ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS: o prazo para purgar a mora e a recente afetação do Tema 1288 no STJ.
Por Hélio Ricardo Diniz Krebs* – Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Advogado.
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS: o prazo para purgar a mora e a recente afetação do Tema 1288 no STJ.
1 – BREVE INTRODUÇÃO.
Em 12/07/2017 foi publicada e entrou em vigor a Lei 13.465/17, que estabeleceu diversas mudanças na Lei 9.514/97, que trata da alienação fiduciária de bens imóveis.
Até a entrada em vigor da Lei 13.465/17, a Lei 9.514/97 previa que a mora poderia ser purgada até o prazo de 15 dias contados da intimação prevista no art. 26, § 1º ou, mesmo que ultrapassado esse prazo e consolidada a propriedade em nome do credor fiduciário, até a assinatura da carta de arrematação, conforme previa o art. 39, II, que determinava a aplicação das disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.
Tal entendimento decorria não apenas da própria lei, como também da interpretação dada aos mencionados dispositivos legais, de forma pacífica, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ocorre que, a Lei 13.465/17 alterou o inciso II do art. 39 da Lei 9.514/97, para retirar a aplicação das normas dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70/66 aos contratos de alienação fiduciária de imóveis, mantendo-se tal aplicação “exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca”.
Além disso, a Lei 13.465/17 também incluiu o § 2º-B ao art. 27 da Lei 9.514/97, prevendo que, “Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida […]” e demais encargos incidentes sobre o imóvel.
Portanto, como se pode perceber, a Lei 13.465/17 de fato excluiu a possibilidade de o devedor purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, porém, conferindo-lhe o direito o direito de preferência para adquirir o imóvel até a data da realização do segundo leilão, pelo valor integral da dívida, mais os encargos incidentes sobre o imóvel.
A partir de então, tem-se observado intensa controvérsia no tocante à incidência da lei nova, ou seja, do novo inciso II do art. 39 da Lei 9.514/97, sobre os contratos pactuados sob a égide da lei anterior, o que implicaria na possibilidade ou não, de purgação da mora até a assinatura da carta de arrematação.
Embora se trate de alteração legislativa ocorrida há mais de 7 anos, os problemas relacionados à doutrina da irretroatividade das leis fazem com que tais mudanças traduzam-se em controvérsias atuais e relevantíssimas, seja em razão dos contratos ainda em vigor que foram pactuados antes de 12/07/2017, ou mesmo pelos processos que continuam tramitando e que possuem tal controvérsia como objeto, especialmente, porque estão em jogo direitos fundamentais como a moradia e a propriedade.
Buscando uniformizar a jurisprudência sobre a matéria, recentemente, no dia 15/10/2024, a 2ª Seção do STJ afetou o REsp nº 2.126.726/SP à sistemática dos recursos repetitivos (TEMA 1.288), delimitando a seguinte questão controvertida a ser dirimida e pacificada: “Definir se a alteração introduzida pela Lei nº 13.465/2017 ao art. 39, II, da Lei nº 9.514/97 tem aplicação restrita aos contratos celebrados sob a sua vigência, não incidindo sobre os contratos firmados antes da sua entrada em vigor, ainda que constituída a mora ou consolidada a propriedade em momento posterior ao seu início de vigência”.
O presente artigo se propõe a analisar essa questão à luz, especialmente, da doutrina da irretroatividade das leis e dos direitos fundamentais representados pelos institutos do ato jurídico perfeito e do direito adquirido (art. 5º, XXXVI da CF), bem como da teoria da base objetiva do negócio jurídico.
2 – O PRAZO PARA PURGAÇÃO DA MORA E A INCIDÊNCIA DA LEI 13.465/17 AOS CONTRATOS PACTUADOS ANTES DE SUA ENTRADA EM VIGOR, DE ACORDO COM O STJ: A AFETAÇÃO DO RESP Nº 2.126.726/SP AO RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS (TEMA 1288).
De acordo com o procedimento previsto no art. 26, §§ 1º e 7º da Lei 9.514/97, tem-se que, vencida e não paga a dívida, a pedido do credor fiduciário, o devedor, ou terceiro fiduciante, será intimado para purgar a mora no prazo de 15 dias, findo o qual a propriedade do bem será consolidada em nome do fiduciário. Embora referidos dispositivos tenham sofrido alterações pontuais de texto ao longo dos anos, o procedimento neles previsto sempre foi o mesmo.
Ocorre que, ainda que ultrapassado o mencionado prazo de 15 dias e consolidada a propriedade do bem em nome do fiduciário, o art. 39, II da Lei 9.514/97[1], com a redação vigente até antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17, previa que ao contrato de alienação fiduciária de bem imóvel aplicavam-se as disposições dos artigos 29 a 41 do Decreto-lei nº 70/66.
Por sua vez, o artigo 34 do Decreto-lei nº 70/66 dispõe que é facultado ao devedor, a qualquer momento até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, com os acréscimos legais.
Em razão disso, o entendimento pacífico nas 3ª e 4ª Turmas do STJ era no sentido de ser facultado ao devedor a purgação da mora até o momento da assinatura da carta de arrematação, senão veja-se:
3ª TURMA
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. LEI Nº 9.514/1997. PURGAÇÃO DA MORA APÓS A CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM NOME DO CREDOR FIDUCIÁRIO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO DECRETO-LEI Nº 70/1966. PRECEDENTE ESPECÍFICO DESTA TERCEIRA TURMA.
“O devedor pode purgar a mora em 15 (quinze) dias após a intimação prevista no art. 26, § 1º, da Lei nº 9.514/1997, ou a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação (art. 34 do Decreto-Lei nº 70/1966). Aplicação subsidiária do Decreto-Lei nº 70/1966 às operações de financiamento imobiliário a que se refere a Lei nº 9.514/1997.” (REsp 1462210/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 25/11/2014) 2. Alegada diversidade de argumentos que, todavia, não se faz presente.
AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (AgInt no REsp n. 1.567.195/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 30/6/2017.)
4ª TURMA
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL E CONTRATO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. PURGAÇÃO DA MORA EFETUADA POR DEPÓSITO JUDICIAL. POSSIBILIDADE DE REMISSÃO DA DÍVIDA ATÉ LAVRATURA DO AUTO DE ARREMATAÇÃO. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
O entendimento da Corte de origem encontra-se em harmonia com a jurisprudência sedimentada neste Sodalício no sentido de ser cabível a purgação da mora pelo devedor, mesmo após a consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário. 2. A jurisprudência do STJ, entende “que a purgação pressupõe o pagamento integral do débito, inclusive dos encargos legais e contratuais, nos termos do art. 26, § 1º, da Lei nº 9.514/97, sua concretização antes da assinatura do auto de arrematação não induz nenhum prejuízo ao credor. Em contrapartida, assegura ao mutuário, enquanto não perfectibilizada a arrematação, o direito de recuperar o imóvel financiado, cumprindo, assim, com os desígnios e anseios não apenas da Lei nº 9.514/97, mas do nosso ordenamento jurídico como um todo, em especial da Constituição Federal.” (REsp 1433031/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 18/06/2014) 3. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp n. 1.132.567/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 6/11/2017.)
Vale ressaltar que, tal entendimento vinha sendo aplicado pelo STJ, inclusive, em julgados realizados poucos anos depois da entrada em vigor da Lei 13.465/17, ainda que sem enfrentamento da questão de direito intertemporal. Nesse sentido: AgInt no AREsp n. 1.366.880/PR, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 26/2/2019, DJe de 1/3/2019; AgInt no AREsp n. 1.286.812/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 10/12/2018, DJe de 14/12/2018.
Pois bem. Como já enfatizado, a Lei 13.465/17 alterou o inciso II do art. 39 da Lei 9.514/97, para retirar a aplicação das normas dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70/66 aos contratos de alienação fiduciária de imóveis, mantendo-se tal aplicação “exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca”, bem como incluiu o § 2º-B ao art. 27 da Lei 9.514/97, assegurando ao devedor o direito de preferência para adquirir o imóvel pelo valor integral da dívida e demais encargos incidentes sobre o bem, até a data da realização do segundo leilão.
Portanto, a Lei 13.465/17 de fato excluiu a possibilidade de o devedor purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, porém, conferindo-lhe o direito de preferência para adquirir o imóvel até a data da realização do segundo leilão (direito este que se manteve assegurado pela redação dada ao referido § 2º-B pela Lei 14.711/23).
A partir de então, deu-se início a controvérsias e divergências jurisprudenciais no tocante à incidência da lei nova, ou seja, do novo inciso II do art. 39 da Lei 9.514/97, sobre os contratos pactuados sob a égide da lei anterior, o que implicaria na possibilidade ou não, de purgação da mora até a assinatura da carta de arrematação.
Em razão disso, em 10/12/2018, o TJSP admitiu a instauração de Incidente de Resolução de Demandas – IRDR sobre o tema, que recebeu o nº 26 e foi julgado em 25/11/2019, porém, tendo o respectivo acórdão sido publicado apenas em 21/01/2022.
Naquela oportunidade, o TJSP definiu a seguinte tese: “A alteração introduzida pela Lei nº 13.465/2017 ao art. 39, II, da Lei nº 9.514/97 tem aplicação restrita aos contratos celebrados sob a sua vigência, não incidindo sobre os contratos firmados antes da sua entrada em vigor, ainda que constituída a mora ou consolidada a propriedade, em momento posterior ao seu início de vigência”.
A instituição financeira sucumbente (Banco Santander) e diversas entidades que atuam em defesa dos interesses de credores fiduciários (ABECIP[2], ABRAINC[3], FEBRABAN[4] e SECOVI-SP[5]) interpuseram Recurso Especial contra o referido acórdão do IRDR, que foi autuado no STJ sob o nº 1.942.898/SP[6]. Em 09/06/2021, o então Presidente da Comissão Gestora de Precedente, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, qualificou os Recursos Especiais como representativos da controvérsia e, em 11/10/2021, determinou a distribuição do processo “com fundamento no art. 256-D, inciso II, e 256-H do RISTJ, c/c o inciso I do art. 2º da Portaria STJ/GP n. 98, de 22 de março de 2021 (republicada no DJe de 24 de março de 2021)”.
O processo foi distribuído ao Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva que, considerando não estar devidamente madura a discussão sobre matéria no âmbito do STJ, “sobretudo porque carece de pronunciamento colegiado no âmbito da Quarta Turma sobre o mérito da questão repetitiva”, nos termos do art. 256-E, I, do RISTJ, rejeitou a indicação dos Recursos Especiais para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos e determinou a conclusão dos autos para julgamento no âmbito da 3ª Turma.
Posteriormente, vislumbrando o caráter impositivo do efeito vinculante do julgamento do recurso especial interposto contra acórdão que julga o mérito do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, a 3ª Turma afetou o caso à 2ª Seção do STJ para julgamento, porém, fora do rito dos recursos repetitivos, muito embora o art. 256-H do RISTJ determine que “Os recursos especiais interpostos em julgamento de mérito do incidente de resolução de demandas repetitivas serão processados nos termos desta Seção […]”, que trata justamente dos REsp´s Representativos da Controvérsia.
Tendo em vista que, naquele caso concreto, a consolidação da propriedade havia ocorrido em 14/05/2018 – portanto, após a entrada em vigor da Lei 13.465/17 -, o STJ assim delimitou a controvérsia: “O propósito recursal cinge-se a definir a possibilidade de purgação da mora, nos contratos de mútuo imobiliário com pacto adjeto de alienação fiduciária, submetidos à Lei nº 9.514/1997 com a redação dada pela Lei nº 13.465/2017, nas hipóteses em que a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário ocorreu na vigência da nova lei”.
Na fundamentação do referido acórdão, reconheceu-se a ausência de precedentes específicos sobre a questão no âmbito da 4ª Turma. Entretanto, tomou-se como ponto de partida para a conclusão a ser adotada, o fato de que a 3ª Turma já possuía entendimento consolidado sobre a matéria, que foi inaugurado por ocasião do julgamento do REsp nº 1.649.595/RS[7], de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, ocorrido em 13/10/2020, em que restaram fixadas as seguintes teses: “i) antes da entrada em vigor da Lei n. 13.465/2017, nas situações em que já consolidada a propriedade e purgada a mora nos termos do art. 34 do Decreto-Lei n. 70/1966 (ato jurídico perfeito), impõe-se o desfazimento do ato de consolidação, com a consequente retomada do contrato de financiamento imobiliário; ii) a partir da entrada em vigor da lei nova, nas situações em que consolidada a propriedade, mas não purgada a mora, é assegurado ao devedor fiduciante tão somente o exercício do direito de preferência previsto no § 2º-B do art. 27 da Lei n. 9.514/1997.”
Desse modo, ao dar provimento aos Recursos Especiais do Banco Santander, da ABECIP, da ABRAINC, da FEBRABAN e do SECOVI-SP, o v. acórdão proferido pela 2ª Seção do STJ embasou-se, em suma, nos seguintes fundamentos:
Com efeito, a Lei nº 13.465, de 11/7/2017, introduziu o § 2º-B no art. 27 da Lei nº 9.514/1997, positivando o direito de preferência ao devedor fiduciante na aquisição do imóvel objeto de garantia fiduciária, a ser exercido após a consolidação da propriedade e até a data em que realizado o segundo leilão.
Assim, na esteira dos julgados supracitados, com a entrada em vigor da nova lei, não mais se admite a purgação da mora após a consolidação da propriedade em favor do fiduciário.
Na hipótese vertente, tendo sido proposta apenas em 13/6/2018 a demanda objetivando a suspensão do leilão (designado para o dia 28/6/2018), após, portanto, a consolidação da propriedade do bem em nome do credor fiduciário, ocorrida em 14/5/2018, não mais se afiguram aplicáveis as disposições do Decreto-Lei nº 70/1966, descabendo ao devedor fiduciante a purgação da mora, mas apenas o exercício do direito de preferência na aquisição do bem objeto da propriedade fiduciária.
Como visto, o STJ entendeu que o marco temporal divisório, em que passam a incidir as alterações promovidas pela Lei nº 13.465/17, seria a data da consolidação da propriedade, ocorrida após o transcurso do prazo de 15 dias (art. 26, § 1º), sem que o devedor ou o terceiro fiduciante tenha purgado a mora.
Ocorre que, muito embora tal acórdão possa estar virtualmente revestido de efeito vinculante, tal como previsto no art. 987, § 2º do CPC, o fato de o STJ não ter afetado o REsp em IRDR nº 1.942.898/SP ao rito dos recursos repetitivos fez com que a questão permanecesse gerando controvérsia nos tribunais estaduais, especialmente, no TJSP, que continuou aplicando a tese firmada no IRDR nº 26.
Em razão disso, recentemente, o Banco Santander interpôs Recurso Especial contra acórdão do TJSP, que foi admitido pela Presidência do referido tribunal estadual, sem que fosse determinado o juízo de retratação, uma vez que o acórdão proferido no Recurso Especial interposto contra a decisão de mérito tomada no IRDR não está previsto no art. 1.030, II do CPC.
No referido Recurso Especial, o Banco Santander sustentou que “sendo vinculante o entendimento firmado por essa Eg. Corte no REsp em IRDR nº. 1.942.898/SP (arts. 927 e 987 do CPC), deve ser aplicado em todos os casos em que se discute a possibilidade de purga da mora até ser lavrado o auto de arrematação, como ocorre na hipótese dos presentes autos. É imperioso, portanto, o provimento do Recurso Especial do Banco Santander, aplicando-se a tese firmada por essa Eg. Corte”.
Referido Recurso Especial foi autuado sob o nº 2.126.726/SP e inicialmente encaminhado à Presidência da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, por se tratar de recurso interposto contra acórdão que aplicou a tese fixada pelo TJSP no IRDR nº 26.
Ao receber o processo, o Ministro Rogério Schietti Cruz, então Presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, consignou que “A despeito da relevância do argumento (do Banco Santander), a questão é mais complexa do que sugere o recorrente. Faço lembrar, por oportuno, que, embora o art. 987, § 2º, do CPC estabeleça que a decisão proferida no julgamento de recurso especial em IRDR deverá ser aplicada em todo o território nacional, ela não foi expressamente elencada no rol de precedentes obrigatórios contidos no art. 927 do CPC, tampouco nas hipóteses previstas no art. 1.030, I e II, do CPC, para negativa de seguimento de recursos especiais sobre a mesma matéria e encaminhamento para juízo de retratação”.
Em seguida, em razão do recente julgamento da matéria pela 2ª Seção, o Ministro Rogério Schietti Cruz sugeriu que o processo fosse apresentado pelo relator “ao Plenário Virtual de afetação, sob a sistemática qualificada, com proposta de mera reafirmação, no próprio Plenário Virtual e no mesmo prazo, do entendimento fixado no REsp 1.942.898/SP”, bem como determinou a distribuição do recurso por prevenção ao REsp nº 1.942.898/SP.
O Recurso Especial nº 2.126.726/SP, portanto, foi distribuído ao Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (relator também do REsp nº 1.942.898/SP) que, ao tratar da proposta de afetação e da utilização do Plenário Virtual de afetação para mera reafirmação do que foi decidido no REsp em IRDR nº 1.942.898/SP, fez as seguintes ponderações:
Esperava-se, assim, que a jurisprudência fosse pacificada, pois tal recurso foi interposto contra acórdão proferido pelo TJSP em julgamento de IRDR e, portanto, a tese fixada deveria ser aplicada a todos os processos, conforme dispõe o art. 987, § 2°, do CPC:
[…]
Todavia, conforme anotado no despacho proferido pelo Presidente da COGEPAC, a decisão proferida naquele julgamento não está produzindo os efeitos previstos, especialmente porque não está incluída no rol do art. 927 do CPC (e-STJ fl. 677).
Não obstante o comando normativo impondo a observância da respectiva tese, os acórdãos proferidos em recursos excepcionais oriundos de IRDR não estão expressamente previstos no art. 1.030, I e II, do CPC, de forma que não se prestam a impedir o processamento de recursos dirigidos aos Tribunais Superiores.
[…]
Além disso, levando-se em conta o impacto dos precedentes vinculantes, a democratização dos debates e a representação adequada de todos os interesses envolvidos são essenciais para a legitimação das decisões que os produzem.
Nesse contexto, os amici curiae assumem relevante papel, pois, além de fornecerem subsídios importantes ao órgão julgador, atuam com a finalidade de garantir a formação de padrões decisórios favoráveis àqueles que representam.
[…]
Por essas razões e com a devida vênia, não se afigura adequada a solução proposta na indicação da afetação, no sentido de utilizar o Plenário Virtual para simples reafirmação da tese fixada no julgamento do REsp n° 1.942.898 (e-STJ fls. 680/681).
Ao final, a 2ª Seção, por unanimidade, acolheu o voto do relator para afetar o processo ao rito dos recursos repetitivos (RISTJ, art. 257-C), em julgamento realizado no dia 15/10/2024, delimitando a seguinte questão controvertida: “Definir se a alteração introduzida pela Lei nº 13.465/2017 ao art. 39, II, da Lei nº 9.514/97 tem aplicação restrita aos contratos celebrados sob a sua vigência, não incidindo sobre os contratos firmados antes da sua entrada em vigor, ainda que constituída a mora ou consolidada a propriedade em momento posterior ao seu início de vigência”.
Determinou-se, ainda, “a suspensão dos recursos especiais ou agravos em recursos especiais em segunda instância e/ou no STJ, cujos objetos coincidam com o da matéria afetada, observada a orientação do art. 256-L do RISTJ”.
A seguir, demonstrar-se-ão as razões que dão ensejo à revisão da tese fixada pelo STJ no acórdão do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP e até mesmo autorizam que juízes e tribunais deixem de aplicá-la, até que seja julgado o REsp Repetitivo nº 2.126.726/SP.
3 – DA AUSÊNCIA DE FORÇA VINCULANTE DA TESE FIRMADA NO RESP EM IRDR Nº 1.942.898/SP.
Como visto no tópico anterior, ao julgar o REsp nº 1.942.898/SP, que reformou o acórdão do TJSP proferido em sede de IRDR, a 2ª Seção do STJ acabou seguindo o entendimento que havia se consolidado na 3ª Turma e cuja tese fora firmada no acórdão do REsp nº 1.649.595/RS, nos seguintes termos:
i) antes da entrada em vigor da Lei n. 13.465/2017, nas situações em que já consolidada a propriedade e purgada a mora nos termos do art. 34 do Decreto-Lei n. 70/1966 (ato jurídico perfeito), impõe-se o desfazimento do ato de consolidação, com a consequente retomada do contrato de financiamento imobiliário; ii) a partir da entrada em vigor da lei nova, nas situações em que consolidada a propriedade, mas não purgada a mora, é assegurado ao devedor fiduciante tão somente o exercício do direito de preferência previsto no § 2º-B do art. 27 da Lei n. 9.514/1997.
Primeiramente, cumpre ressaltar que, no caso concreto objeto do REsp nº 1.649.595/RS, a consolidação da propriedade e a purga da mora haviam ocorrido no ano de 2015, portanto, ainda antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17. No que diz respeito à purga da mora, o que de fato estava em jogo naquele recurso era se, após a consolidação da propriedade, o devedor deveria quitar a integralidade da dívida – tal como decidido no acórdão recorrido – ou se bastaria o pagamento das verbas em atraso e demais encargos incidentes sobre o imóvel, tal como previsto no art. 34 do Decreto-lei nº 70/66.
Frise-se que, o acórdão recorrido, do TRF da 4ª Região (Apelação Cível nº 5011240-55.2015.4.04.7200/SC), foi proferido em 03/05/2016, portanto, antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17. Logo, naquele caso não poderia sequer haver controvérsia sobre a incidência da Lei 13.465/17 aos contratos pactuados antes da sua entrada em vigor.
Desse modo, afigura-se inadequada a definição de tese jurídica em abstrato sobre questão que não fora objeto de controvérsia naquele processo, tal como a prevista na tese do item “ii” da ementa do acórdão do REsp nº 1.649.595/RS, que trata de situações ocorridas após a entrada em vigor da Lei 13.465/97 e da sua incidência em contratos pactuados antes da sua entrada em vigor. Salvo melhor juízo, ainda que louvável a intenção do órgão colegiado, seria mais apropriado que a tese a ser firmada naquele acórdão ficasse limitada àquela prevista no item “i” da ementa, que de fato englobava a questão objeto da controvérsia no caso concreto.
Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas asseveram que “O conceito de tese jurídica também deve ser analisado e compreendido, até porque, do estudo desse fenômeno podem decorrer diretrizes relevantes sobre quando essas teses devem ser redigidas. A nosso ver, no direito brasileiro atual, posterior ao Código de 2015, tem havido certo abuso na identificação das hipóteses em que deve haver a redação dessas teses, somado à crença de que a obediência aos precedentes pode se dar, e ser controlada, de maneira quase automática.
As teses, na verdade, devem ser o resumo da decisão do caso concreto. […] são elementos facilitadores do funcionamento do sistema de precedentes, mas, realmente, só podem ser levadas a sério, funcionando como um elemento quase autônomo, nos casos em que o sistema de precedentes desempenha o papel de resolver o problema da litigância de massa”.[8]
O fato de o caso concreto não dizer respeito a eventual incidência da Lei 13.465/17 aos contratos pactuados antes de sua entrada em vigor, além de tornar inapropriada a redação de tese jurídica abstrata em sede de Recurso Especial avulso, certamente foi o motivo pelo qual não se tem uma ratio decidendi referente à tese de que “ii) a partir da entrada em vigor da lei nova, nas situações em que consolidada a propriedade, mas não purgada a mora, é assegurado ao devedor fiduciante tão somente o exercício do direito de preferência previsto no § 2º-B do art. 27 da Lei n. 9.514/1997.”
Além disso, embora pareça que a intenção da 3ª Turma foi de esgotar a matéria com a definição de teses em abstrato, observa-se que a tese do item “ii” carece de suficiente clareza, pois não é possível extrair, com a certeza necessária, se a norma que dela deriva abrange os casos em que a consolidação da propriedade ocorreu antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17 e a tentativa de purgar a mora depois, ainda que ultrapassado o prazo do art. 26, § 1º da Lei 9.514/97, mas antes da assinatura da carta de arrematação.
A despeito de tal incerteza, ao julgar o AgInt nos EDcl no REsp nº 2.018.730/SP (que foi citado no acórdão do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP), em que a consolidação da propriedade foi averbada antes da Lei 13.465/17 e a purga da mora realizada somente em 2018, a 3ª Turma do STJ entendeu que o devedor somente faria jus ao direito de preferência, mantendo-se hígida a consolidação da propriedade definitivamente em nome do credor fiduciário.
A fixação de tese nesse sentido, s.m.j., deveria ser precedida de ampla fundamentação fulcrada na doutrina da irretroatividade das leis, bem como com o enfrentamento da matéria relativa aos princípios e garantias constitucionais do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, tudo com os olhos voltados aos direitos fundamentais da moradia, da propriedade e ao princípio da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, 5º, XXXVI, XXII e 6º, da CF), especialmente pelo grande impacto econômico e social causado pela tese.
Não obstante, observa-se que, sobre a matéria, o acórdão limitou-se a consignar que:
Infere-se, assim, que, com a entrada em vigor da nova lei, não mais se admite a purgação da mora após a consolidação da propriedade em favor do fiduciário.
Não se olvide, ademais, que a lei nova é dotada, em regra, de efeito prospectivo, não alcançando o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (art. 6º, caput, da LINDB), considerando-se “ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (art. 6º, § 1º).
Tais brevíssimos fundamentos, bem vistas as coisas, poderiam muito bem embasar a tese oposta, no sentido de que a Lei 13.465/17 só se aplicaria aos contratos pactuados após a sua entrada em vigor.
Dito isso, não é exagero afirmar que não há ratio decidendi que justifique a redação da tese do item “ii” da ementa daquele acórdão que, além de não prestigiar a segurança jurídica, dá ensejo a situações de indesejável desigualdade entre mutuários que, antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17, firmaram contratos de alienação fiduciária; ficaram inadimplentes e viram a propriedade do imóvel objeto da garantia ser consolidada em nome do credor fiduciário (também antes da Lei 13.465/17); porém, apenas por terem buscado purgar a mora em datas distintas (antes e depois do dia 12/07/2017), um terá o contrato restabelecido e o outro perderá definitivamente o imóvel (pois, se não teve condições de purgar a mora, muito dificilmente terá condições de exercer o direito de preferência).
Não bastasse isso, observa-se que todos os acórdãos posteriores da 3ª Turma, que foram mencionados no acórdão proferido pela 2ª Seção no REsp 1.942.898/SP (que reformou o acórdão do IRDR do TJSP), simplesmente adotaram aquela tese firmada no acórdão do REsp nº 1.649.595/RS, sem qualquer fundamentação sobre a doutrina da irretroatividade das leis, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. E foram esses acórdãos, frise-se, que embasaram a conclusão adotada pela 2ª Seção no julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP. Ou seja, a tese de que a Lei 13.465/17 se aplica aos contratos pactuados antes de sua entrada em vigor, ainda carece de ratio decidendi, o que provavelmente será suprido com o julgamento do REsp Repetitivo nº 2.126.726/SP.
Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, atentos a essa problemática, alertam:
O fato é, entretanto, que teses são redigidas, em muitos casos em que a complexidade da questão fática subjacente ao processo, bem como a da questão jurídica não podem ser absorvidos integralmente por um curto enunciado normativo. […]
Ademais, não podemos nos esquecer de que o tribunal estará julgando um recurso, e não pode, por isso, apontar a ratio de uma forma quase abstrata, sugerindo que o precedente deva aplicar-se a outros casos análogos, porque essa função é do juiz que vai aplicar o precedente: cabe a ele encontrar a razão determinante do precedente aplicado. […]
Todas essas observações são importantes para que se perceba que o sistema de precedentes não subtraiu, nem ao juiz, nem ao tribunal de 2° grau, o poder-dever de interpretar o acordão que gerou o precedente que talvez deva ser seguido, para saber se é à luz da ratio decidendi desse acordão que o juiz ou o Tribunal devem mesmo decidir a causa que estão apreciando. Ou se, na verdade, o precedente não deve ser obedecido, porque sua ratio não se aplica ao caso…
Normalmente, o juiz ou o Tribunal terão, diante de si, uma tese. Mas, se não se tratar de uma tese que diga respeito a casos repetitivos ou o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, ou seja, daquelas hipóteses em que a aplicação da tese seria quase ‘automática’, ao caso que eles estão julgando (porque se está diante de casos que são resolvidos com um sim ou com um não), apesar de existir uma tese, devem os julgadores ler o acórdão que lhes deu origem, identificar a ratio e, com base nela, decidir e, eventualmente, não aplicar a tese!
Isso significa que, na verdade, os juízes e os desembargadores não aplicam, propriamente, a tese para decidir seus casos […] Eles decidem, isto sim, à luz da ratio e cabe a eles identificá-la.[9]
Outrossim, ressalta-se que, o acórdão proferido pelo TJSP no IRDR nº 26, por sua vez, trouxe fundamentação específica sobre a justificar a conclusão de que a Lei 13.465/17 só seria aplicável aos contratos pactuados após a sua entrada em vigor. Nesse sentido, destaca-se o seguinte trecho da fundamentação do voto vencedor do relator sorteado, Desembargador Bonilha Filho:
Respeitadas as opiniões em contrário, entendo, ‘data venia’ que a alteração na Lei nº 9.514/97, que veda a aplicação das normas relativas ao Decreto-lei nº 70/66, aos casos de execução da garantia fiduciária de imóvel, não tem aplicação aos contratos celebrados na vigência da lei antiga, valendo a regra sobre a purgação da mora, vigente à época da celebração do contrato.
A propósito, impende mencionar lição do mestre Agostinho Alvim:
“Qual a lei reguladora da mora, no caso de direito intertemporal? Celebrado o contrato, deve entender-se que as partes sujeitaram os casos omissos à norma vigente, a qual deve ser tomada como cláusula contratual, porque ela foi tacitamente aceita, como poderia ter sido rejeitada (cf. René Capitant, L’Illicite, vol. I, pág. 71). Ora, se as partes, ao contratar, adotaram a norma como cláusula do contrato, a lei nova não a poderá revogar como tal, mas tão-somente como norma. Não poderá revogá-la como cláusula supletiva, porque seria prejudicar o ato jurídico perfeito. E a Constituição de 1946 proibiu o efeito retroativo da lei (art. 414, § 3º), mudando, em boa hora, a orientação impolítica da Carta de 1937 e do art. 6º, 2ª parte, da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. A constituição de 1969, art. 153, § 3º, seguiu esta mesma orientação. Nessa conformidade, a lei reguladora da obrigação é a vigente ao tempo em que se celebrou o contrato (cf. Serpa Lopes, Comentário Teórico e Prático da Lei de Introdução ao Código Civil, Vol. II, nº 124). (In: Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1980, p. 35-36).”
Assim, em que pesem as considerações tecidas no voto do eminente Relator sorteado, Des. Andrade Neto, minha posição é pela manutenção do entendimento que vinha sendo adotado, unanimemente, pela C. 26ª Câmara de Direito Privado, a qual integro, no sentido da inaplicabilidade das alterações promovidas pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, relativas à purgação da mora, aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, não se admitindo a sua retroação, para prejudicar o devedor que prestou a garantia, ainda sob o regime jurídico anterior.
Dessas lições e, fundamentalmente, porque não há ratio decidendi que a sustente, conclui-se que a tese firmada pela 2ª Seção do STJ no julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP poderá deixar de ser aplicada por juízes e tribunais em casos envolvendo a incidência da Lei 13.465/17 aos contratos pactuados antes da sua entrada em vigor.
Além disso, os fundamentos que levaram a 2ª Seção do STJ a afetar o REsp nº 2.126.726/SP ao rito dos recursos repetitivos pouco mais de um ano após o julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP, bem como o fato de ter sido rejeitada a proposta para julgamento em Plenário Virtual de afetação para mera reafirmação da jurisprudência – porque, como visto no tópico 2, entendeu-se ser necessária, para a legitimidade da decisão, a participação dos amici curiae para a democratização dos debates e a representação adequada de todos os interesses envolvidos –, também configuram fortes fundamentos para que juízes e tribunais deixem de aplicar a tese firmada no REsp em IRDR nº 1.942.898/SP.
3.1 – DA AUSÊNCIA DE REPRESENTATIVIDADE ADEQUADA DOS INTERESSES DOS DEVEDORES E TERCEIROS FIDUCIANTES NO RESP EM IRDR Nº 1.942.898/SP.
No acórdão que acolheu o pedido de instauração do IRDR, o TJSP determinou “[…] a expedição de ofício à Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN), à Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH) e à Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), dando-lhes conhecimento do incidente, para que, entendendo o caso, se manifeste e preste eventuais informações que sirvam de subsídio ao julgamento;”.
De início, já se percebe que foram instadas a se manifestar no IRDR duas entidades que defendem os interesses de credores fiduciários e apenas uma que defende interesses opostos, sendo esta uma associação de “mutuários da habitação”. Ocorre que, a questão envolve toda a qualquer pessoa, física ou jurídica, que aliena fiduciariamente seu imóvel em garantia, não necessariamente vinculando-se a operação a um financiamento para fins de habitação.
Pois bem. Em defesa dos interesses dos credores fiduciários, além da FEBRABAN e da ABECIP, ainda se manifestaram, a ABRAINC e o SECOVI-SP, todas pugnando pela aplicação imediata da Lei 13.465/17, inclusive, aos contratos pactuados antes da sua entrada em vigor.
Por sua vez, a Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH) se manifestou, em suma, no sentido de que “o direito de purga da mora, com base no art. 34, do Decreto-Lei 70/66, deve ser interpretado como direito material e, como tal, é direito adquirido de todos aqueles que firmaram contratos de mútuo com garantia fiduciária antes de julho de 2017, mesmo que o procedimento de execução extrajudicial deflagrado pela Instituição Financeira, tenha sido iniciado após a vigência da Lei nº 13.465/2017”. Além disso, defendeu que “até mesmo para os contratos firmados posteriormente à vigência da referida lei, aos mutuários de contratos firmados com garantia fiduciária deve ser permitida a purgação da mora, após a consolidação da propriedade, haja vista que o direito de propriedade é constitucionalmente garantido e a providência visa assegurar a função social da propriedade”.
Já no STJ, como o REsp em IRDR nº 1.942.898/SP não foi afetado ao rito dos recursos repetitivos, não houve a convocação de outras entidades para figurar como amicus curiae.
Após o julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP, a Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH) não mais se manifestou, tendo apenas a parte autora da ação (e recorrida no REsp) interposto Recurso Extraordinário, seguido de Agravo Interno, tendo ambos os recursos esbarrados na tese fixada pelo Tema 660/STF, in verbis: “A questão da ofensa aos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e dos limites à coisa julgada, tem natureza infraconstitucional, e a ela se atribuem os efeitos da ausência de repercussão geral, nos termos do precedente fixado no RE n. 584.608, rel. a Ministra Ellen Gracie, DJe 13/03/2009”.
Ocorre que, no referido Recurso Extraordinário e no posterior Agravo Interno, sequer sustentou-se a aplicação do art. 987, § 1 do CPC, que diz ser a questão constitucional decidida no IRDR presumida como de repercussão geral. Tal argumento, somado ao fato de a ofensa ao direito adquirido não estar expressamente abrangida na tese fixada no Tema 660/STF, poderia dar ensejo à admissibilidade do Recurso Extraordinário, até mesmo porque, além de não ser necessária prévia análise da adequada aplicação de normas infraconstitucionais (pois a interpretação do STJ sobre o art. 39, II da Lei 9.514/97 era uníssona), em caso semelhante, o STF reconheceu que “Há repercussão geral na questão sobre a aplicação retroativa de leis sobre planos de saúde aos contratos firmados antes de sua vigência, à luz do art. 5°, inciso XXXVI, da Constituição da República”.[10]/[11]
O fato relevante a ser aqui levado em consideração é que, após o STJ ter julgado o REsp em IRDR nº 1.942.898/SP e reformado o acordão do IRDR nº 26 do TJSP, a defesa dos interesses de todos os devedores e terceiros fiduciantes do país ficou nas mãos de uma única pessoa física, litigando contra uma instituição financeira, a FEBRABAN – que é a principal entidade representativa do setor bancário no país e certamente uma das maiores e mais poderosas entidades de classe – e outras três entidades que defendem os interesses dos credores fiduciários.
Tais circunstâncias levam à conclusão de que, indubitavelmente, inexistiu representatividade adequada aos interesses dos devedores e terceiros fiduciantes, quando do julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP.
Traçando um paralelo com instituo collateral estoppel do direito estadunidense, Luiz Guilherme Marinoni afirma que a decisão tomada em sede de IRDR:
[…] constitui uma nítida proibição de relitigar a questão já decidida, que, nos casos de decisão negativa àqueles que não puderam participar e discutir, assemelha-se a um inusitado e ilegítimo ‘collateral estoppel’.
[…] há, embora não dito, coisa julgada sobre a questão presente nos vários casos repetitivos. A coisa julgada está a tornar indiscutível uma questão imprescindível para se chegar ao alcance da resolução dos vários casos pendentes. […]
Significa que se está diante de coisa julgada que afeta terceiros.[12] Para que isso seja legítimo, na medida em que uma decisão não pode prejudicar a quem não pode participar, é indispensável viabilizar a participação do representante adequado dos litigantes excluídos. […]
O que se chama de collateral estoppel no common law é, em substância, o que se denomina de coisa julgada sobre questão no civil law. […]
Do problema e da discussão levada a efeito no direito estadunidenses retiram-se consequências muito importantes para o direito brasileiro, especialmente para a sobrevivência do incidente de resolução de demandas repetitivas: i) o collateral estoppel proíbe a rediscussão de questão já decidida; ii) o non-mutual collateral estoppel permite que terceiro invoque a proibição de discussão de questão já decidida desde que a questão posta no novo processo seja idêntica, tenha sido julgada mediante sentença final de mérito, e que aquele que se pretende proibir de voltar a discutir tenha adequadamente participado do primeiro processo; iii) os terceiros, quando a decisão não os beneficia, sempre conservam o direito de propor as suas ações sem qualquer limitação de discussão. Claramente significa que a proibição de relitigar questão já decidida jamais pode prejudicar aquele que não teve oportunidade de discuti-la. Isso porque, como foi assentado em Parklane v. Shore, não há como atingir quem não participou do processo e, portanto, não teve oportunidade de ser ouvido, sem violar o due process.[13]
A partir do estudo do instituto da virtual representation – também do direito estadunidense –, que diz respeito à representação adequada de quem não é parte, Luiz Guilherme Marinoni faz as seguintes ponderações:
Tendo em vista que a decisão do IRDR proíbe a relitigação da questão nas ações repetitivas, salta aos olhos a necessidade de se perguntar sobre representação adequada para a legitimação da decisão do incidente. […]
A representação é adequada nao só quando o representante tem motivo e razão para tutelar os direitos dos membros do grupo, mas também quando o seu advogado e assistentes técnicos têm capacidade técnica para exercer a defesa dos direitos.
No direito brasileiro, quando em jogo direitos individuais homogêneos, é impossível pensar em excluir o representante adequado, sob pena de violação ao devido processo legal. Portanto, o incidente de resolução demandas deveria ter previsto a participação dos legitimados adequados tutela dos direitos dos litigantes excluídos. Contudo, o incidente nada previu em termos de representação adequada. […]
Assim, não obstante se possa deixar de lado a ideia de que o devido processo legal depende necessariamente de participação direta, admitindo-se a suficiência da representa adequada em caso de processo coletivo, não há qualquer possibilidade de sustentar que o incidente de resolução de demandas repetitivas, nos termos em que estruturado pelo Código de Processo Civil, está de acordo com o due process. […]
É necessário resgatar a força da representatividade adequada, considerando-se as normas da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, que conferem legitimidade para a representação dos membros dos grupos perante as ações coletivas ou, mais especificamente, para a tutela dos direitos individuais homogêneos mediante a via coletiva.[14]
As críticas supracitadas, como se pode perceber, encaixam-se como uma luva ao que ocorreu no trâmite e julgamento do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP, razão pela qual, também por esse motivo, a tese nele firmada não deve ter efeito vinculante sobre quem não foi parte naquele processo e nem adequadamente representado.
Corroborando esse entendimento, cita-se mais uma vez a lição de Luiz Guilherme Marinoni:
A doutrina tem sério e inafastável compromisso com os direitos fundamentais. Assim, obviamente não pode dizer “amém” a um procedimento que, sob o pretexto de dar otimização à resolução das demandas, viola claramente o direito fundamental de ser ouvido e de influenciar o juiz.
Não há como negar a realidade: no incidente de resolução de demandas repetitivas julga-se questão de muitos em processo de alguns. Como é óbvio, se no Estado Democrático de Direito a participação é indispensável requisito de legitimação do exercício do poder, não há como imaginar que uma decisão – ato de positivação do poder estatal – possa gerar efeitos face de pessoas que não tiveram oportunidade de participar ou não foram adequadamente representadas.[15]
Portanto, também sob a ótica da necessidade de representação adequada para emprestar-se efeito vinculante à decisão tomada no IRDR, ou mais precisamente, no Recurso Especial interposto contra o acórdão que julgou o mérito do IRDR, pode-se concluir que juízes e tribunais não estão obrigados a seguir o entendimento exarado pelo STJ no acórdão do REsp em IRDR nº 1.942.898/SP.
4 – DA FALSA PREMISSA QUE EMBASOU UM DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS DA FEBRABAN E DOS DEMAIS AMICI CURIAE QUE REPRESENTARAM INTERESSES DOS CREDORES FIDUCIÁRIOS NO IRDR Nº 26 DO TJSP.
No IRDR nº 26 do TJSP e no respectivo REsp em IRDR nº 1.942.898/SP, um dos principais fundamentos do Banco Santander (recorrente naquele REsp) e dos amici curiae FEBRABAN e ABECIP era o de “[…] inadequação da aplicação analógica ou subsidiária do art. 34, do Decreto-Lei nº 70/66, que regulamenta os procedimentos extrajudiciais de excussão de garantia hipotecária, visto que inexistia omissão legislativa acercado prazo para a purga da mora, que estava expressamente previsto no art. 26, § 1º, da Lei nº 9.514/1997, além de inexistir semelhança entre garantias essencialmente diversas (propriedade fiduciária e garantia real sobre coisa alheia), invocando, ademais, sobre a natureza interpretativa da alteração introduzida no art. 39, inc. II, da Lei nº 13.465/2017 […]” (acórdão do IRDR nº 26 do TJSP).
Ocorre que, conforme demonstrado no tópico 2, antes da entrada em vigor da Lei 13.465/17, o entendimento pacífico das 3ª e 4ª Turmas do STJ era no sentido de ser facultado ao devedor a purgação da mora até o momento da assinatura da carta de arrematação, ainda que ultrapassado o prazo de 15 dias da intimação prevista no art. 26, § 1º da Lei 9.514/97 e consolidada a propriedade do bem em nome do credor fiduciário.
Tal entendimento decorria de disposição expressa na própria Lei 9.514/97 que, em seu art. 39, II (com a redação vigente até a entrada em vigor da Lei 13.465/17), previa que ao contrato de alienação fiduciária de bem imóvel aplicavam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei nº 70/66, sendo que o art. 34 do referido Decreto-lei dispõe que é facultado ao devedor, a qualquer momento até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, com os acréscimos legais.
Como se pode perceber, ainda que fazendo menção a um Decreto-lei, a própria Lei 9.514/97 previa 2 prazos para o devedor purgar a mora, sendo que um (de 15 dias, do art. 26, § 1º) impediria a consolidação “provisória” da propriedade em nome do credor, evitando-se os elevados custos com imposto (ITBI); e o outro, já após consolidação da propriedade, porém, acompanhado de um novo ônus ao devedor, decorrente da inclusão do valor pago pelo credor fiduciário à título de ITBI ao saldo devedor.
Conforme ressaltado até mesmo no acórdão do REsp nº 1.649.595/RS (que deu origem à jurisprudência que se consolidou na 3ª Turma), essa possibilidade estendida de purgar a mora era concedida ao devedor ou terceiro fiduciante, em razão do “[…] do silogismo de que a alienação fiduciária tem por escopo garantir o adimplemento da dívida, não caracterizando um fim em si mesmo, além de a consolidação da propriedade não possuir o condão de integrar, definitivamente, o imóvel no patrimônio do credor, não extinguindo, com isso, o contrato de mútuo”.
Em razão de a Lei 9.514/97 prever esses dois prazos é que o STJ se viu diversas vezes instado a cumprir o seu papel de dar a última palavra sobre a interpretação da lei federal infraconstitucional e trazer unidade ao direito, mediante a sua função uniformizadora que busca, em última instância, preservar o princípio da igualdade.
Em suma, independentemente do que diz a doutrina (especialmente a parcela representada por advogados de instituições financeiras, construtoras e incorporadoras) ou o gosto pessoal de cada intérprete, a própria Lei 9.514/97 (inclusive, segundo o STJ) previa expressamente que o devedor poderia purgar a mora até a data da assinatura da carta de arrematação. Negar tal assertiva corresponderia a negar a autoridade das decisões do STJ e desprezar a própria razão de existir das Cortes Superiores, além é claro, de ignorar a própria lei (in casu, o art. 39, II da Lei 9.514/97).
Portanto, não há se falar que a Lei 13.465/17 deveria ser aplicada imediatamente, por possuir caráter meramente interpretativo, sob o argumento de que o prazo para purgar a mora seria apenas aquele de 15 dias, previsto no 26, § 1º da Lei 9.514/97.
E o voto vencedor do Desembargador Bonilha Filho, no acórdão do IRDR nº 26 do TJSP, corrobora com firmeza tal assertiva:
Forçoso, pois, concluir que a Lei nº 9.514/97, antes das alterações promovidas pela Lei nº 13.465/2017, permitia expressamente a aplicação das regras referentes à execução hipotecária, quanto à purgação da mora, às alienações fiduciárias.
A nova lei, vindo a proibi-la, evidentemente, não pode ser considerada norma meramente interpretativa, de modo que seus efeitos não podem retroagir para atingir os contratos celebrados antes de sua vigência, sendo possível, nessas hipóteses, a purgação da mora, de acordo com o previsto no art. 34, do Decreto-lei nº 70/66, isto é, até a data da assinatura do auto de arrematação.
Ora, eventuais dúvidas interpretativas, como visto, foram dirimidas pelo STJ, que é a Corte Superior constitucionalmente incumbida de dar a palavra final sobre a interpretação das leis federais infraconstitucionais. Por outro lado, até hoje a Lei 9.514/97 prevê hipótese em que a mora pode ser purgada em duas oportunidades. Trata-se dos casos de financiamentos para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor (art. 26-A), com exceção das operações do sistema de consórcio, em que o devedor ou terceiro fiduciante será intimado para purgar a mora no prazo de 15 dias, porém, poderá fazê-lo até prazo o de 45 dias (ou mais, caso o credor fiduciário demore para promover a averbação da consolidação da propriedade), tal como se extrai da exegese dos §§ 1º e 2º do art. 26.
Com efeito, o fato de ter sido averbada a consolidação da propriedade, ao menos até a entrada em vigor da Lei 13.465/17, não pode ser visto, por si só, como óbice instransponível à purgação da mora, uma vez que a mencionada consolidação da propriedade ainda não é definitiva e mantém sua natureza de garantia, sem que possa ser equiparada com a propriedade plena. Em outras palavras, a consolidação da propriedade, prevista no art. 26, não extinguia o contrato ao qual o imóvel alienado fiduciariamente servia de garantia.
O STJ já teve a oportunidade de esmiuçar a matéria quando do julgamento do REsp nº 1.401.233/RS[16], em que se tratava de controvérsia sobre a taxa de ocupação, prevista no art. 37-A da Lei nº 9.514/97, com a redação anterior à Lei 13.465/17:
A taxa de ocupação pretendida pela instituição financeira é devida, mas somente após a alienação do imóvel em leilão, nos temos da literalidade do supracitado art. 37-A da Lei 9.514/97.
O fundamento para que essa taxa não incida no período anterior à alienação é que a propriedade fiduciária não se equipara à propriedade plena, por estar vinculada ao propósito de garantia da dívida, conforme expressamente dispõe o art. 1.367 do Código Civil, abaixo transcrito, litteris:
Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
Por essa razão, o titular da propriedade fiduciária não goza de todos os poderes inerentes ao domínio. Efetivamente, não se reconhece ao proprietário fiduciário os direitos de usar (jus utendi) e de fruir (jus fruendi) da coisa, restando-lhe apenas os direitos de dispor da coisa (jus abutendi) e de reavê-la de quem injustamente a possua (rei vindicatio).
[…]
Essa limitação de poderes se mantém após a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, pois essa consolidação se dá exclusivamente com o propósito satisfazer a dívida. É o que dispõe o art. 1.364 do Código Civil, litteris:
Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor. (sem grifos no original)
No mesmo sentido, o art. 27, caput, da Lei 9.514/97, litteris:
Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel. (sem grifos no original)
Quanto a essa afetação da propriedade consolidada à satisfação da dívida, merece referência a doutrina de FREDERICO HENRIQUE VIEGAS DE LIMA, litteris:
Uma vez registrada a consolidação da propriedade fiduciária, tendo como novo titular o credor fiduciário, desaparece a propriedade fiduciária resolúvel com escopo de garantia. Porém, esta nova propriedade, recém-adquirida pelo credor fiduciário não é propriedade plena. Isto porque o poder do credor não é ilimitado como em geral ocorre nesta forma de propriedade, já que tem ele a obrigação de, no prazo de trinta dias contados da data do registro da consolidação, de aliená-la para satisfazer seu crédito. […]
Em virtude do credor fiduciário não poder incorporar a nova propriedade em seu patrimônio, nem tampouco, dela dispor como bem lhe aprouver, não podemos dispensar a esta espécie de propriedade o tratamento de propriedade plena. Em realidade, o que existe é uma limitação à mesma, no sentido da obrigatoriedade do credor fiduciário em aliená-la em público leilão. Isto faz com que a propriedade que é transmitida ao credor fiduciário seja uma propriedade limitada com escopo de garantia, deixando de existir a propriedade fiduciária nos moldes de propriedade resolúvel. (Da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 179)
Ainda sobre esse ponto, ZILDA TAVARES menciona em sua obra doutrinária a existência de normativo do Banco Central do Brasil que proíbe as instituições financeiras de incorporarem a seus ativos patrimoniais os imóveis adquiridos por força de consolidação da propriedade fiduciária (cf. Código de defesa do consumidor e a alienação fiduciária. São Paulo: Método, 2005, p. 134).
Aliás, a Lei nº 14.711/23, que recentemente alterou dispositivos da Lei nº 9.514/97, traz expressamente o conceito de consolidação definitiva da propriedade – ou seja, da propriedade plena -, que nos termos da referida legislação, só será adquirida pelo credor fiduciário quando, além da já mencionada dação em pagamento, prevista no § 8º do art. 26, forem realizados os 2 leilões extrajudiciais, sem que haja arrematante, hipótese na qual o bem é adjudicado pelo credor. É o que consta no parágrafo único do art. 30, in verbis: “Arrematado o imóvel ou consolidada definitivamente a propriedade no caso de frustração dos leilões […].”
Dito isso, observa-se que, para solucionar o problema da aplicação da lei no tempo, a interpretação teleológica ou finalística, prevista no art. 5º da LINDB, direciona o intérprete para a opção que faça convalescer o contrato de alienação fiduciária, mormente porque os fins sociais da lei envolvem direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da moradia, da função social da propriedade e da proteção ao consumidor.
No tópico seguinte serão refutados os demais argumentos que embasam a tese de que a Lei 13.465/17 deve ser aplicada aos contratos pretéritos, no tocante ao prazo final para purga da mora.
5 – ANÁLISE DA QUESTÃO À LUZ DA DOUTRINA DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS, DO ATO JURÍDICO PERFEITO, DO DIREITO ADQUIRIDO E DA TEORIA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO: PRECEDENTE DO STF EM CASO SEMELHANTE.
Segundo a lição de Caio Mário da Silva Pereira, “A alienação fiduciária é um contrato: a) bilateral, porque gera obrigações para o alienante e o adquirente; b) oneroso, porque beneficia a ambos – proporcionando instrumento creditício ao alienante, e, assecuratório ao adquirente; c) acessório, uma vez que sua existência jurídica subordina-se à da obrigação garantida, cuja sorte segue; d) formal, porque há de constar sempre de instrumento escrito (público ou particular)”.[17]
Embora acessório, o contrato de alienação fiduciária em garantia, assim que devidamente formalizado e assinado pelas partes, trata-se de contrato perfeito e acabado (ato jurídico perfeito) no que diz respeito ao seu objeto (propriedade fiduciária), com todos os direitos e obrigações, previstos em lei e no contrato, incorporados no patrimônio do contratante (direito adquirido).
Por outro lado, o financiamento ou empréstimo garantidos pela alienação fiduciária, tratam-se de contratos em que, via de regra, a obrigação do credor fiduciário é cumprida instantaneamente, com a entrega do dinheiro ou do imóvel, embora apenas o pagamento seja parcelado. Em razão de o pagamento ser parcelado, verifica-se na doutrina certo lapso em encontrar uma subcategoria apropriada a esses contratos (de empréstimo/financiamento), no tocante à duração, que são comumente classificados em: de execução imediata, de execução diferida e de execução continuada, ou de trato sucessivo.
Explica-se. O contrato de empréstimo/financiamento com pagamento parcelado não é de execução instantânea e nem diferida, justamente porque os pagamentos são parcelados. Porém, é inegável que essa espécie de contrato difere dos contratos que a doutrina comumente aponta como exemplos de contratos de execução continuada ou de trato sucessivo, que são os contratos de locação, de seguro e de previdência privada, por exemplo.
Sobre o assunto, Arnaldo Rizzardo ensina que:
Nos contratos sucessivos, ou de duração, ou de trato sucessivo, ou, ainda, de execução continuada, a característica está em não ser a prestação executada de uma só vez, mas de modo contínuo ou periódico. Importam, na realização de prestações sucessivas e contínuas, o que é comum nas espécies de locação, de seguro e de previdência privada. As obrigações dos contratantes perduram por um certo tempo; há um débito permanente; a prestação não é satisfeita em um só momento.
No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira ensina que:
De execução sucessiva ou de trato sucessivo, ou execução continuada, como denominado no art. 478, é o contrato que sobrevive, com a persistência da obrigação, muito embora ocorram soluções periódicas, até que, pelo implemento de uma condição, ou decurso de um prazo, cessa o próprio contrato. O que a caracteriza é o fato de que os pagamentos não geram a extinção da obrigação, que renasce. A duração ou continuidade da obrigação não é simplesmente suportada pelo credor, mas é querida pelas partes contratantes. Caso típico é a locação, em que a prestação do aluguel não tem efeito liberatório, senão do débito correspondente a período determinado, decorrido ou por decorrer, porque o contrato continua até a ocorrência de uma causa extintiva.[18]
Não é preciso muito esforço para perceber que, diferentemente do empréstimo ou financiamento garantidos por alienação fiduciária, os contratos de locação, seguro, previdência privada, plano de saúde, entre outros semelhantes, são contratos de execução continuada, porém, em que ambas as partes possuem obrigações durante sua execução, que se renova periodicamente.
Faz-se tal observação apenas para argumentar que, ao contrário de um contrato de empréstimo/financiamento garantido por alienação fiduciária (em que, via de regra, a obrigação do credor é cumprida imediatamente), em relação a esses contratos, porque se renovam periodicamente ou mesmo porque perduram muitas vezes por prazo indeterminado, poder-se-ia supor a aplicação imediata da lei nova aos fatos pendentes e/ou futuros de um ato pretérito.
E por qual motivo se faz tal suposição? Porque o STF, ao julgar o Recurso Extraordinário Representativo de Controvérsia nº 948.634/RS[19] (TEMA 123) e decidir sobre a possibilidade de aplicação da Lei 9.656/1998 aos contratos de plano de saúde pactuados anteriormente à sua entrada em vigor, fixou a seguinte tese: “As disposições da Lei 9.656/1998, à luz do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como nos contratos que, firmados anteriormente, foram adaptados ao seu regime, sendo as respectivas disposições inaplicáveis aos beneficiários que, exercendo sua autonomia de vontade, optaram por manter os planos antigos inalterados.”
Em outras palavras, se nem mesmo aos contratos de plano de saúde – que são fortemente marcados pela característica de continuidade, em que as obrigações de ambas as partes se renovam periodicamente – admitiu-se a incidência da lei nova aos contratos pretéritos, com muito mais razão esse entendimento deve ser aplicado aos contratos de empréstimo/financiamento garantidos por alienação fiduciária de bens imóveis.
Por se encaixar como uma luva ao presente caso, transcreve-se os seguintes trechos da fundamentação do referido acórdão do Recurso Extraordinário Representativo de Controvérsia nº 948.634/RS:
Assento, na sequência, que o presente recurso submetido à Sistemática da Repercussão Geral (Tema 123) discute uma das matérias mais instigantes da ciência jurídica: a eficácia da lei no tempo e a possibilidade, ou não, da aplicação da nova legislação – no caso, a Lei 9.656/1998 -, aos contratos firmados anteriormente à sua vigência.
A questão que se coloca, por conseguinte, adquire feição eminentemente constitucional, pois consiste em saber se a garantia de proteção ao ato jurídico perfeito, à vista do art. 5º, XXXVI, da CF, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” pode ser desconstituída com base em alteração legislativa superveniente. […]
“A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada.
Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças.” (O Direito e a Vida dos Direitos, 7ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pág. 428). […]
Dentro da ciência da aplicação da lei civil no tempo, e sem embargo à importância dos estudos desenvolvidos pelo renomado jurista francês Paul Roubier a indicar que a lei nova pode atingir efeitos futuros (Apud Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 1, 33ª. ed. revista e atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 154), nosso ordenamento acabou adotando como regra geral a Teoria Subjetiva do professor Carlo Francesco Gabba. Para este mestre italiano, a lei nova não poderia atingir sequer os efeitos futuros do sistema anterior, pois isso significaria regular atos, decisões judiciais ou fatos anteriores a ela e dos quais irradiam os seus efeitos. […]
A distinção entre efeito retroativo e efeito imediato proposta por Rubens Limongi França (A Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido, 5ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, págs. 29-30), no sentido de que a lei nova poderia ser aplicada aos facta pendentia, foi considerada como retroatividade mínima por grande parte da doutrina pátria, ofensiva, pois, ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. […]
Aliás, a doutrina tradicionalmente tem formulado diferentes graus de intensidade da retroatividade, como destacado por Carlos E. Elias de Oliveira, em alentado estudo dedicado à retroatividade das leis, ao lecionar que: “Quanto aos efeitos, a retroatividade pode ser dividida em três espécies: (1) máxima: é a máxima intensidade de uma retroatividade, pois a nova lei atinge efeitos pretéritos, pendentes e futuros de um ato pretérito; (2) média: a nova lei atinge apenas efeitos pendentes e futuros de um ato pretérito; (3) mínima: a nova lei atinge apenas os efeitos futuros de um ato pretérito. […] Ao se tratar de norma constitucional originária (NCO) – aquela que é produzida pelo onipotente Poder Constituinte Originário (que, ao elaborar uma nova Constituição, é ilimitado e, portanto, pode estabelecer o que lhe aprouver como regra) –, o STF firmou que: (1) toda NCO possui retroatividade mínima, independentemente de previsão expressa; e (2) a NCO pode ter retroatividade média ou máxima, desde que haja comando expresso nesse sentido. A ideia subjacente a isso é a de que, na sua onipotência, o Poder Constituinte Originário não é obrigado a assistir, no novo Estado que ele constituiu, a uma situação jurídica que ele abominou, ainda que seja procedente de um ato jurídico perfeito, de uma coisa julgada ou de um direito adquirido anterior à CF. Por isso, qualquer NCO possui retroatividade mínima automaticamente. […]
Ao se tratar, porém, de normas que não são constitucionais originárias, como as emendas à Constituição e as demais normas infraconstitucionais, todas elas devem estrito respeito à proibição de retroatividade contra os óbices constitucionais, pois essa vedação foi instituída pelo onipotente Poder Constituinte Originário como cláusula pétrea. Diante disso, se a norma não for constitucional originária, ela jamais poderá exibir qualquer tipo de retroatividade, sequer mínima, quando se deparar com algum óbice constitucional.” (Retroatividade das leis: a situação das leis emergenciais em tempos de pandemia. Disponível em http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Acessado em 15/7/2020, grifei).
Por tudo o que se viu acima, nos parece muito claro que, nos termos do art. 6º, § 2º da LINDB[20], o devedor fiduciante que assinou contrato de alienação fiduciária em garantia antes da entrada em vigor da 13.465/17, incorporou em seu patrimônio, independentemente de previsão contratual em sentido diverso (pois seria absolutamente nula, nos termos do art. 166, VI do Código Civil), o direito de purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação.
Nesse sentido são os ensinamentos de Caio Mário da Silva, para quem o direito adquirido, “São direitos que o seu titular ou alguém que por ele possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixado ou condição preestabelecida; inalterável ao arbítrio de outrem. São os direitos definitivamente incorporados ao patrimônio de seu titular, sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, sejam ainda os subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem”.[21]
Para Zeno Veloso, “a lei é irretroativa no sentido de que não pode voltar-se para o tempo anterior e reger casos pretéritos que já estejam acobertados pelo direito adquirido. Fora disso, a lei em vigor tem efeito imediato e geral, regula o que encontra, o que vai ocorrer futuramente, inclusive o que vem do passado, se o que vem da época antecedente não é direito adquirido (utilizada, aqui, a expressão, em sentido lato, abrangendo as duas outras figuras, de ato jurídico perfeito e de coisa julgada)”.[22]
Pois bem. Como já visto, por força do art. 39, II da Lei 9.514/97, o entendimento jurisprudencial sobre a matéria no STJ era manso e pacífico no sentido de autorizar a purga da mora até a assinatura da carta de arrematação, o que trazia a tão almejada segurança jurídica que, conforme ensinam Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas[23], é uma das suas razões de existir. A estabilidade da jurisprudência e a segurança jurídica que dela decorre, trazem a previsibilidade, possibilitando que a sociedade paute suas condutas e conduza seus negócios com base na interpretação dada à lei e à Constituição, pelas Cortes Superiores.
Já tivemos a oportunidade de abordar o assunto em outro trabalho[24], asseverando que:
Um passo necessário ao êxito dessa função estabilizadora do Estado Democrático de Direito, é certamente a estabilização jurisprudencial, por meio do respeito aos precedentes. Segundo Neil MacCormick, entre os valores que o Estado de Direito assegura, nenhum é mais importante que a certeza jurídica, exceto talvez pelos valores similares, tais como a segurança de expectativas jurídicas e a garantia do cidadão contra interferências arbitrárias por parte do governo e de seus agentes. A sociedade que alcança a certeza jurídica e a segurança jurídica possibilita aos seus cidadãos que vivam com autonomia e sob circunstância de confiança mútua.
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet:
“Mesmo que se saiba, pelo menos desde Heráclito, ‘que a imutabilidade não é um atributo das coisas deste mundo, que nada está em repouso e tudo flui’ e que também para o direito tal destino se revela inexorável, igualmente é certo de que o clamor das pessoas por segurança (aqui ainda compreendida num sentido amplo) e – no que diz com as mudanças experimentadas pelo fenômeno jurídico – por uma certa estabilidade das relações jurídicas, constitui um valor fundamental de todo e qualquer Estado que tenha a pretensão de merecer o título de Estado de Direito, de tal sorte que, pelo menos desde a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 o direito (humano e fundamental) à segurança passou a constar nos principais documentos internacionais e em expressivo número de Constituições modernas, inclusive na nossa Constituição Federal de 1988, onde um direito geral à segurança e algumas manifestações específicas de um direito à segurança jurídica foram expressamente previstas no art. 5.º, assim como em outros dispositivos da nossa Lei Fundamental”.
Diante disso, tendo em vista que, desde a entrada em vigor da Lei 9.514/97, o devedor ou terceiro fiduciante tem direito a purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, não é muito difícil concluir que tal direito, ao menos em grande parte dos casos, foi fundamental para que o devedor aceitasse alienar fiduciariamente o imóvel em garantia da dívida, mormente se se consultou com um advogado antes de formalizar a contratação.[25]
Com efeito, nunca é demais lembrar que a alienação fiduciária nem sempre é contratada para garantir o financiamento do próprio imóvel. Em muitos casos, por exemplo, é o sócio de uma empresa em dificuldade que oferece (não raras as vezes mediante coação econômica – economic duress) um imóvel já integrante de seu patrimônio particular para garantir uma dívida da empresa, a fim de evitar sua derrocada, ou mesmo para proporcionar o seu crescimento.
Diante disso, revela-se fundamental a seguinte indagação: sabendo das crises econômicas que rondam o cenário nacional há décadas (para não dizer desde sempre!) e dos problemas triviais de fluxo de caixa nas empresas, seria razoável supor que todos os fiduciantes que ofereceram seu imóvel particular em garantia de alienação fiduciária, antes da Lei 13.465/17, teriam realmente alienado fiduciariamente seu imóvel, se soubessem que teriam apenas o prazo de 15 dias para purgar a mora?
Independentemente da resposta a tal indagação (que evidentemente deve ser negativa), a simples possibilidade de se arguir essa questão já é mais que suficiente para que se garanta aos devedores e terceiros fiduciantes que contrataram antes da Lei 13.465/17, o direito de purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, pois, frise-se novamente, era o que lhes assegurava a Lei 9.514/97, de acordo com a interpretação uníssona do STJ.
Sendo assim, em reforço a essa tese, pode-se recorrer até mesmo à teoria da base do negócio jurídico, sob os aspectos subjetivo e objetivo, que tem sua origem e fundamento no princípio da boa-fé objetiva.
Sobre o tema, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery ensinam que:
Por base objetiva do negócio deve-se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo. A base subjetiva do negócio compreendes representações (Vorstellungen) nas quais as partes assentaram seu acordo. A base objetiva do negócio compreende ‘os condicionalismos naturalmente pressupostos pelas partes, sem disso terem consciência, como a manutenção da legislação ou do sistema econômico’.
Por isso, por causa desses elementos objetivamente considerados, quando doutrina alemã construiu e delineou a teoria da base objetiva do negócio, como evolução das teorias da pressuposição e da imprevisão (fundada na cláusula rebus sic stantibus), esta última legada pelo direito romano, fez com que os negócios jurídicos pudessem ser vistos como celebrados com maior precisão, quanto aos aspectos objetivos da proporcionalidade das prestações e, nesse sentido, deles se pudesse extrair maior carga de eficácia e, consequentemente, de segurança para as partes, principalmente.
Ao se referir a doutrina à teoria da base do negócio jurídico, se quer apontar para um fundamento extrínseco ao contrato que lhe serve de suporte existencial e fenomenológico, a sustentar a sua juridicidade. Ou seja, contratos se celebram tendo em vista determinadas circunstâncias, externas ao acordo, que são de certo modo pressupostas – daí se falar, sob ângulo subjetivo, da presença de uma pressuposição, como condição não plenamente desenvolvida. Mas, aqui, essas circunstâncias são objetivas, ou seja, não dependem nem da vontade das partes, nem da percepção que as partes porventura tenham ou possam ter dessas mesmas circunstâncias. São um apoio da declaração de vontade, isto é, a declaração repousa sobre elas sem que necessariamente a elas tenha de fazer referência expressa”.[26]
Por fim, seja como ponto de partida ou como última instância no processo decisório, a controvérsia deve analisada e interpretada com os olhos voltados à Constituição, em especial, aos direitos fundamentais da moradia, da função social da propriedade, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, bem como do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, 5º, XXII e XXXVI e 6º), que invariavelmente remeterão à conclusão que mais aproxima o fiduciante de não perder definitivamente o seu imóvel.
Aliás, como a grande maioria dos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia envolvem consumidores, a proteção ao consumidor, prevista nos arts. 5º, XXXII e art. 170, V da CF, também deve entrar na equação da interpretação conforme a constituição, uma vez que também se trata de um direito fundamental. Nesse sentido, cita-se trecho do voto do então Ministro Carlos Velloso, no julgamento da ADI 2591:
No Brasil, na linha da expansão do fenômeno mundial do ‘consumerismo’ a defesa do consumidor ganhou status de princípio constitucional: art. 170, V da CF […].
A defesa do consumidor, registram Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins, ‘pode, então, ser considerada, como afirma Eros Roberto Grau, um ‘Princípio constitucional impositivo (Canotilho), a cumprir dupla função, como instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetovo particular a ser alcançado. No último sentido, assume a função de diretriz (Dworkin) – norma objetivo – dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas’. (Arruda Alvim et alii, “Código do Consumidor Comentado’, RT., 2ª ed., pág. 13).
Princípio constitucional, a defesa do consumidor (art. 170, V) encontra embasamento em diversos preceitos da Constituição: art. 5º, XXXII: ‘O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor’ […]. É dizer, a Constituição empresta ao princípio especial relevo. Daí o registro de Eros Roberto Grau: ‘[…] O caráter constitucional conformador da ordem econômica, deste como dos demais princípios de que tenho cogitado, é inquestionável’ (Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988’. Malheiros Ed., 6ª ed., 2001, págs. 272/273).” [27]
Não parece restar dúvidas, portanto, de que o direito de purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, tal como previsto na redação original do art. 39, II da Lei 9.514/97, trata-se de direito adquirido, definitivamente incorporado ao patrimônio do devedor e do terceiro fiduciante, ainda que a consolidação da propriedade ou a purga da mora tenham ocorrido sob a égide da Lei 13.465/17, sob pena de ofensa ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI da CF e art. 6º, §§ 1º e 2º da LINDB).
6 – CONCLUSÃO.
De acordo com os fundamentos expostos ao longo deste artigo, pode-se concluir que, o direito de purgar a mora até a assinatura da carta de arrematação, tal como previsto na redação original do art. 39, II da Lei 9.514/97, deverá ser assegurado a todos os devedores e terceiros fiduciantes que firmaram o contrato sob a égide da redação original do art. 39, II da Lei 9.514/97, independentemente de ter a consolidação da propriedade ou mesmo a purga da mora ocorrido sob a égide da Lei 13.465/17.
Trata-se de solução que prestigia a segurança jurídica, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, o princípio da igualdade e presta deferência à doutrina da irretroatividade das leis que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., “serve ao valor da segurança jurídica: o que sucedeu já sucedeu e não deve, a todo momento, ser juridicamente questionado, sob pena de se instaurarem intermináveis conflitos. Essa doutrina, portanto, cumpre a função de possibilitar a solução de conflitos com o mínimo de perturbação social. Seu fundamento é ideológico e reporta-se à concepção liberal do direito e do Estado.” [28]
*Sobre o Autor: Hélio Ricardo Diniz Krebs é advogado, fundador do Diniz Krebs Advocacia e Consultoria, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SC.
[1] Art. 39. Às operações de financiamento imobiliário em geral a que se refere esta Lei:
[…]
II – aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.
[2] Associação das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança.
[3] Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias.
[4] Federação Brasileira de Bancos.
[5] Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo.
[6] STJ, REsp n. 1.942.898/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 23/8/2023, DJe de 13/9/2023.
[7] STJ, REsp n. 1.649.595/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/10/2020, DJe de 16/10/2020.
[8] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7 ed. São Paulo: RT, 2023, p. 332-333.
[9] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7 ed. São Paulo: RT, 2023, p. 333-335.
[10] STF, RE 578.801/RG, Relatora: Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 16-10-2008, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008.
[11] A Ministra Carmén Lúcia homologou a desistência do referido RE 578.801/RG em 20/12/2011, tendo sido substituído pelo ARE 652.492/RS, em 25/8/2011. Posteriormente, a Ministra Relatora deu provimento ao agravo para determinar a regular tramitação e julgamento da matéria, em 15/12/2015, sendo o agravo reautuado como RE 948.634/RS, que foi julgado em 20/10/2020.
[12] Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, por sua vez, entendem que “A decisão que o tribunal profere em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, como visto, não resolve a lide, mas fixa a interpretação da questio iuris que compõe a causa petendi. Dessa forma, não há que se falar em coisa julgada da questão de direito, mas, sim, em efeito vinculante” (ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 366). De todo modo, o fato de que autores tão importantes enxergam a natureza da decisão do IRDR de forma diversa (controvérsia essa que não cabe discorrer a respeito no estrito campo deste trabalho), pouco interfere nas conclusões que se pretende alcançar neste artigo.
[13] MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas repetitivas: decisão de questão idêntica x precedente. 3 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil – Revista dos Tribunais, p. 24-26; 31.
[14] MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas repetitivas: decisão de questão idêntica x precedente. 3 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil – Revista dos Tribunais, p. 81-82; 85; 87; 95. Seguindo nas críticas, o autor assevera que “O incidente de resolução de demandas, nos termos em que está posto pelo Código de Processo Civil, constitui uma técnica que nega o direito fundamental de ação, ou seja, o direito a um dia perante a Corte, dando origem a uma espécie de “justiça dos cidadãos sem rosto e fala”, para a qual pouco importa saber se há participação ou, ao menos, “representação adequada”. […]
Mas a situação é ainda pior. O incidente não apenas cala os interessados, que na verdade são as pessoas que tiveram os seus direitos violados em massa e, assim, necessitam propor ações individuais que contêm questões prejudiciais idênticas. Bem vistas as coisas, o incidente privilegia aqueles que violam direitos ou produzem danos em massa. […]
Opta-se por uma estratégia em se nega participação aos lesados e se confere ao infrator oportunidade incondicional de estar presente no único local em que a questão resolvida. O incidente simplesmente prefere ignorar os lesados, da oportunidade para o afirmado violador ou responsável participar sem ter qualquer adversário capaz de representar aqueles que entendem que seus direitos foram violados. Diante do incidente, ao invés de se privilegiar o direito constitucional de participar dos lesados, consagra-se a oportunidade de o infrator sempre estar presente, concentrando esforços num único local. […]
Perceba-se que a força da representação adequada, no incidente, tem que ser mais vigorosa do que a presente na ação coletiva destinada à tutela de direitos individuais homogêneos, regulada pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor. É que a sentença de improcedência, nesta ação coletiva, não prejudica os representados que não ingressaram no processo coletivo na qualidade de litisconsortes (art. 103, § 2°, do CDC). (g.n.)” (op. cit, p. 89; 91; 97)
[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas repetitivas: decisão de questão idêntica x precedente. 3 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil – Revista dos Tribunais, p. 93-94.
[16] STJ, REsp n. 1.401.233/RS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 17/11/2015, DJe de 26/11/2015.
[17] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. IV, direitos reais. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 374
[18] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III, contratos. 1º edição eletrônica. Rio de Janeiro: Forense, 2003, item, 193.
[19] STF, RE 948634, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 20-10-2020, Processo Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-274, DIVULG 17-11-2020, PUBLIC 18-11-2020.
[20] Art. 6º, § 2º, do Decreto-lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB). A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
- 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
- 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
[21] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. I, introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 105.
[22] VELOSO, Zeno. Comentários à lei de introdução ao código civil. 2 ed. Belém: Umuama, 2006, p. 133.
[23] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 253.
[24] KREBS, Hélio Ricardo Diniz. Sistemas de precedentes e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 267-268.
[25] Sobre o assunto, em tom crítico, Luiz Guilherme Marinoni ressalta que, “O maior responsável pela orientação jurídica é o advogado. Em todas as democracias cabe à classe dos advogados a pesada e grave responsabilidade de orientar os cidadãos acerca dos seus direitos. É espantoso perceber, entretanto, que os advogados brasileiros não têm como orientar os seus clientes acerca dos direitos. Não lhes é possível orientá-los acerca do que devem esperar ao tomarem determinada postura diante de uma situação jurídica ou de um conflito, exatamente por nada poderem dizer, com algum grau de confiança, sobre as posições do Judiciário” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3 ed. São Paulo: RT, 2013, p. 175).
[26] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de direito civil: das obrigações, dos contratos e da responsabilidade civil, vol. II. 3 ed. São Paulo: RT, 2022, p. 591-592.
[27] STF, ADI 2591, Relator: Min. Carlos Velloso, Relator p/ Acórdão: Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/2006, DJ 29-09-2006.
[28] FERRAZ JR, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 248.