Não o “Eu” aposto ao egoista.
Por Marcelo Peregrino Ferreira – Membro Efetivo do IASC.
Lembrou-me cedo hoje o amigo Edmundo Arruda dos 140 anos do nascimento de Augusto dos Anjos, o grande poeta paraibano.
Autor de um livro, o conhecido “Eu”, sobreviveu às gerações pelo inusitado de sua obra. Não é o “eu” aposto a certas pessoas para lhes identificar o egoísmo, mas o “eu” que significa a entrega do poeta, a narração de si mesmo, uma oferta de si.
Poeta inclassificável, parnasiano, simbolista, as duas expressões estéticas da época, foi tragado pelo niilismo de autores em uma Europa que se encontrava com a Modernidade.
Spencer, Schopenhauer teriam permitido a Augusto dos Anjos dar uma dimensão universal para a tragédia próxima da Paraíba daqueles dias.
Ferreira Gullar afirma que a “realidade que o rodeava – marcada pela miséria física e social das famílias falidas, dos caboclos e negros famintos, do tio louco a vagar pelos matos” dava credibilidade aquele quadro de desintegração universal.
A vida em Augusto assume a feição de mera organização de “sangue e cal” destinada ao apodrecimento e desintegração dos leprosários, dos tuberculosos e dos vermes que ilustram a sonoridade única de seus poemas.
Essa leitura de Ferreira Gullar dá força à explicação material da existência humana e explica Augusto dos Anjos pelos autores que o influenciaram. A análise não explica a longevidade de sua obra. Acho que é uma poesia para ser declamada e ouvida em que se encontra a musicalidade de Cruz e Souza e de Alberto de Oliveira.
O “Eu” se tornou uma obra muito além do próprio autor e sobrevive na cultura popular e em cada centro acadêmico de direito, feito daquela realidade bruta e “antipóetica” dos versos, quando avisa: “Esse lugar, moços do mundo, vede: É o grande bebedouro coletivo, Onde os bandalhos, como um gado vivo, Todas as noites, vêm matar a sede!”.
Eis seu mais famoso soneto “Versos íntimos” em que a ingratidão, o beijo e o escarro se relacionam com a amizade e o sonho em imagens fortes do desalento:
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!