A isonomia intrínseca a Lei Maria da Penha
Por Bruna dos Anjos* – Membro Efetivo do IASC.
Inicialmente, imperioso destacar que a Lei Maria da Penha (11.340/06) não fere o princípio da isonomia assegurado no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, o qual preconiza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
De fato, o próprio STF declarou na ADC 19 a constitucionalidade da proteção penal diferenciada da ofendida mulher, por entender se tratar de uma situação de discriminação positiva ou ação positiva, em que se estabelece uma diferenciação formal (perante a lei) para alcançar uma igualdade material.
Neste ponto, busca-se assegurar uma efetiva igualdade substantiva de proteção jurídica da mulher contra a violência baseada em gênero através de atuação positiva do legislador, superando qualquer concepção meramente formal de igualdade, de modo a eliminar os obstáculos, sejam físicos, econômicos, sociais ou culturais, que impedem a sua concretização, segundo as precisas lições da Min. Rosa Weber, em voto proferido por ocasião do julgamento da ADC 19 pelo STF.
Publicada no ano de 2006, a Lei Maria da Penha surgiu no intuito de cumprir as recomendações consignadas no Relatório n. 54/2001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em virtude de denúncia feita pela vítima Maria da Penha Maia Fernandes, através das entidades não governamentais Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), assim como para dar efetivo cumprimento ao comando constitucional previsto no art. 226, §8º da CF.
Por meio do aludido Relatório, a Comissão concluiu que o Estado Brasileiro descumpriu as obrigações previstas no art. 7º da Convenção de Belém do Pará e nos arts. 1º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo sido recomendado o prosseguimento e intensificação do processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial, as recomendações:
simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera (relatório n. 54/2001, Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes, 04 de abril de 2001).
Conforme amplamente noticiado, Maria da Penha Maia Fernandes é uma professora universitária que virou símbolo da violência doméstica contra a mulher por ter sido vítima, em duas ocasiões, de tentativa de homicídio por seu então marido – também professor universitário, na década de 80 – a primeira com um disparo de arma de fogo, que a deixou paraplégica, a segunda por afogamento e eletrocussão – e a punição só foi concretizada após atuação de organismos internacionais, passados mais de 15 anos da data do fato.
Dentre os inúmeros compromissos internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro em convenções internacionais, merecem destaque a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994).
No âmbito das Nações Unidas (ONU), os direitos das mulheres encontram-se previstos tanto na CEDAW como na Declaração. Muito embora a Convenção não disponha especificamente sobre a temática da violência doméstica, o documento ressalta a proteção das mulheres contra todas as formas de discriminação, exortando os Estados-Partes a promoverem a plena igualdade de gênero como forma de alcançar o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da paz.
A Declaração, por sua vez, destaca que a violência contra as mulheres constitui violação dos seus direitos e liberdades fundamentais que destrói ou compromete o gozo de tais direitos e liberdades, reconhecendo que a violência contra a mulher constitui uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que conduziram ao domínio e à discriminação das mulheres por parte dos homens, impedindo seu pleno desenvolvimento.
Na esfera regional, orientada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher como: qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Ainda segundo a Convenção, a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.
Neste diapasão, para que ocorra a incidência da Lei 11.340/06 no direito brasileiro, é necessário que haja violência, nas formas do artigo 7°, (i) física (ii) psicológica (iii) sexual (iv) patrimonial (v) moral, dentro de uma das situações de vulnerabilidade, elencadas no artigo 5°, (i) doméstica (ii) familiar (iii) afetiva, com o sujeito passivo mulher (ofendida mulher), e aqui cumpre sublinhar que a lei abrange o gênero mulher, ou seja, identidade/psique feminina. Ainda, o cumprimento dessas 3 (três) condições são cumulativos, assim, na falta de qualquer um deles a Lei não opera.
Com relação ao aspecto processual da Lei em comento, ressalta-se que a Lei Maria da Penha vale-se dos crimes tipificados no Código Penal, sendo até o ano de 2018 uma lei tão somente procedimental, não prevendo crimes, contudo, passou a recepcionar um crime, previsto em seu artigo 24-A, para o descumprimento de medida protetiva, que acrescenta restrições quando configurada sua incidência.
Ademais, uma das principais consequências da Lei 11.340/06 é a retirada de qualquer infração penal do Juizado Especial Criminal, portanto, quando configurada sua incidência, independente da pena prevista para o crime cometido, sua natureza é grave e não mais de menor potencial ofensivo, razão pela qual não admite as penas de prestação pecuniária inominada (ex: cesta básica), prestação pecuniária ou multa isolada, aqui merece um parênteses (multa cumulada com outra pena pode). Além disso, visa vedar a precificação, de transformar violência em preço.
Por fim, muito embora a Lei Maria da Penha represente um considerável e necessário avanço na proteção e promoção da igualdade de gênero sob o aspecto material, o Brasil ainda ostenta o 5º lugar no ranking mundial de violência contra as mulheres, segundo o Mapa da Violência 2015 – ONU, portanto, mostra-se essencial o fortalecimento de uma cultura de igualdade de gênero, e, acima de tudo, a confiança de que a Lei Maria da Penha é um instrumento compensatório dos danos históricos suportados pela mulher.
Bruna dos Anjos. Advogada. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina e da Comissão de Combate à Violência Doméstica.