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A cultura da violência e o feminicídio.

Por Tammy Fortunato* e Alexandre Carrinho Muniz**.

 

A morte de mulheres, pelo fato primordial de serem mulheres, infelizmente não é uma circunstância nova na história do mundo. Há várias passagens acerca do homicídio de mulheres por essa razão (serem mulheres), mas podemos destacar aquelas ocorridas nos campos algodoeiros, em Ciudad Juarez, no México, nos anos 90, quando tais atos, motivados pela circunstância de muitas mulheres obterem emprego, em detrimento de homens (já que se pagava um salário menor), o que não era admitido pela comunidade machista da época, eram praticados de forma qualitativa e quantitativamente espantosa e, o que é pior, sem qualquer atitude do Estado na responsabilização, promovendo a impunidade e estimulando a violência contra a mulher.

O termo femicídio, que derivou o feminicídio, tem sua raiz etimológica para além do homicídio de uma mulher por ela ser mulher; traz em si, também, a histórica omissão do Estado na tomada de providências de natureza preventiva e repressiva contra essa violência.

Se os estudos sobre tal fenômeno levaram tempo demais para que surtissem resultados, é certo que a ação do Estado levou muito mais tempo para que tomasse as providências necessárias a, ao menos, fazer diminuir a epidemia da violência contra as mulheres, começando pela conscientização da equidade de gênero (preferimos o termo equidade, que revela as diferenças essenciais que devem ser levados em consideração, pois os iguais devem ser tratados igualmente, e os desiguais, desigualmente, na medida de sua desigualdade).

Trezes anos depois de uma lei de combate à violência contra a mulher, e cinco anos após a vigência da lei do feminicídio (13.104/15), o que temos ainda é um lamentável crescimento no número de mulheres assassinadas, muitas vezes de modo cruel, por homens que se utilizam do ciúme, da posse, e por incrível que possa parecer, do amor, para justificar seus atos.

O advento da lei 13.104/15 foi importante não só para punir de modo mais rigoroso homens que matam suas companheiras ou ex companheiras, mas principalmente, para demonstrar o grande número de mulheres assassinadas por sua condição de gênero, cujos números passou a se contabilizar.

A estatística do feminicídio ficou, por muito tempo, perdida dentre os vários casos de homicídio na história brasileira, confundindo-se com as mortes no trânsito, em bares ou brigas, e as premeditadas por qualquer outra razão. Mas é o feminicídio que, dentre todas as mortes, causa as maiores chagas sociais, pois revelam a covardia do homem quando quer impor à mulher sua (falsa) superioridade. E o que é pior, por muito tempo aplaudido (ainda que em silêncio), por homens e mulheres.

Mulheres são vítimas de homens que não aceitam um não, um término, um ponto final. A frase popular “se não for minha, não será de mais ninguém”, retrata uma realidade de posse, esquecendo-se o homem que ninguém é dono de ninguém, que não há posse ou propriedade que atinja pessoas.

Na realidade, a ideia de posse ou propriedade sobre uma mulher remete aos tempos antigos, do patriarcado, época em que mulheres eram vistas como patrimônio do pai, irmãos e marido, até porque leis não eram feitas para mulheres.

O patriarcado, assim como a ideia de propriedade/posse da mulher pelo marido, ainda tem grande influência na sociedade atual. Scardueli[i], trata que : “A educação, no sistema patriarcal, que ainda exerce forte influência nas relações de gênero, associa as mulheres ao casamento, que deverá ser para sempre; à maternidade; ao isolamento no lar, onde ela ficará afastada, isolada do mundo exterior, guardada em domínio privado, do marido, provavelmente.”

O tempo passou e as leis mudaram, mas a ideia da posse/propriedade das mulheres pelos homens ainda precisa mudar. As mulheres já mudaram. Ganharam autonomia, independência (financeira e emocional), são donas de seus destinos de suas vidas, mas o pensamento de muitos homens ainda ficou para trás, ainda é arcaico.

Embora a Constituição da República, traga em, seu artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, garantindo igualdade de direitos e, inclusive o direito a vida, as mulheres em pleno século XXI, ainda precisam de uma lei específica para ter o seu direito mais valioso protegido, o direito a vida.

A lei do feminicídio prevê punições mais rigorosas quando mulheres são mortas por sua condição de gênero. Para Lima[ii], “A lei busca ser, antes de mais nada, um instrumento para coibir a impunidade, pois as taxas de violência contra a mulher são resultados de tolerância e negligência”.

Mulheres buscam ajuda do Estado para tentar ficar livre da violência a que são submetidas, mas que têm seus apelos segregados pela omissão e negligência, daquele que de alguma forma deveria protegê-la, já que prega a dignidade da pessoa humana, em sua Carta Magna.

Quantas mulheres foram mortas depois de registrarem inúmeros boletins de ocorrência, sem que nada fosse feito por aquele de deveria garantir a sua dignidade, o seu bem maior, a vida? O Estado, por muitas vezes, ignora o clamor de socorro feito por uma mulher.

Infelizmente a violência institucional, aquela praticada por agentes do Estado, seja por ação ou por omissão, ainda impede uma boa resolução dos problemas enfrentados nessa seara.

Mulheres vítimas de feminicídio já experimentaram todas as fases do ciclo da violência, até que, infelizmente, encontraram um ponto final. Mulheres que sofreram graves violências, não só emocionais, mas principalmente, físicas.

Via de regra, o feminicídio é o ápice da violência contra a mulher, quando o covarde agressor ainda procura impor seus caprichos, distendendo tanto quanto possível os limites do tratamento, a começar pela submissão, desprezo, humilhação, passando pelas ameaças e agressões (das mais leves às mais graves) e, finalmente, chegando à morte daquela mulher que se pretendeu objeto o tempo todo.

Na ideia de Lima, as principais vítimas de feminicídio são aquelas que cansaram de acreditar na mudança do parceiro ou ex parceiro: “A mulher vítima de feminicídio é aquela que decide pôr um fim ao relacionamento abusivo ou na agressão manifesta, aquela que reage, quando a mulher, por exemplo, não aceita a condição de subserviente”.[iii]

É preciso entender o significado da palavra não, aceitar o livre arbítrio das mulheres, compreender que não existe posse/propriedade sobre quem quer que seja, que todos são livres.

Essa tripla conscientização, dos meninos de que a mulher deva ser respeitada em todos os termos, e das meninas que não aceitem, jamais, qualquer espécie de limitação de sua liberdade de agir e pensar, e dos terceiros, que jamais sejam coniventes com tais atitudes, aliado a um agir eficiente do Estado, certamente fará, ainda que a passos mais lentos do que gostaríamos, mudar a sociedade, diminuindo essas pavorosas distinções entre homem e mulher e, como um motor mais forte, fazendo cair o número de casos de violência e feminicídio.

Se cada casal possui diferenças no relacionamento, certamente há inúmeros caminhos para resolução de tais diferenças, mas nenhum deles deve passar, de modo algum, pela prática da imposição de pensamento e atuação, com viés violento e agressivo.

Aceitar as diferenças, respeitar as opiniões e, principalmente, respeitar as decisões daquelas que dizemos amar, é o caminho para o fim do feminicídio.

 

Referência bibliográfica:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal. 19ªed. Saraiva. São Paulo: Saraiva, 1988.

LIMA, Ilana D. M. Da Cunha, Júnior José Flôr de M., Guimarães Daniel. A violência contra a mulher: o enfrentamento à violência contra a mulher como forma de garantia dos direitos humanos e fundamentais: uma análise das legislações brasileira e espanhola.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

SCARDUELI. Márcia Cristiane Nunes. LEI MARIA DA PENHA E A VIOLÊNCIA CONJUGAL: discursos, sujeitos e sentidos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2018.

[i] Scardueli. 2018, p.82

[ii] Lima. 2017, p. 77

[iii] Lima. 2017,p.77

 

*Tammy Fortunato, Advogada inscrita na OAB/SC sob o nº 17.987 e Presidente da Comissão de Combate às Violências Contra a Mulher do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC, e pós graduada em Direito e Negócios Internacionais.

**Alexandre Carrinho Muniz, Promotor de Justiça em Santa Catarina, Diretor da Escola do Ministério Público, e Mestre em Ciência Jurídica.

 

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