Sem causa não há efeito: a improbidade administrativa e a prescrição do ressarcimento ao erário.
Por Adriano Tavares da Silva* – Vice-Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC.
Na memorável obra de Ernest Hemingway, “O sol também se levanta”, Bill indaga a Mike: “Como você chegou à bancarrota?”. Mike retruca: “De duas formas: Primeiro lentamente, e então de repente.” Ao ser interrogado sobre os fatores que o levaram a tal estado, Mike atribui sua ruína financeira aos seus “amigos, os não verdadeiros”[1] e a uma grande quantidade de dívidas.
Mutatis mutandis, o mesmo se aplica aos direitos fundamentais. Primeiro lentamente, e então de repente, eles podem ser corroídos e terem sua eficácia limitada. Assim, como diria TS Eliot, as coisas acabam “not with a bang but a whimper” (não com um estrondo, mas com um lamento)[2].
Essa breve digressão literária vem ao caso diante de algumas ações ajuizadas pelo Ministério Público com a pretensão de ressarcimento ao erário por conta de ato doloso de improbidade, mesmo nos casos em que, paradoxalmente, o ato ímprobo sequer foi reconhecido judicialmente por meio de um direito fundamental mínimo: o devido processo legal.
Nesse sentido, é relevante a decisão monocrática[3] do Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no ARE 1.475.101, no qual enfatiza que apenas com o reconhecimento do ato doloso de improbidade administrativa é que se pode falar em danos ao erário, alinhando-se, assim, à tese do Tema 897 de repercussão geral. Na prática, isso significa que, na ausência de reconhecimento de ato doloso de improbidade, não se pode alegar danos ao erário para evitar a prescrição.
Essa decisão é relevante sobretudo porque, no referido Tema 897, fixou-se a tese segundo a qual são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. Dessa maneira, em conformidade com a interpretação adotada pelo Ministério Público, poder-se-ia ajuizar a ação de ressarcimento deste tipo a qualquer tempo, vez que imprescritíveis, desde que houvesse a menção à improbidade.
De forma complementar, é de se ressaltar que o Ministro Teori Zavascki, no Tema 666, fixou entendimento no sentido de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.
O motivo para essa distinção, conforme o Ministro Teori, se funda no fato de que a imprescritibilidade prevista no artigo 37, §5º da Constituição “diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais”.
Em outros termos: é insustentável juridicamente valer-se da noção de improbidade, não reconhecida no devido processo legal, para obter-se a imprescritibilidade.
Justamente por isso, o Ministro Alexandre de Moraes foi categórico no ARE 1.475.101: “diferentemente do que alega o MP, a condenação pela prática do ato de improbidade é sim pressuposto do reconhecimento da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário. No caso, reconhecida a prescrição da ação de improbidade, não há como se aplicar a tese do Tema 897 da repercussão geral [no sentido de se aplicar a imprescritibilidade – inserção nossa].”
Este entendimento traz luz a uma questão frequentemente debatida no direito administrativo: a impossibilidade de classificar condutas como atos de improbidade administrativa sem a devida observância do processo legal, com o intuito de impedir a prescrição. A ideia subjacente aqui, portanto, é garantir um direito fundamental: o devido processo legal, como enfatiza o próprio Ministro na redação do Tema 897:
“Com efeito, o Plenário decidiu, com toda a clareza, que: (…) compete ao Ministério Público comprovar a prática do ato de improbidade administrativa doloso, desde que tipificado na Lei 8.429/1992, e não somente a existência do dano, garantindo-se ampla defesa ao réu”.
Trata-se, em última análise, de uma afirmação quase que logicamente necessária: para se exigir a reparação ao erário por ato atribuível a ato reputado ímprobo é preciso a comprovação do ato, com o devido dolo subjetivo, assim como o dano efetivamente causado, tudo isso em um processo conforme as disposições legais.
Em termos jurisprudenciais, o Tribunal de Justiça de São Paulo, reconheceu a validade desse modus pensandi na decisão que deu origem ao ARE 1.475.101, nos seguintes termos:
Condutas imputadas aos réus que não foram declaradas ímprobas judicialmente. Pretensão punitiva prescrita, nos termos no art. 23, da Lei 8.429/92, diante do decurso de prazo superior a cinco anos entre as datas do desligamento do corréu Ademir do cargo de Secretário Municipal de Saúde e do término do contrato celebrado com a empresa Home Care Medical Ltda e o ajuizamento da ação. Prescrição. Ocorrência. Processo extinto, com resolução do mérito (art. 487, II, do CPC). Prejudicado o pedido de conversão da ação de improbidade em ação civil pública de ressarcimento ao erário. Agravo de instrumento provido. (TJ-SP – AI: 20474061720228260000 SP 2047406-17.2022.8.26.0000, Relator: Paulo Galizia, Data de Julgamento: 18/08/2022, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 18/08/2022)
O raciocínio aqui é claro: uma vez constatada a prescrição da improbidade, não há que se falar na imprescritibilidade do ajuizamento da pretensão de ressarcimento fundada em ato doloso de improbidade, vez que uma é requisito da outra.
Não sem razão, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 1.634.627, fixou entendimento de que o “ressarcimento ao erário tem como causa de pedir a ocorrência de um ato de improbidade administrativa, inocorrente na hipótese, à míngua do elemento subjetivo”, ou seja, a Corte infraconstitucional já firmava, em seus precedentes, a necessidade de reconhecimento da prática de ato de improbidade administrativa tipificado na Lei 8.429/1992 para que se pudesse falar em imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário (verbi gratia: AgInt no REsp 1.532.741/ES, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 10.08.2020, DJe 13.08.2020).
Portanto, mais do que reconhecer a validade de um raciocínio jurídico básico (i. e., de que sem a causa não há o efeito), trata-se aqui de, verdadeiramente, proteger o direito fundamental ao devido processo legal.
E, justamente nesse sentido, é de se admitir que, sem seguir o devido processo legal, é inviável classificar, em uma ação de ressarcimento ao erário, as ações dos réus como atos de improbidade administrativa para impedir o reconhecimento da prescrição, sob pena de se violar esses direitos fundamentais.
Assim, evita-se que os direitos fundamentais acabem como um lamento, para retomar TS Eliot.
*Adriano Tavares da Silva – Advogado, sócio fundador do escritório Tavares & Advogados Associados, sediado em Florianópolis – SC. Mestrando em Ciência Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL); Pós-Graduado em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC); Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina (OAB/SC); Vice-Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC); Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina (OAB/SC) e Membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (AACRIMESC).
[1] HEMINGWAY, Ernest. The Sun also rises. Estados Unidos da América: JAD Publishing Ltds, 2022
[2] ELIOT, T.S. The Waste Land. London: Faber & Faber, 1922.
[3] Agravo Interno interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, o qual objetiva a reforma de uma decisão monocrática. Pautado para julgamento no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal no dia 2 de abril de 2024, houve a manifestação dos Ministros Alexandre de Moraes, na qualidade de Relator, e Cristiano Zanin, ambos posicionando-se pelo não provimento do agravo, mantendo, assim, a decisão agravada em seus termos originais. Contrapondo-se a esta corrente, os Ministros Cármen Lúcia e Flávio Dino votaram pelo provimento do recurso, defendendo a procedência do pedido formulado pelo Ministério Público. Neste contexto, diante da necessidade de um exame mais aprofundado dos autos, o Ministro Luiz Fux requereu vista, suspendendo temporariamente o julgamento, sem data de julgamento.