REFLEXÕES SOBRE LIBERDADE, BUROCRACIA E SEGURANÇA JURÍDICA.
Por Claude Pasteur de Andrade Faria – Membro Efetivo do IASC, Engenheiro, Advogado e Ex-procurador chefe do CREA/SC*.
Existem vários significados para a palavra liberdade, tantos quantos se necessite para justificar até mesmo atos totalitários (desde que praticados em nome da “democracia”). Neste sucinto artigo, vou usar o conceito de liberdade empregado por John Stuart Mill em sua obra “Sobre a Liberdade”, que é um conceito civil ou social: a natureza ou os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo.
O conflito entre liberdade e autoridade é um dos aspectos mais importantes da história, passando pela Grécia e Roma antigas até a Inglaterra, com a publicação da Magna Carta em 1215, que limitou os poderes do rei João Sem-Terra; e a Revolução Gloriosa de 1688, que pôs fim ao absolutismo e criou o primeiro regime monárquico parlamentarista do mundo com divisão de poderes e respeito à lei por todos, inclusive pelo monarca.
Liberdade, em termos políticos, significa a proteção do povo contra a tirania, especialmente a exercida por governantes, eleitos ou não, e por burocratas, geralmente não eleitos. Esta é a forma de usurpação da liberdade mais comum nos dias de hoje, presente em quase todos os países, mesmo os que se afirmam democráticos. O liberalismo econômico e político, tal como defendido por John Locke, Adam Smith, Edmund Burke e, mais recentemente, por Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, é apenas um fantasma do passado, tendo florescido na Inglaterra dos séculos XVII a XIX, mas enterrado no século XX pelo aparecimento de diversas ideologias totalitárias calcadas principalmente nos escritos de Platão, Jean Jacques Rousseau e Karl Marx (ver a esse respeito, entre outros: The Open Society & its Enemies, de Karl Popper; e The Opium of the Intellectuals, de Raymond Aron).
Existe uma distinção fundamental entre Estado e Governo, da qual muitas pessoas não possuem uma noção precisa. Enquanto o Estado é uma instituição permanente, o Governo é uma estrutura temporária, que tem o objetivo de administrar o Estado por determinado período por meio de órgãos e instituições públicos, de agentes políticos (eleitos ou não) e de uma burocracia estável formada por agentes públicos e servidores.
O Estado é uma instituição que concentra uma sociedade dentro de um território determinado (pátria) e detém os poderes de legislar e reprimir. Os modelos de Estado nos moldes atuais necessitam de uma estrutura administrativa complexa e de uma rede de cobrança de impostos para sustentar suas atividades, além de um plexo de valores culturais, sociais, morais e religiosos que unam sua população em torno de objetivos comuns. O braço fundamental de qualquer Estado moderno é sua burocracia, que pode assumir grande relevância e deter mais poderes efetivos que os dos governantes eleitos.
Muito poder aos governos e à burocracia torna a sociedade sujeita a ser escrava e dependente do Estado. Nenhuma nação desenvolvida pode ser construída exclusivamente sobre estes princípios, e o grande exemplo disso são os Estados Unidos da América, a maior e mais estável democracia do mundo, fundada em princípios liberais e firmes valores morais, tornando-se a mais forte economia do mundo (pelo menos até este momento).
Por isso, as nações modernas possuem um sistema de legislação complexo e hierarquizado, que pode ir desde uma Constituição, passando por leis complementares, leis ordinárias, decretos, resoluções, portarias, visando exatamente a disciplinar o poder dos governantes e da própria burocracia estatal. Para garantir a aplicação dessas leis de forma isonômica, existe um poder judiciário autônomo e profissional, com atribuições e competências garantidas pelo próprio sistema legal vigente.
A principal função do sistema judicial de um país, além de aplicar as leis e as punições previstas no ordenamento jurídico, é garantir aos cidadãos aquilo que se convencionou chamar de Segurança Jurídica.
Segurança Jurídica, como a entendemos modernamente, é a estabilidade e continuidade da ordem jurídica, bem como a previsibilidade das decisões judiciais, sem a qual é impossível aos cidadãos saberem como suas condutas serão julgadas desde que violem qualquer dispositivo legal. Não há Estado de Direito sem segurança jurídica.
A Constituição Brasileira de 1988 refere-se à segurança como valor fundamental, logo no caput do artigo 5º, sendo um direito inviolável ao lado dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. Mesmo não sendo tratada como direito fundamental, a Constituição tutela o valor segurança (principalmente a jurídica) em vários princípios, entre eles o da legalidade, da inviolabilidade do direito adquirido, da garantia da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, da legalidade e anterioridade em matéria penal, entre outros.
O Poder Judiciário, no exercício de suas competências, tem o dever de tutelar a segurança jurídica, não praticando nem permitindo que se pratiquem atos ou decisões que possam colocá-la em risco. Os cidadãos precisam ter a certeza de que o Estado, por meio de seu aparato burocrático e judicial, se comportará sempre de acordo com o direito positivado, fazendo-o valer quando necessário e punindo os que o violam. Sem essa segurança fundamental não pode haver um estado de direito que permita o florescimento das atividades empresariais, técnicas, culturais, artísticas, ou seja, que permita o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, respeitados as liberdades e os direitos individuais e naturais dos indivíduos.
Em vista dessas breves considerações, pode-se afirmar, com certeza que hoje, no Brasil, o valor segurança jurídica não existe mais na forma como concebido pela filosofia liberal e garantido em nossa Constituição. Nosso sistema jurídico atual é incapaz de garantir qualquer tipo de previsibilidade e estabilidade às decisões judiciais, em especial àquelas advindas das cortes superiores, sendo o caso mais emblemático o do STF – Supremo Tribunal Federal, outrora um órgão jurisdicional respeitado, mas que foi intencional e desastrosamente desvirtuado por conta do seu aparelhamento político.
O Brasil se vê hoje dominado por uma casta quase intocável de servidores públicos nomeados para uma corte suprema de justiça que de há muito deixou de cumprir seu papel de guardiã da Constituição, agindo exatamente de forma contrária, violando-a, rasgando-a e conspurcando o sentido literal de suas normas ao bel prazer e conveniência política dos intérpretes de ocasião.
Os exemplos que poderíamos mencionar aqui são inumeráveis. Começamos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, ocasião em que o presidente do STF de então, ministro Ricardo Lewandowski, fatiou a constituição para garantir os direitos políticos à presidente impedida, quando a constituição previa a perda desses mesmos direitos.
Mais tarde, por uma técnica de hermenêutica chamada “mutação constitucional”, o STF alterou o artigo 226 da Constituição, que prevê a família como união estável entre “o homem e a mulher”, para estender esse conceito aos casais homossexuais, que, diga-se de passagem, já tinham o direito garantido à união estável de natureza civil. Essa decisão (não penso que tenha sido injusta, mas que deveria ter sido tomada pelo poder legislativo) produziu efeitos em cascata em toda a burocracia, obrigando os cartórios a registrarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Em outro julgamento, dessa vez sobre a prisão de funcionários de uma clínica clandestina de abortos, em 2016 (HC 124.306/RJ), o STF, com o voto condutor do “iluministro” Luís Roberto Barroso, acabou reconhecendo a possibilidade de aborto até o terceiro mês de gestação, sem qualquer previsão legal nesse sentido. O STF se substituiu ao legislativo e inovou no sistema penal brasileiro.
Pessoas “trans” tiveram concedido pelo STF, em 2018, o direito de alterar seus nomes diretamente em cartório, sem precisar propor ação judicial, direito que não era concedido às pessoas “cis”, violando frontalmente o artigo 5º da Constituição, que trata da isonomia entre os cidadãos perante a lei. Somente há pouco tempo o Congresso legislou nesse sentido e garantiu o mesmo direito a todos os cidadãos.
Em junho de 2018, o STF suspendeu a minirreforma eleitoral que determinava a instalação de voto impresso nas urnas eletrônicas. Como não havia fundamento constitucional para essa decisão, os ativistas políticos do STF entenderam que a lei “violava o sigilo do voto” (!), embora todos soubessem que os votos impressos ficariam depositados dentro de uma urna lacrada e inviolável.
Mas o caso mais grave de ativismo judicial do STF, no meu entender, foi o julgamento da ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) de nº 26, no ano de 2019. Nesse triste episódio, o STF criou mais um tipo penal no direito brasileiro, que passou a ser chamado de “crime de homofobia”, equiparando-o ao crime de racismo previsto na Lei 7.716/89, violando o princípio (cláusula pétrea) do artigo 5º, XXXIX, da Constituição, que afirma que “não há crime sem LEI ANTERIOR que o defina”, conhecido como Princípio da Legalidade Penal, estipulado logo no artigo 1º do Código Penal.
Ninguém pode ser obrigado a responder por um crime que não tenha previsão expressa em lei. Essa é talvez a garantia mais essencial ligada à segurança jurídica em qualquer país democrático que se pretenda um estado de direito. Violar esse princípio é colocar todos os cidadãos sob o arbítrio absoluto do Estado.
Para encerrar, cito os famigerados inquéritos inconstitucionais e ilegais que vêm sendo conduzidos no STF pelo ministro Alexandre de Moraes, com claros objetivos políticos, no âmbito dos quais as maiores atrocidades jurídicas de que se têm notícia no Brasil vêm ocorrendo sob o olhar complacente do Senado brasileiro e de outras autoridades da República.
Censura prévia; prisões ilegais, inclusive de deputado no exercício do mandato; prisão e exílio de jornalistas por delitos de opinião; bloqueio de redes sociais e de contas bancárias de empresários e apoiadores de determinada corrente política, com base apenas em notícias veiculadas na mídia; desmonetização de canais na internet; multas processuais absurdas sem previsão legal; bloqueio de conta-salário de deputado e de sua esposa advogada; proibição de advogados de terem vista aos autos dos processos; essas são apenas algumas das ilegalidades que vêm sendo praticadas pelo STF, em atos patentes de abuso de autoridade e de violação da lei da magistratura. O próprio ministro Alexandre de Moraes confessou recentemente, em entrevista a um cabal de televisão, que intencionalmente violou a constituição e as leis processuais penais devido “à omissão da Polícia Federal” e para “garantir a democracia”. Se isto não é conduta passível de impedimento e até mesmo de processo criminal, não sei mais o que possa ser.
O mais grave de todo esse aspecto é que a violação da segurança jurídica pela cúpula do poder judiciário incentiva toda e estrutura judicial inferior e a própria Administração Pública a seguir o exemplo.
Sem liberdade e sem segurança jurídica nenhuma nação se torna próspera. Essa lição tão antiga parece que cada vez mais vai sendo esquecida pelos ministros “iluministas” do STF, para os quais as leis positivadas e as estruturas sociais consolidadas não podem ser obstáculos para suas decisões “progressistas”, “racionais” e acima de qualquer escrutínio da sociedade.
Claude Pasteur de Andrade Faria ,Eng. Eletricista e Advogado, Crea-SC 8.958-4 / OAB-SC 27. 253, Ex-presidente da Associação Catarinense de Engenheiros, Ex-procurador chefe do Crea-SC.
Boa noite:
Esta verve pela escrita, com posições claras e inteligíveis, o Claude trás do seu pai Dr. Osmard Faria, o qual não tive o privilégio de conhecer pessoalmente mas intimamente através dos livros de sua autoria.
Tenho profunda admiração e respeito pelo Claude e ser seu amigo, é um privilégio.
Este texto é o resumo da ópera bufa que somos obrigados a assistir!
Parabéns Claude e obrigado por nos emprestares a tua inteligência.