes aspectos da travessia. Alguns são mais propriamente internos: cláusula de barreira, não fragmentação partidária, luta contra a promiscuidade entre o setor público e o setor privado e contra o apoderamento ou aparelhamento do estado. São estes alguns dos pontos básicos que inicialmente esperamos. Mais adiante, a fonte ou luz de uma nova esperança terá talvez o nome da esperada constituinte.

                        Não sabemos com efeito se vamos ter mais uma vez gente na rua – tal como mencionado neste encontro… Mas, no fim da trajetória, haverá quase inevitavelmente um encontro marcado com esta nova esperança.

                        Outras questões têm no entanto de ser partilhadas, pois elas pertencem ao mundo. A crise da representação, a desconfiança com relação às elites, qualificadas de corruptas e cúpidas, o papel da imprensa no debate político, a crise da república e do sistema dito de democracia representativa são temas que atravessam as fronteiras. Ora, tendemos a ver todas estas crises gerais como se fossem exclusivamente nossas… Sem esquecer enfim a crise do capitalismo, diante da questão ecológica; e, com todas estas questões, a radicalização, o nacionalismo e as ameaças totalitárias (o século XXI será um século marcado pelo autoritarismo…).

                        Seguir um Guia, um Mestre, não basta. E a história nos mostra quanto isto pode ser perigoso. E voltamos aos nossos termos, às nossas palavras de que temos de definir o sentido – para saber do que estamos falando, para saber o que queremos para o Brasil. O Brasil no mundo. A isto cabe acrescentar um ponto importantíssimo para o debate político: nunca confundir os seus desejos com a realidade.

                        Com só uma certeza: a de não ter certezas outras, vamos concluindo. Como diz Norberto Bobbio, “Hoje, a [nossa] tarefa (…) é, (…) a de semear dúvidas, não a de colher certezas. De certezas – revestidas pelo fausto do mito ou edificadas com a pedra dura do dogma – estão cheias, (…) as crônicas da pseudo-cultura dos improvisadores, dos diletantes, dos propagandistas interessados.

                        Afinal, e coloco aqui esta última provocação: “o mundo não existe” e “nós nunca fomos modernos” (V. Bibliografia). Vejamos então a constituinte como uma hipótese razoável ou uma alternativa.

Bibliografia:

André Gorz. Leur écologie et la nôtre – In Le Monde Diplomatique, abril de 2010.

Alcides Abreu, Análise Sistêmica dos Partidos Políticos, Movimento – Editora da UDESC, 1977.

Bruno Latour, Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. La Découverte. Paris, 1997.

Edgar Morin. Le retour de l’évènement, in Communications, 18, Paris, 1972, p. 6-20.

Friedrich Nietzsche. Escritos sobre Política. Editora da PUC, Rio de Janeiro, 2007.

Heinrich Geiselberger (org.). L’Âge de la Régression. Premier Parallèle. Paris, 2017.

Karl Polanyi, La Grande Transformation, Tel, Gallimard, Paris, 1972.

Markus Gabriel, Por que o Mundo não Existe, Vozes, Petrópolis, 2016.

Norberto Bobbio, Política e Cultura, Editora UNESP, São Paulo, 2015, p. 63.

Paul Ricœur. Le retour de l’Événement, Mélanges de l’École Française de Rome. Italie et Méditerranée, 104, 1, Roma, 1992, 29-35.

Razmig Keucheyan. Anatomie d’une triple crise. In Le Monde Diplomatique, abril de 2017, p. 3.

Reinhart Koselleck. Le Futur Passé. Contributions à la sémantique des temps historiques, Éditions de l’EHESS, Paris, 1990.

Wolfgang Streek, Du Temps Acheté. La crise sans cesse ajournée du capitalisme démocratique. NRF Essais. Gallimard, Paris, 2014.

Sêneca. Da felicidade, Coleção L&PM Pocket, Porto Alegre, 2012.

Spinoza, Tratado Político, Saraiva de bolso, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013.

Deixar uma Resposta