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Pão e Rosas: o trabalho em seu revés

Por Sérgio Horácio da Silveira Filho[1]

 

Pão e Rosas. Direção de Ken Loach. França, Reino Unido, Suíça, Espanha, Alemanha: Parallax Pictures, 2000. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J2lkeGOC-ZE. Acesso em: 06 set. 2020.

 

O filósofo húngaro György Lukács, em sua obra “Para uma ontologia do ser social”, define trabalho[2] como “fenômeno originário, o modelo do ser social”[3]. Em outras palavras, graças ao trabalho evoluímos de seres naturais para seres sociais. É o trabalho que nos oportunizou o salto ontológico do homo sapiens para o homo sapiens sapiens: o hominídeo consciente de si e da realidade em sua volta. Pelo trabalho nos fundamos enquanto seres sociais. Por isso, precisamos empenhar nossos esforços para melhor entender essa categoria, suas contradições, e suas implicações sociais e jurídicas.

Nesse sentido, de melhor compreender as complexas relações do trabalho, podemos recorrer às obras cinematográficas que retratam a vida de muitos trabalhadores pelo mundo. Esse é o caso do filme “Pão e Rosas” (2000), dirigido por Ken Loach. A película se passa nos anos 1990 e tem como protagonista a jovem mexicana Maya, que atravessa a fronteira de seu país, de forma clandestina, para os Estados Unidos da América. No país, onde sua irmã Rosa já morava, Maya sobrevive de forma corajosa frente às dificuldades proporcionadas pelo “american dream”. As duas irmãs trabalham de faxineiras em um grande prédio no centro de Los Angeles. É nele que passam maior parte do seu dia.

O título, “Pão e Rosas”, é inspirado no lema de uma grande manifestação ocorrida em Lawrence, no estado de Massachusetts (EUA), em 1912. Dez mil trabalhadores, em sua maioria mulheres, marcharam por melhores condições de trabalho. Reivindicavam o pão, representando as condições essenciais para uma vida digna, mas também lutavam por rosas, por tudo o que a vida proporciona de beleza e bem-estar. Trazendo para o nosso contexto, a Carta Magna de 1988, proporciona aos brasileiros a garantia constitucional de acesso ao “pão” e às “rosas”. O artigo sexto determina que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Ou seja, é constitucionalmente garantido o essencial para a sobrevivência, mas também, o primordial para uma vida significativa.

O próximo artigo da Constituição Federal de 1988, o art. 7º (sétimo), apresenta uma série de direitos aos trabalhadores do país. Notamos a importância de tais direitos, também presentes na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, quando assistimos as várias dificuldades enfrentadas por Maya, e seus colegas, num ambiente onde as legislações de proteção aos trabalhadores eram inexistentes ou não cumpridas. Percebemos, nesses momentos, a importância do direito do trabalho em seu princípio de proteção aos hipossuficientes. Em várias cenas podemos ver a importância desse ramo do direito, e da própria advocacia trabalhista. Em uma delas, o coletivo de trabalhadores enfrenta o supervisor, lhe mostrando seus direitos de organização e de intervalo para o almoço. Desconheciam tais direitos, e só tomaram conhecimento deles por causa das orientações oferecidas pelos advogados ligados ao seu sindicato.

A importância dos sindicatos é revelada em todo momento na história. A organização sindical proporcionou àqueles trabalhadores, consciência de classe e acesso à defesa de seus direitos coletivos e individuais. Aos maus empregadores, retratados no filme, tais funções representaram perigo às suas práticas, ao ponto de os trabalhadores sofrerem represálias por participarem de reuniões do sindicato e de protestos. Eram ameaçados, caso se associassem à organização sindical, perderiam seus empregos[4]. Nosso ordenamento jurídico veda expressamente tais práticas antissindicais. O art. 8º, inciso V, da CRFB, e o art. 544 da CLT, garantem a liberdade de associação e de sindicalização[5].

Outro tema recorrente na história é o patriarcado e o machismo estrutural da sociedade americana. São diversas as cenas em que Sr. Perez, o supervisor da empresa de serviços de limpeza, é visto se aproveitando de seu cargo de poder para constranger, assediar, e violentar funcionárias. Maya, em seu primeiro dia de emprego, é exposta dessa maneira, sendo assediada pelo seu supervisor imediato. Sr. Perez se aproveitou do elemento subordinação, presente na relação de emprego, para realizar diversos assédios no ambiente de trabalho, caracterizando-se assim, a prática de assédio sexual laboral[6]. O assédio sexual laboral é tema atual e muito debatido. Recentemente ganhou um importante marco com a aprovação da Convenção Internacional nº 190, da Organização Internacional do Trabalho.

Aliás, situações de exposição vexatória, por parte do Sr. Perez, estão presentes em todo momento. O personagem trata seus subordinados com gritos, palavras de baixo calão e xingamentos. Constrange seus funcionários a lhe pagarem valores em dinheiro, de forma não oficial e ilegal, para regularizar documentos de estadia no país. Age de modo a abusar dos poderes diretivos dados a ele, como empregador. O supervisor, e a empresa como um todo, se valem da vulnerabilidade de imigrantes vindos dos mais diversos países, a maioria de origem latina, para explorar suas forças de trabalho em troca de uma baixa remuneração e de um desprezo total aos seus direitos. A xenofobia, nesse sentido, também é estrutural. Os únicos empregos que lhes restam são aqueles considerados desprezíveis[7] pela maioria da sociedade norte-americana. Os que desejam cursar uma universidade enfrentam inúmeras dificuldades pelo simples fato de não possuírem cidadania.

Por último, podemos tratar da responsabilidade dos donos do prédio a respeito das violações dos direitos do trabalho. Na história, os donos do prédio, em que trabalhavam os imigrantes, eram contratantes dos serviços da Angel, empresa de limpeza. Ao serem questionados sobre as condições desumanas daqueles trabalhadores, diziam não possuir nenhuma responsabilidade, pois tais pessoas não mantinham vínculo de emprego com eles, e sim com a empresa Angel. Eles, apenas, tomavam o serviço da empresa terceirizada. Ao analisarmos tal situação, na perspectiva do direito trabalhista brasileiro, veremos que os donos do prédio estavam equivocados, a empresa tomadora de serviço possui responsabilidade[8]. Se restasse evidente que a empresa Angel era inadimplente quanto aos títulos trabalhistas de seus empregados, seria aplicável a responsabilidade subsidiaria[9] aos proprietários do prédio.  Na responsabilidade subsidiária, “não pagando o devedor principal (empresa prestadora de serviços), paga o devedor secundário (empresa tomadora dos serviços)”[10]. Tal responsabilidade é prevista no art. 5º-A, §5º, da Lei nº 6.019/1974, e é assinalada pela Súmula 331[11], IV, do TST.

Por todos esses aspectos, verificamos que o filme “Pão e Rosas” nos oferece muitos subsídios para refletirmos sobre o trabalho e suas implicações sociais, políticas e jurídicas. A partir da obra, podemos perceber como a categoria fundante do ser social pode tornar-se instrumento de tortura[12] e desumanização. É o trabalho em seu revés: o que antes humanizou é utilizado para animalizar/instrumentalizar. Para a resolução dessa contradição, o direito do trabalho nos surge como importante instrumento. Conhecer seus princípios e diretrizes, e aplicá-los da forma correta, é uma das vias para a superação dos descaminhos que as relações trabalhistas tomaram ao longo da história.

 

 REFERÊNCIAS:

 BERNARDES, Juliana Costa; FREIRE, Teresa Cristina Guedes. Terceirização e responsabilidade subsidiária. Terceirização e responsabilidade subsidiária, 2012.

BONZATTO, Eduardo Antonio. Tripalium: O trabalho como maldição, como crime e como punição. Letras, p. 270, 1998.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. CÓDIGO PENAL. [S. l.], 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 7 set. 2020.

HUMANOS, Convenção Americana De Direitos. Pacto de San José de Costa Rica. OEA, San José De Costa Rica, v. 22, 1969.

INFRANCA, Antonino. Trabalho, indivíduo, história: o conceito de trabalho em Lukács. São Paulo: Boitempo, 2014.

JORGE NETO, FRANCISCO FERREIRA; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do trabalho. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2019. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597018974/. Acesso em: 06 set. 2020.

LESSA, Sérgio. Mundo dos homens: trabalho e ser social. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

NO BRASIL, Representação da UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1998.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. C098 – Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/normas/WCMS_235188/lang–pt/index.htm. Acesso em: 07 set. 2020.

ROCHADEL, Olívia; HOSTINS, Regina Célia Linhares; MELO, Alessandra Giacomett. O conceito de trabalho em Lukács: implicações no campo da política educacional. CONJECTURA: filosofia e educação, v. 24, p. 019010, 2019.

[1] Estudante de Direito da Universidade Sociedade Educacional de Santa Catarina – Unisociesc. Avaliação apresentada como requisito para a aprovação na Unidade Curricular de Relações Trabalhistas, ministrada pelo Prof. Me. Carlos Alberto Crispim e pelo Prof. Me. Gilberto Lopes Teixeira.

[2] “Na investigação ontológica de Lukács o conceito de trabalho comparece em uma acepção muito precisa: é a atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução social. Nesse sentido, é a categoria fundante do mundo dos homens. É no trabalho que se efetiva o salto ontológico que retira a existência humana das determinações meramente biológicas. Sendo assim, não pode haver existência social sem trabalho” (LESSA, 2012, p. 25).

[3] LUKÁCS apud INFRANCA, 2014, p. 26.

[4] Prática vedada pela Convenção nº 98 da OIT, que prevê a adequada proteção contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego: “Tal proteção deverá, particularmente, aplicar-se a atos destinados a: a) subordinar o emprego de um trabalhador à condição de não se filiar a um sindicato ou deixar de fazer parte de um sindicato;” (art. 1.2).

[5] A garantia da liberdade de associação sindical também pode ser encontrada no art. 5º, incisos XVII e XX, da CRFB. É, também, assegurada na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (arts. 20.2, 23.4 e 28) e no Pacto de San José da Costa Rica (art. 16). Além do mais, o “atentado contra a liberdade de associação” é conduta tipificada no Código Penal, em seu art. 199. (JORGE NETO E CAVALCANTE, 2019, p. 1.319).

[6] “O assédio sexual pode ser definido como toda conduta sexual indesejada, que ocorra de forma pontual ou reiterada, e resulte, ou possa resultar, em danos sociais, psicológicos, econômicos e/ou pessoais à vítima. Essas condutas podem ser físicas, verbais, comportamentais, pessoais, presenciais, à distância (cyber assédio), piadas, conversas de conteúdo sexual, convite de natureza sexual, mensagens eletrônicas, entre outros. De forma geral, assédio sexual laboral é o assédio sexual que acontece no ambiente de trabalho” Definição extraída da palestra “Assédio Sexual Laboral”, ministrada pela Desembargadora do Trabalho, Dr.ª Maria de Lourdes Leiria, no dia 24 de junho de 2020, na Semana Acadêmica de Direito da Unisociesc.

[7] No filme, Rubem, um dos personagens que trabalham com Maya, ao ser menosprezado pelos transeuntes do prédio, diz a seguinte frase: “Você conhece a minha tese sobre os nossos uniformes? Quando os colocamos, ficamos invisíveis”. A invisibilidade é o lugar onde estão os marginalizados. É neste lugar que o filme retrata os imigrantes, em especial os latinos.

[8] “Na iniciativa privada, a empresa tomadora tem o dever de fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa escolhida. É o desdobramento da responsabilidade civil quanto às relações do trabalho, por meio da culpa in eligendo e in vigilando. Deve solicitar, mensalmente, a comprovação quanto aos recolhimentos previdenciários, fiscais e trabalhistas” (JORGE NETO E CAVALCANTE, 2019, p. 422).

[9] JORGE NETO E CAVALCANTE, 2019, p. 422.

[10] MARTINS, 2011, apud BERNARDES e FREIRE, 2012, p. 2.

[11] “O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial” Súmula nº 331, IV, do TST.

[12] Um retorno à origem etimológica da palavra: “TRABALHO: do latim, TRIPALIU, instrumento de tortura, consiste num gancho de três pontas, cuja função é a evisceração ou a retirada e exposição das tripas, região de intensa dor e de lenta agonia. Foi criado e utilizado durante a Inquisição” (BONZATTO, 1998, p. 1).

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