O DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO NO CONTEXTO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE JURÍDICA E COMPARATIVA.
Por Thays Silva Gonçalves Martins* – Advogada.
Introdução
A transformação digital introduziu a ultraconexão, Esse fenômeno é intensificado pela cultura de disponibilidade permanente, exacerbada pelos smartphones e pelo trabalho remoto. A longo prazo, a ultraconectividade pode levar ao esgotamento profissional (burnout), a redução da produtividade e problemas de saúde mental, um declínio na satisfação no trabalho e na qualidade de vida.
O uso de dispositivos tecnológicos aumenta significativamente a eficiência do trabalho, porém traz o desafio de manter os trabalhadores disponíveis fora de seus horários regulares de trabalho. Isso permite que o empregador contate os empregados durante o tempo destinado ao seu descanso, afetando especialmente aqueles envolvidos em atividades intelectuais.
Surge, assim, a discussão sobre a importância do direito à desconexão do trabalho, evidenciando a necessidade de políticas que promovam um equilíbrio saudável entre trabalho e descanso, protegendo o bem-estar dos trabalhadores.
A evolução nas formas de comunicação no ambiente laboral
A evolução do formato de trabalho no Brasil ao longo das décadas reflete a integração progressiva da tecnologia. Na década de 1970, com a expansão industrial, as práticas laborais eram predominantemente manuais e a comunicação era limitada a métodos tradicionais como telefone e correspondências. Nos anos 80 e 90, a chegada dos computadores pessoais e a internet começaram a transformar o ambiente de trabalho, aumentando a eficiência e a conectividade.
O início dos anos 2000 houve uma aceleração na adoção de tecnologias de informação, consolidando o uso do e-mail e da internet como ferramentas essenciais. Na última década, o surgimento de smartphones e a expansão da banda larga facilitaram a ultraconectividade e o trabalho remoto, trazendo novos desafios e oportunidades para o mercado de trabalho no Brasil, acentuando-se ainda mais com a pandemia da COVID-19.
Como consequência, foi consolidado o direito que encerrou o debate na esfera jurídica sobre o trabalho remoto, expandindo as modalidades de trabalho à distância. Contudo, não abordou de maneira específica certas restrições. Esse conceito de restrições refere-se à garantia legal de que todos os trabalhadores tenham o direito de dedicar o tempo fora do horário de trabalho a atividades de lazer, compromissos familiares ou outros interesses que não estejam vinculados às suas obrigações profissionais.
Da limitação de jornada à luz da Constituição e CLT
As leis do trabalho têm o objetivo de assegurar que os empregados desfrutem de um ambiente de trabalho apropriado, que preserve sua saúde física e mental, e que possibilitem a eles se desligarem das atividades laborais nos períodos de descanso.
Os limites da jornada de trabalho, os intervalos intra e interjornadas e o descanso semanal remunerado estão inseridos nas normas de ordem pública, protegidos pela Constituição Federal, em seu art. 7º (BRASIL, 1988), e pela CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1943).
O art. 7º, incisos XIII e XXII da CRFB/88, estabelecem como direitos sociais:
XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
As mencionadas normas objetivam “garantir ao trabalhador o momento de descanso para repor suas energias físicas e mentais, e poder gozar dos meios de sociabilidades afetas a cada indivíduo” (CARDOSO, 2015), além de possibilitar o exercício do direito fundamental à conciliação da vida pessoal, familiar e laboral (SILVA, 2013).
A legislação trabalhista tem como finalidade proporcionar aos empregados um ambiente de trabalho que resguarde tanto a saúde física quanto a mental, garantindo que possam efetivamente se afastar das suas funções laborais durante os períodos de descanso.
Para o cenário atual, tem-se que a regulamentação dos direitos relativos à jornada laboral deve ser moldada de acordo com o contexto em que é implementada, refletindo as transformações nas relações de trabalho e buscando a eficácia das normas de proteção.
Neste panorama de mudanças, o direito à desconexão laboral se insere como uma adaptação das normas jurídicas que regem o controle da jornada de trabalho na era digital. Essa adaptação visa garantir a plena eficácia desses direitos fundamentais, assegurando que os trabalhadores possam se afastar das exigências do trabalho fora do horário estabelecido.
Do direto à desconexão do trabalho no Brasil
O fundamento do direito à desconexão se apoia nos princípios que orientam a aplicação do Direito do Trabalho no Brasil. Esses princípios buscam proteger o trabalhador contra o desequilíbrio de poder econômico do empregador, garantindo condições justas de trabalho e a manutenção da saúde e bem-estar do empregado, visto que “à constatação fática da diferenciação social, econômica e política entre os sujeitos da relação justrabalhista” (DELGADO, 2017).
Na esfera da jurisprudência trabalhista, a ausência de uma legislação específica que formalize o direito à desconexão leva à necessidade de recorrer a outros dispositivos legais para garantir o direito ao descanso adequado e o controle apropriado da jornada de trabalho.
Ressalta-se que a não observância do direito à desconexão pode resultar em várias consequências jurídicas, dependendo do uso dos dispositivos digitais. Essas consequências variam se os dispositivos são usados para manter o empregado em um estado de prontidão, aguardando chamadas para trabalho; se são para a execução de tarefas fora do ambiente de trabalho; ou se servem para transmitir informações relacionadas ao trabalho, mantendo o empregado perpetuamente conectado.
A violação contínua do direito à desconexão, caracterizando-se a jornada exaustiva pela interrupção constante dos períodos de descanso do empregado, pode caracterizar o dano moral, em razão do cotidiano de trabalho expor à potencialidade de trabalhar durante o período destinado ao descanso (GÓIS, 2015), caso em que surge o dever do empregador de indenizar aquele que sobre o qual a lesão foi praticada por sucessivas vezes, principalmente quando se configura como jornada exaustiva.
O entendimento encontra amparo nos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), pois “quando as horas extras se tornam ordinárias, deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo da ilegalidade” (SOUTO MAIOR, 2003), por se tratar de conduta patronal que viola o direito aos intervalos e descansos previstos na legislação trabalhista.
O art. 187 do Código Civil (BRASIL, 2002), trata do abuso de direito, considerando ato ilícito aquele que ocorre quando o titular de um direito o exerce de maneira a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Na seara da duração do trabalho, o ordenamento jurídico confere ao empregador o direito de exigir do empregado o labor além do limite de oito horas diárias, limitada a duas. Porém, trata-se de horas de trabalho extraordinário que, se tornado habitual, constitui abuso de direito, eis que a limitação de jornada é norma de ordem pública. (PONZILACQUA, 2022).
O uso dos equipamentos tecnológicos que caracterizam uma extensão de jornada, e por assim dizer, uma jornada exaustiva, conduz ao chamado dano existencial, onde, uma vez que reprime o empregado de dispor livremente de seu descanso.
Este referido dano, o existencial, não se concretiza apenas pela prestação do trabalho em si, mas pelo abuso do empregador, em realizar contato com o empregado nos momentos em que deve gozar de seu tempo livre, para deixá-lo ciente de questões relativas ao trabalho, ou promover cobranças. Ou seja, qualquer contato que afete o seu tempo de desconexão ao trabalho.
Constata-se, portanto, que a garantia do direito à desconexão do trabalho no Brasil, na ausência de uma legislação explícita sobre o tema, advém de uma interpretação conjunta dos dispositivos constitucionais que protegem o trabalho, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida privada, entre outros.
Uma vez reconhecido o direito à desconexão no ordenamento jurídico nacional, torna-se viável demandar judicialmente a sua observância ou solicitar reparação por sua violação. As medidas judiciais aplicáveis podem ser de natureza individual ou coletiva.
É fundamental reconhecer que o trabalho não deve ser considerado a única atividade definidora da vida do trabalhador. Deve-se promover um equilíbrio entre o trabalho e outras atividades, como lazer, vida familiar e cuidados com a saúde. A desconexão do trabalho é indispensável para o bem-estar físico e mental. “Quando o trabalhador não consegue se desconectar do trabalho, ele pode desenvolver problemas como estresse, ansiedade, burnout, depressão, entre outros”. (BARROS, 2017)
Uma comparação com a lei francesa
A Lei de Desconexão ao Trabalho na França foi introduzida pela Lei nº 2016- 1088, de 8 de agosto de 2016, também conhecida como “Loi Travail” ou “Lei El Khomri” (FRANÇA, 2016), em referência à Ministra do Trabalho Myriam El Khomri, que a propôs. Esta legislação foi implementada como parte de uma reforma trabalhista mais ampla, visando modernizar o mercado de trabalho francês e adaptar-se às mudanças tecnológicas e sociais que impactam as relações de trabalho.
A Lei francesa estabelece que empresas com mais de 50 empregados devem negociar, com os representantes sindicais, os termos e condições de uso dos dispositivos digitais para garantir o respeito ao tempo de descanso e às férias dos trabalhadores. Na ausência de um acordo, a empresa deve criar uma carta, em consulta com os trabalhadores, que defina e regule o uso dessas ferramentas fora do horário de trabalho.
A mencionada Lei é vista como uma medida progressista que responde às necessidades dos trabalhadores na era digital. No entanto, alguns desafios persistem, especialmente em setores onde a disponibilidade constante é considerada essencial.
Um dos aspectos notáveis é o foco na prevenção do “burnout” e outros problemas de saúde relacionados ao excesso de trabalho. A legislação francesa promove uma cultura de trabalho mais equilibrada, onde o tempo livre é respeitado e valorizado.
Enquanto a legislação francesa já está em vigor e possui um conjunto detalhado de normas e procedimentos para sua implementação, o projeto brasileiro ainda enfrenta debates e ajustes antes de sua possível aprovação. A proposta brasileira inspira-se na experiência francesa, mas também busca adaptar-se às especificidades do mercado de trabalho local, que possui suas próprias dinâmicas e desafios.
A experiência francesa oferece valiosos insights para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de legislações similares em outros países, incluindo o Brasil, onde a necessidade de regulamentação do direito à desconexão é cada vez mais reconhecida.
O projeto de Lei no Brasil
Acerca da regulamentação da desconexão ao trabalho no Brasil, há um projeto de Lei – Projeto de Lei 4.044/2020 (SENADO FEDERAL), de autoria do Senador Fabiano Contarato, que tramita no Senado Federal.
Este projeto visa estabelecer regras claras sobre o direito à desconexão para evitar o excesso de trabalho e proteger o tempo de descanso dos empregados. Este projeto
inclui disposições que impedem o empregador de solicitar a atenção de empregados fora do horário de trabalho, exceto em casos de força maior.
Além disso, durante as férias, o empregado deverá ser removido de grupos de mensagens de trabalho e aplicativos profissionais em seus dispositivos pessoais.
O projeto também pretende alterar a CLT para regulamentar melhor os regimes de plantão e sobreaviso no trabalho à distância, adaptando-se às novas realidades do trabalho remoto.
As perspectivas para a aprovação ou rejeição do Projeto de Lei 4.044/2020 podem ser influenciadas por vários fatores, incluindo o contexto político, a pressão de grupos de interesse, como associações empresariais e sindicatos, e o clima social em relação ao trabalho remoto e ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
A tendência global é crescente em reconhecer e legislar o direito à desconexão, como visto em países como França e Espanha. Isso pode influenciar positivamente a decisão dos legisladores brasileiros. Por outro lado, poderá haver uma grande resistência e oposição pelo setor empresarial, devido às possíveis restrições operacionais e custos adicionais relacionados ao pagamento de horas extras e reestruturação das práticas de comunicação empresarial.
Conclusão
No Brasil, a ausência de uma legislação específica que trate do direito à desconexão do trabalho leva a uma interpretação baseada nos princípios constitucionais e nas normas da CLT.
A necessidade de uma regulamentação mais explícita é evidente, pois a falta de diretrizes claras pode resultar em abusos, onde empregadores mantêm empregados perpetuamente conectados, comprometendo seu tempo de descanso e lazer.
O Projeto de Lei 4.044/2020, em tramitação no Senado Federal, propõe-se a preencher essa lacuna, trazendo à tona a urgência de adaptar a legislação trabalhista às novas realidades do trabalho remoto e da conectividade digital.
A legislação francesa serve como um exemplo inspirador, demonstrando que é possível equilibrar as necessidades dos empregadores com os direitos fundamentais dos empregados, promovendo um ambiente de trabalho mais equilibrado e saudável.
Referências bibliográficas
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SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Flexibilização da jornada de trabalho e a violação do direito à saúde do trabalhador: uma análise comparativa dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol. São Paulo: LTr, 2013.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 23, Campinas, SP, jul./dez. 2003.
*Advogada especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Campus Itajaí. E-mail: thays@goncalvesmartins.com.br