A indenização por danos morais nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher
Por Paula Frello Nogara Naschenweng – Membro da Comissão de Combate às Violências Contra a Mulher.
A violência perpetrada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar consiste em uma das formas de violação dos direitos humanos daquela que, durante muito tempo, encontrou-se e, em alguns casos ainda se encontra, em situação de hipossuficiência e de discriminação sociais.
Dessa forma, fez-se necessária a elaboração de um sistema especial de proteção dos seus direitos fundamentais e da sua integridade física e psicológica, através de previsões normativas específicas que a tutelassem.
A composição desse conjunto sistematizado de normas se iniciou por meio da ratificação, pelo Brasil, de tratados e de convenções internacionais acerca do tema, com a devida expedição de decreto presidencial promulgando-os[1].
O referido sistema legal complementou-se com a publicação da Lei Maria da Penha, no ano de 2006, a qual define como sendo violência doméstica e familiar contra a mulher:
“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, praticada no âmbito “da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”[2].
Esta lei trouxe uma estrutura voltada às particularidades ínsitas às situações de violência doméstica ao prever mecanismos de prevenção a essas formas de agressão, de assistência às vítimas, de políticas públicas e de punição mais rigorosa para os agressores, medidas essas aperfeiçoadas por meio das alterações legislativas posteriormente sofridas.
Nesse viés, dentre outras previsões, triplicou a pena para lesão corporal leve no âmbito doméstico; previu medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, com o possível auxílio da força policial para fazê-las cumprir; permitiu a prisão em flagrante dos agressores; proibiu a concessão de liberdade provisória ao ofensor preso nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade de medida protetiva de urgência; proibiu a substituição da pena de detenção pelo pagamento de multa ou fornecimento de cestas básicas e tipificou o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência deferida pelo juízo cível, infração essa que autoriza a prisão em flagrante do transgressor.
Completando a gama de instrumentos jurídicos aptos a salvaguardar a proteção física e psicológica da mulher, a partir de 2018 tornou-se viável a reparação civil decorrente de sentença condenatória no âmbito criminal nos casos de violência doméstica e familiar cometida contra ela.
Essa possibilidade surgiu após o julgamento de recursos especiais repetitivos pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, o qual, por unanimidade, firmou a seguinte tese:
Tema 983: Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória[3].
A formulação de pedido expresso pelo Ministério Público ou pela parte ofendida, tal qual exige a tese fixada, objetiva assegurar a observância às garantias do contraditório e da ampla defesa e, por consequência, a regularidade do processo.
Nesse sentido, ainda que desacompanhada de valor determinado, a formulação de pedido específico mostra-se suficiente para que o juiz fixe o quantum mínimo indenizatório, sem prejuízo de requerimento complementar, pelo interessado, na seara cível. Entretanto, neste caso será necessária a respectiva instrução probatória.
Atente-se que, conforme mencionado, embora o dano moral no âmbito cível exija a produção de provas apta a demonstrar a conduta comissiva ou omissiva do agente, o dano sofrido e o nexo de causalidade entre ambos, no pedido de indenização por dano moral formulado na esfera criminal, em decorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, não há falar em instrução probatória específica acerca da ocorrência, da extensão e da profundidade do dano, pois se trata de dano presumido, o denominado dano in re ipsa[4].
Nesse sentido, o relator dos recursos especiais, Ministro Rogério Schietti Cruz, afirma que o direito à indenização é intrínseco à própria condição de vítima de violência doméstica e familiar, de modo que:
[…] a Lei Maria da Penha passou a permitir que um juízo único – o criminal – possa decidir sobre quantificações que estão relacionadas à dor, ao sofrimento e à humilhação da vítima, que derivam da própria prática criminosa e, portanto, possuem difícil mensuração e comprovação.
[…] O que se há de exigir como prova, mediante o respeito às regras do devido processo penal – notadamente as que derivam dos princípios do contraditório e da ampla defesa –, é a própria imputação criminosa – sob a regra, derivada da presunção de inocência, de que o onus probandi é integralmente do órgão de acusação –, porque, uma vez demonstrada a agressão à mulher, os danos psíquicos dela derivados são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados[5].
Destarte, com a novel tese do Superior Tribunal de Justiça, o rol das consequências decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher foi ampliado e passou a abranger a reparação civil por dano moral causado pelo ofensor contra a vítima.
Acerca da quantificação indenizatória, a presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, Adélia Moreira Pessoa, destaca que na aferição do referido valor deve haver a “ponderação das circunstâncias do caso concreto”, tais como a análise da gravidade do ilícito e da condição socioeconômica tanto da ofendida quanto do ofensor[6].
O montante da indenização não deve, pois, ser irrisório a ponto de não trazer reflexo patrimonial ao agressor nem exorbitante de forma a ensejar o enriquecimento indevido da vítima, amoldando-se o mais adequadamente possível às particularidades de cada caso, sempre em observância à proporcionalidade e à razoabilidade[7].
Isso porque o valor fixado a título de danos morais não tem apenas cunho reparatório, possuindo igualmente caráter sancionatório, pedagógico, preventivo e repressor, e objetiva desestimular o ofensor a repetir tais atos.
Dessa forma, mostra-se imperioso aos operadores do direito, sobretudo aos atuantes na área da violência doméstica, o conhecimento acerca da novidade jurisprudencial implementada pelo Superior Tribunal de Justiça, de modo a possibilitar que o agressor seja responsabilizado pelo ilícito praticado e sofra as respectivas consequências, inclusive a financeira, com a fixação de indenização por dano moral causado à vítima de seus atos.
[1] GIMENES, Eron Veríssimo; ALFERES, Priscila Bianchini de Assunção. Lei Maria da Penha explicada: Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006: atualizada até a Lei nº 13.894, de 29 de outubro de 2019: doutrina e prática. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2020. p. 28-30.
[2] Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Acesso em 04/06/2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
[3] Tema/Repetitivo 983, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Terceira Seção, Julgado em 28/02/2018, Publicado em 08/03/2018. Acesso em: 04/06/2020. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=983&cod_tema_final=983
[4] Dano moral mínimo pode ser incluído em condenação por violência doméstica contra a mulher. IBDFAM, 07 de março de 2018. Acesso em 04/06/2020. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/6549/Dano+moral+m%C3%ADnimo+pode+ser+inclu%C3%ADdo+em+condena%C3%A7%C3%A3o+por+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica+contra+a+mulher
[5] Tema/Repetitivo 983, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Terceira Seção, Julgado em 28/02/2018, Publicado em 08/03/2018. Acesso em: 04/06/2020. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=983&cod_tema_final=983
[6] TJDFT invoca tese do STJ e condena homem, que praticou violência doméstica, a pagar indenização por danos morais. IBDFAM, 23 de outubro de 2018. Acesso em 04/06/2020. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/6797/TJDFT+invoca+tese+do+STJ+e+condena+homem%2C+que+praticou+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica%2C+a+pagar+indeniza%C3%A7%C3%A3o+por+danos+morais
[7] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. p. 541.