Só mais uma violência contra a mulher.
Por Tammy Fortunato* – Membro Efetivo do IASC.
Segundo o museu da tortura de Rothenburg ob der Tauber, localizado em uma pequena cidade da Alemanha, na época medieval colocavam uma pedra no pescoço de uma mulher e a jogavam no rio. Se ela afundasse, era considerada uma bruxa. Por óbvio, todas as mulheres lançadas ao rio com uma pedra no pescoço não retornavam a superfície, então eram bruxas.
Em um outro período da história, durante a inquisição, mulheres eram queimadas vivas, também por serem consideradas bruxas. O mais curioso é que para ser considerada bruxa, a mulher não precisava necessariamente mexer com feitiços, bastava ser bonita, simpática, despertar a lascívia masculina, entre outras qualidades.
A sociedade evoluiu, e mulheres deixaram de ser jogadas ao rio ou queimadas vivas em praça pública, mas continuam a serem julgadas e condenadas por serem bonitas, simpáticas e despertarem o desejo masculino.
Desejo este muitas vezes não correspondido. Ao não serem correspondidos, os homens remetem-se ao período medieval e precisam a qualquer custo provar (para si próprios) a sua masculinidade, e o fazem do modo mais cruel para uma mulher, abusando sexualmente da mesma.
O ato do estupro (abuso sexual) tem como objeto jurídico a violação da liberdade sexual. O crime de estupro que até pouco tempo era considerado um crime contra os costumes, passou a ser considerado como um crime contra a dignidade sexual, ferindo também a dignidade da pessoa humana.
Previsto em nosso ordenamento jurídico, no artigo 213 do Código Penal, o estupro que desde 2009 (Lei 12.015) é considerado crime hediondo, é conceituado por Nucci, 2009, p. 16, como: “toda forma de violência sexual para qualquer fim libidinoso, incluindo, por óbvio, a conjunção carnal” e ainda “significa coito forçado, violação sexual com emprego de violência física ou moral”.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, a cada 8 minutos uma mulher é vítima de estupro, sendo este considerado o crime com maior índice de subnotificação. Segundo Soraia Mendes (2020), somente de 10 a 35% das vítimas de violência sexual é que denunciam a violência sofrida e seus agressores.
A liberdade sexual da mulher é amplamente violada para que um homem possa saciar a sua necessidade de testar a masculinidade, comprovando para o seu ego que tem poder sobre a mulher, que a domina.
O estupro não precisa necessariamente ser cometido contra uma mulher, mas segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 85,7% das vítimas são do sexo feminino e, um dado ainda mais assustador nos é apresentado, quando demonstra que 57,9% das vítimas possuíam no máximo 13 anos de idade.
Meninas que não conhecem o significado da lascívia predominantemente masculina, têm a sua infância ceifada por atos de violência sexual.
O legislador agiu com um maior zelo ao diferenciar o estupro, do estupro de incapaz, ou seja, aquele cometido contra menores de 14 anos, independente de gênero, aplicando penas mais rígidas. Nucci, 2009, p. 34, apresenta o conceito de estupro de vulnerável: “(…) intitulando-o estupro de vulnerável. Observa-se, portanto, que o incapaz de consentir validamente para o ato sexual obteve uma denominação própria: vulnerável (passível de lesão, despido de proteção)”.
Despida de proteção também está a pessoa que não tiver discernimento necessário para o consentimento do ato sexual, (art.217-A, §1º), independente da idade, sendo considerada incapaz.
Incapaz, em muitas das vezes estão mulheres e meninas que violentamente não conseguem se desvencilhar do seu algoz, tornando-se “presas fáceis” para saciar a lascívia de alguém. São submetidas além da violência sexual, a violência física e psicológica.
Em tempos atuais não falamos mais em bruxas, mas ainda há a cultura da mulher que seduz, que se insinua, que enfeitiça o ser masculino, que provoca o estupro. A vítima é considerada culpada pela violência a qual foi submetida. Pensamentos retrógrados e que jamais poderiam justificar uma violência sexual.
Crianças são abusadas sexualmente, bebês são abusados sexualmente. Qual seria o poder de sedução de seres inocentes, mas tão “tão perigosos”?
O tempo fez com que a tecnologia evoluísse, e com tal evolução, as formas de abusos sexuais também evoluíram, tanto que atualmente, tem-se o chamado estupro virtual.
O estupro virtual também é uma forma de violação da liberdade sexual da mulher. Não há necessidade de contato físico para que caracterize o estupro, principalmente quando tratamos da forma virtual, bastando que haja algum tipo de ameaça, de constrangimento e chantagem, para que o ato libidinoso sem consentimento da vítima, sacie a lascívia do algoz.
A violação da liberdade sexual da mulher é uma das piores violências a que pode ser submetida. Pior ainda, é quando esta mulher amparada por vários dispositivos legais (nacionais e internacionais),clama por socorro, e o seu clamor é ignorado.
A mulher que já está fragilizada por ter tido abruptamente sua liberdade sexual violada, sofre ainda com a violação do princípio da dignidade da pessoa humana, e com a violência institucional quando o seu clamor é ignorado pelo sistema de Justiça.
A violência institucional é proveniente tanto da ação, quanto da omissão do Estado, aquele que deveria protegê-la de todas as formas. O Brasil é signatário de normas internacionais que visam prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, jamais podendo negar-lhe amparo.
Justamente por ser signatário de normas internacionais e não cumprindo o Estado ao que se propôs: prevenir, punir e erradicar às violências cometidas contra a mulher, deveriam os casos de violência institucional serem levados às Cortes Internacionais, objetivando punir o Estado, para que este cumpra fielmente o que se propôs a fazer: proteger a mulher.
* Tammy Fortunato, advogada inscrita na OAB/SC sob o nº 17.987, é pós graduada em Direito e Negócios Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências:
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Fiorelli, José Osmir; Mangini, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia Jurídica. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.
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