O Paradoxo do Direito na Era Digital: Inovação Bilionária ou Código de Ostentação?
Por Pedro Pirajá Martins – Membro Efetivo do IASC.
Vivemos tempos de aceleração exponencial, onde a tecnologia redefine setores inteiros em ciclos cada vez mais curtos. O Direito, tradicionalmente percebido como um bastião de estabilidade e formalismo, não está imune a essa força transformadora. Pelo contrário, testemunhamos uma revolução silenciosa, porém profunda, que redesenha a prática jurídica, a gestão de escritórios e departamentos, e até mesmo o acesso à justiça. Como especialista em Direito, Inovação e Tecnologia atuando no SEBRAE de Santa Catarina, um estado reconhecido por seu vibrante ecossistema de inovação, tenho acompanhado de perto essa metamorfose e percebo um paradoxo intrigante que merece a atenção urgente das entidades que moldam o futuro da nossa profissão.
De um lado, floresce um ecossistema pulsante de legaltechs e lawtechs. Empresas como a catarinense Softplan, que recentemente adquiriu a Oystr, especializada em automação jurídica, não apenas exemplificam essa tendência, mas também sinalizam a magnitude econômica do movimento ao mirar uma receita líquida de R$ 1 bilhão até 2025 [1]. Essas organizações, muitas delas startups ágeis e focadas, estão identificando dores reais do mercado – a morosidade processual, a complexidade da gestão documental, a necessidade de análise de dados para decisões estratégicas – e desenvolvendo soluções tecnológicas sofisticadas, baseadas em inteligência artificial, automação e jurimetria. Elas não estão apenas otimizando tarefas; estão criando novos modelos de negócio, gerando eficiência e, potencialmente, democratizando serviços antes restritos.
Do outro lado desse cenário, observamos entidades tradicionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), direcionando energia e recursos para debates que, embora possam ter sua relevância deontológica, parecem tangenciar as questões mais disruptivas da atualidade. A recente discussão sobre a criação de um código “anti-ostentação” para regular a conduta de advogados em redes sociais [2] é um exemplo emblemático desse paradoxo. Enquanto um ecossistema movimenta cifras bilionárias e redefine a própria essência da prática jurídica, a preocupação central de alguns parece residir na forma como os profissionais expõem (ou não) seu sucesso material online.
Este contraste levanta uma questão fundamental e inescapável: onde deveria estar o foco prioritário das instituições que representam e regulam a advocacia brasileira? Estamos dedicando a devida atenção à adaptação necessária frente à inteligência artificial generativa, às novas competências exigidas dos operadores do direito, às oportunidades de usar a tecnologia para ampliar o acesso à justiça e fomentar a inovação ética? Ou corremos o risco de nos perdermos em debates secundários enquanto a maré da transformação digital avança implacavelmente? Este artigo busca provocar uma reflexão crítica sobre esse paradoxo, convidando as entidades ligadas ao Direito a um diálogo mais profundo e estratégico sobre o futuro que já bate à nossa porta.
A Revolução Silenciosa: O Ecossistema Legaltech e a Disrupção Bilionária
Enquanto alguns debates parecem circunscrever as bordas da profissão, o núcleo da prática jurídica está sendo reconfigurado por uma força motriz inegável: a inovação tecnológica capitaneada pelo ecossistema de *legaltechs*. Longe de ser uma tendência passageira, estamos falando de um mercado em franca expansão, com projeções que impressionam e investimentos que validam seu potencial disruptivo. Dados da Future Market Insights indicam que o mercado global de tecnologia jurídica deve atingir a marca de US$ 29,60 bilhões em 2024, com uma estimativa ainda mais audaciosa de alcançar US$ 68,04 bilhões até 2034 [3, 4]. No Brasil, o cenário não é diferente. Desde a fundação da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L) em 2017, o número de empresas associadas explodiu, registrando um crescimento superior a 300% [3, 4], um testemunho da vitalidade e do dinamismo desse setor em nosso país.
Esse crescimento não é apenas numérico, mas também financeiro. Aportes significativos e movimentos estratégicos de fusões e aquisições (M&A) tornaram-se comuns, sinalizando a confiança do mercado no valor gerado por essas empresas. Vimos investimentos robustos, como os R$ 126 milhões captados pela NetLex [3], e aquisições estratégicas que redesenham o cenário competitivo, como a compra da Oystr pela Softplan [1], ou da Deeplegal pela mesma Softplan [3], e da D4Sign pela Zuchetti [3]. Esses movimentos não são meras transações financeiras; são a consolidação de um novo paradigma onde a tecnologia é peça central na entrega de serviços jurídicos.
A força motriz por trás desse ecossistema bilionário reside na sua capacidade de oferecer soluções concretas para desafios históricos da área jurídica. As *legaltechs* estão focadas em otimizar o que antes era moroso, custoso e complexo. Elas desenvolvem softwares para gestão inteligente de contratos e processos, plataformas que automatizam tarefas repetitivas (como o acompanhamento de intimações eletrônicas e alimentação de sistemas, especialidade da Oystr [1]), ferramentas de jurimetria que permitem análises preditivas sobre o desfecho de litígios, e soluções baseadas em Inteligência Artificial que podem analisar volumes massivos de documentos em minutos, algo impensável há poucos anos [4]. A IA generativa, em particular, promete acelerar ainda mais essa transformação, aumentando a eficiência operacional na criação de documentos e na análise de dados legais [4].
Os benefícios são tangíveis e multifacetados. Para escritórios e departamentos jurídicos, a adoção dessas tecnologias representa um salto em eficiência, permitindo que advogados dediquem mais tempo a atividades estratégicas e de maior valor agregado, em vez de se perderem em tarefas operacionais [1]. Há uma clara redução de custos e um aumento na precisão do trabalho. Para as empresas, soluções como as oferecidas pela DeltaAI, que utiliza IA e jurimetria para *prevenir* litígios [3], representam uma mudança de paradigma na gestão de riscos. E, em uma perspectiva mais ampla, a tecnologia tem o potencial de tornar os serviços jurídicos mais acessíveis, quebrando barreiras e democratizando o acesso à justiça. Em Santa Catarina, berço da Softplan, vemos como a tecnologia pode não apenas otimizar o setor privado, mas também modernizar a gestão pública e o próprio Judiciário, áreas onde a empresa construiu sua sólida reputação inicial [1]. Essa revolução silenciosa, portanto, não é apenas sobre software; é sobre reimaginar fundamentalmente como o Direito opera e serve à sociedade.
O Debate Regulatório: A OAB e o Código “Anti-Ostentação”
Em paralelo à efervescência tecnológica que transforma o mercado jurídico de dentro para fora, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) direciona parte de seus esforços regulatórios para uma questão comportamental amplificada pela era digital: a ostentação de advogados nas redes sociais. A entidade anunciou a intenção de lançar, ainda em 2025, um código de conduta específico, apelidado de “anti-ostentação”, com o objetivo de coibir o que considera excessos na exposição online e práticas predatórias de captação de clientela [2].
Essa iniciativa surge como uma atualização do “plano de marketing jurídico nacional”, cuja última revisão data de 2022, buscando adaptar as normas deontológicas às novas realidades impostas pelas plataformas digitais [2]. Segundo o presidente da OAB, Beto Simonetti, centenas de procedimentos disciplinares já foram instaurados em todo o país para apurar posturas consideradas inadequadas na internet. A preocupação central, conforme declarado, é que as redes sociais não se tornem um palco para a promessa de soluções milagrosas, a exibição exagerada de bens materiais ou a transmissão de uma “sensação de riqueza” que possa iludir clientes ou desrespeitar a sobriedade inerente à profissão [2].
Os argumentos apresentados pela liderança da OAB para justificar a criação desse código se ancoram na necessidade de preservar a dignidade da advocacia. Afirma-se que a “hiperexposição” da vida pessoal e profissional por alguns advogados, quase como um reality show, deve ser contida [2]. Busca-se, com a nova regulamentação, garantir que a publicidade profissional respeite os limites éticos, sem mercantilizar a advocacia de forma excessiva e, crucialmente, sem “ofender o brio daqueles que ainda não conseguiram atingir a estabilidade financeira” [2]. Trata-se, portanto, de uma tentativa de balizar o marketing jurídico digital, estabelecendo parâmetros para o que é considerado aceitável em termos de autopromoção e imagem pública no ambiente online.
Embora a preocupação com a ética na publicidade e a prevenção da captação indevida de clientes sejam legítimas e necessárias em qualquer profissão, especialmente em uma com o múnus público da advocacia, a ênfase dada a um código “anti-ostentação” em um momento de transformação tecnológica tão profunda convida a uma análise mais crítica sobre as prioridades e o foco da entidade.
O Contraste Provocativo: Foco na Forma ou na Transformação?
A justaposição dessas duas realidades – de um lado, um mercado de inovação jurídica vibrante, capitalizado, focado em resolver problemas estruturais e gerar eficiência através da tecnologia; do outro, a principal entidade representativa da advocacia debatendo a regulamentação da aparência de sucesso nas redes sociais – é, no mínimo, desconcertante. Não se trata de invalidar a importância da ética e da conduta profissional, pilares essenciais da advocacia. A questão reside na alocação de energia, atenção e recursos em um momento histórico que exige um olhar estratégico e adaptativo para transformações muito mais profundas e impactantes.
Enquanto o ecossistema *legaltech* avança a passos largos, impulsionado por investimentos bilionários e pela adoção crescente de Inteligência Artificial, automação e análise de dados [1, 3, 4], a discussão sobre o código “anti-ostentação” parece focar excessivamente na “forma” em detrimento do “conteúdo” da transformação em curso. Será que a preocupação com a imagem projetada por alguns advogados online não estaria ofuscando debates mais urgentes e estratégicos para o futuro da profissão? Questões como o impacto real da IA generativa na produção de peças processuais, na pesquisa jurisprudencial e na própria natureza do trabalho intelectual do advogado não mereceriam um lugar de maior destaque na agenda das entidades de classe?
Onde estão as discussões aprofundadas sobre as novas competências – tecnológicas, analíticas, de gestão – que serão indispensáveis para os advogados que desejam prosperar nesse novo cenário? Como podemos, enquanto classe, utilizar as ferramentas tecnológicas emergentes não apenas para otimizar escritórios, mas para efetivamente ampliar o acesso à justiça, tornando os serviços jurídicos mais eficientes e acessíveis para a população? Como fomentar um ambiente de inovação ética *dentro* da própria advocacia, incentivando os profissionais a desenvolverem soluções criativas para os desafios do dia a dia, em vez de apenas reagir às soluções que vêm de fora?
A impressão que fica é que, enquanto se tenta polir a “vitrine” – a imagem pública do advogado nas redes sociais –, a “loja” – o próprio exercício da profissão, suas ferramentas, seus processos e seu modelo de negócio – está sendo radicalmente reestruturada por forças de mercado e avanços tecnológicos que não pedirão licença para entrar. A pergunta que ecoa é: as entidades tradicionais estão se preparando para liderar, ou ao menos participar ativamente dessa reestruturação, ou estão se contentando em regular as aparências, correndo o risco de se tornarem espectadoras passivas da maior transformação que o Direito já enfrentou? A energia gasta em definir os limites da “ostentação” não seria mais bem empregada na construção de pontes com o ecossistema de inovação, na capacitação dos advogados para a era digital e na formulação de estratégias para garantir que a tecnologia sirva aos propósitos fundamentais da justiça?
Conclusão: Um Chamado à Ação para o Futuro do Direito (Visão SEBRAE/SC)
O cenário está posto, e a encruzilhada é clara. O futuro do Direito não será definido apenas por códigos de conduta que regulam a superfície, mas pela capacidade de adaptação, inovação e visão estratégica frente às transformações tecnológicas que já remodelam profundamente a prática jurídica e o mercado. Como representante de uma entidade como o SEBRAE/SC, que tem no seu DNA o fomento ao empreendedorismo e à inovação, vejo com clareza a urgência de um engajamento mais proativo e construtivo das entidades que representam a advocacia com essa nova realidade.
É imperativo que a OAB e outras instituições do setor jurídico passem a enxergar o vibrante ecossistema de *legaltechs* não como uma ameaça existencial ou um mero objeto de regulamentação distante, mas como uma fonte rica de aprendizado, colaboração e oportunidades. Precisamos construir pontes, não muros. Promover o diálogo entre a advocacia tradicional, com sua expertise jurídica e deontológica insubstituível, e os empreendedores de tecnologia, com sua agilidade e foco na solução de problemas, é fundamental para que a inovação ocorra de forma ética, sustentável e que beneficie a todos – profissionais, clientes e a sociedade.
Este é também um chamado aos próprios operadores do Direito. A postura reativa não é mais suficiente. É preciso cultivar uma mentalidade mais empreendedora, estar atento às dores do mercado, identificar oportunidades de melhoria nos processos e, quem sabe, desenvolver ou adotar soluções inovadoras. A tecnologia não é um fim em si mesma, mas uma ferramenta poderosa que, se bem utilizada, pode potencializar a capacidade intelectual do advogado, otimizar sua atuação e ampliar seu alcance.
O SEBRAE de Santa Catarina, inserido em um dos polos de tecnologia mais dinâmicos do país, reafirma seu compromisso em apoiar os profissionais e escritórios de advocacia nesse processo de adaptação e transformação digital. Oferecemos programas, consultorias e conexões que podem auxiliar na incorporação de novas tecnologias, na melhoria da gestão e na exploração de novos modelos de negócio. Acreditamos que a inovação é um caminho essencial para a sustentabilidade e o crescimento da advocacia no século XXI.
Portanto, o convite final que deixo às entidades e aos colegas de profissão é: vamos direcionar nosso foco e nossa energia para o que realmente importa. É hora de discutir menos a “ostentação” e mais a reinvenção. É tempo de abraçar a inovação não como um modismo, mas como a chave para um futuro onde o Direito se mantenha relevante, eficiente e acessível na era digital. O futuro da advocacia depende da nossa capacidade de olhar para frente, aprender, adaptar e, sobretudo, inovar.
Referências:
[1] Softplan compra Oystr, de automação jurídica, e mira receita de R$ 1 bilhão | Exame. Disponível em: https://exame.com/negocios/softplan-compra-oystr-de-automacao-juridica-e-mira-receita-de-r-1-bilhao/ (Acesso em 30 de abril de 2025).
[2] OAB vai lançar código “anti-ostentação” em redes sociais | CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/oab-vai-lancar-codigo-anti-ostentacao-em-redes-sociais/ (Acesso em 30 de abril de 2025).
[3] Legaltechs redefinem o mercado jurídico com tecnologia e investimentos – Portal Fusões & Aquisições. Disponível em: https://fusoesaquisicoes.com/acontece-no-setor/legaltechs-redefinem-o-mercado-juridico-com-tecnologia-e-investimentos/ (Acesso em 30 de abril de 2025).
[4] O papel da IA na popularização de LegalTechs no Brasil – Mattos Filho. Disponível em: https://www.mattosfilho.com.br/unico/ia-popularizacao-legaltechs-brasil/ (Acesso em 30 de abril de 2025).